*
Maria Leontina
Mathieu
revira-se na poltrona. Logo quis saber:
- O
garoto fica com você?
- Claro. Por que pergunta?
- Claro. Por que pergunta?
- Não se
preocupe.
Suzana meio assustada:
Suzana meio assustada:
- Help. Alguma dúvida?
- Essa relação parental ainda não é fácil de ser resolvida nos
tribunais brasileiros, principalmente, numa separação conflituosa. Um dos
princípios do Direito é garantir o que é melhor para as crianças, que devem ser
preservadas ao máximo.
- Sim.
- Os Juízes e Promotores estão cada vez mais preocupados com a
questão, porque sabem que é mais uma família dividida contra si mesma,
penalizando as crianças com o afastamento dos pais. Por isso mesmo, antes de
definir a guarda, averiguam todos os vieses, desde o emocional do menor até a
sua integridade física. É de praxe. Checam, criam dificuldades.
- Que
papo é esse?
- A coisa funciona assim mesmo, sob o domínio da Lei.
- A coisa funciona assim mesmo, sob o domínio da Lei.
- Pode me
explicar?
- Eu sei
que é um momento difícil. Mas, não se preocupe.
- Diacho! Pelo jeito, desassossega qualquer mãe.
- Fique sossegada. Não se afobe.
- Só o que me faltava?
Mathieu elucida:
- Diacho! Pelo jeito, desassossega qualquer mãe.
- Fique sossegada. Não se afobe.
- Só o que me faltava?
Mathieu elucida:
- Tenha calma. Você acastela argumentos suficientes, conduta e
reputação ilibada, além de bons antecedentes e residência fixa. Isso que importa.
- Sim. Sim.
- É o básico para garantir a guarda de um filho dentro das
disposições legais. Basta cumprir à risca todos os procedimentos.
Suzana com as mãos enlaçadas sobre os seios, rebate:
- Entregar meu filho? Nem morta, cara. Nem morta.
- Acalme-se. Não precipite nem misture as coisas.
- Enquanto força tiver, ninguém tira o Junior de mim.
- Só confiar na Justiça que tudo será resolvido numa boa.
Relaxa.
- Difícil.
- Em princípio, o empenho da Justiça é fazer o maior esforço
possível para obstruir a decisão do casal de separar. Claro, tudo dentro dos
conformes.
- Sei.
- Na mente de um Magistrado a família é um continente seguro
para os filhos. Os pais não podem cair fora quando bem achar que devem –
explica o rapaz com mais clareza o entendimento jurídico.
- Perfeito.
- Quando a separação de um casal é fato consumado, a missão dos
Juízes e dos Promotores, no sentido de ampliar as medidas protetivas, é fazer
com que os menores tenham os pais, simultaneamente, presentes mesmo que em
casas separadas. Querem ter a certeza de que os dois vão continuar prudentes
com os filhos, independentemente, da distância geográfica. Separados, mas
unidos, entende?
- Acho que sim. Ou seja, terei que agir de acordo com os
parâmetros da Lei?
- Por aí.
Suzana com ar consternado:
- Ai, meu Deus!
- Relaxa. O Juiz vai confiar a guarda do Júnior a você,
condenando José Renato a repassar parte do que ganha para atender as
necessidades básicas do filho. Assim é o procedimento.
- Pouco importa. Não preciso de homem para me dar nada, eu ganho
o suficiente para me sustentar e o meu filho.
- Importa, sim. Uma exegese profunda permite trazer mais luz à
verdadeira necessidade desse ou daquele procedimento jurídico. Cabe aos
julgadores, que aplicam as leis, avaliar e verificar o que é o melhor para o
menor, o que é melhor para a família.
- Traduzindo... - interrompe a mulher com ar de interrogação
que, por impulso linguístico, estranhava a palavra exegese.
- Não gostou do termo?
- Nunca ouvi, li ou vi.
- Exegese é a interpretação intensa de um texto jurídico,
bíblico ou literário.
- Também não precisa falar com esse tecnicismo todo! Me deixa
mais ressabiada ainda.
- Termos jurídicos, querida.
- Sim, continua.
- A legislação determina que a pensão alimentícia seja fixada
com base no binômio: necessidade e possibilidade. Isso é, cumprindo as
condições previstas em lei.
- Tudo bem.
- José Renato é pai do seu filho. Portanto, no entendimento da
magistratura é necessário garantir a ele o pátrio poder, concedendo-lhe direito
de ver o filho, determinadas vezes por semana.
- Claro.
- Na Inglaterra começa a ser aplicada a guarda compartilhada. O
objetivo é proporcionar à criança melhor opção para seu bem-estar e
desenvolvimento social. Dá mais segurança emocional aos filhos. Compreendeu agora?
Risos. Suzana quase envergonhada:
- Ô, Math, deve achar um absurdo eu não saber direito sobre
essas coisas?
- Nada disso. É normal.
- Bem, como é que ficamos?
Depois de uma pausa, Mathieu responde com outra pergunta:
- Decidida mesmo?
- Não terei outro caminho.
- Numa separação judicial ganha quem ganhar, os dois perdem. A
disputa se transforma num ringue para uma batalha inóspita. Como numa guerra,
todos perdem.
- Eu sei.
- Não quero desestimular nem torcer contra, mas o que ouço falar
é que quem passa por um desquite acaba como um soldado que retorna de um
combate: cheio de cicatrizes que vão acompanhá-lo por toda a vida.
- Triste!
- Vai encarar?
- Prontamente, meu senhor – afirma Suzana levantando os ombros.
- Então... Então...
- Então, diz logo o que terei que fazer?
- Contratar um bom profissional.
- Indica algum?
- Tem que ser um advogado experiente. Principalmente, que seja
firme na definição de quem são os frutos colhidos durante o relacionamento.
- Certo.
- Num processo dessa natureza, quer queira, quer não, o quadro é
indigesto quanto aos aspectos da divisão patrimonial - cada um empreende sua
batalha durante a discussão da partilha. Por isso mesmo, todo cuidado é pouco.
Num desquite litigioso, qualquer uma das partes, acuada, é capaz de morder onde
conseguir alcançar para garantir vantagens ou dificultar, ao máximo, o
rompimento da ligação conjugal. Briga de foice!
- Vixe!
-Tem que aprender a lidar com isso. Faz parte do jogo. O
importante é manter o equilíbrio para não dar ‘bandeira’. Ficar alerta, medir
consequências...
- Claro.
- Bem alerta. Sobra para os litigantes e seus defensores análises
minuciosas de cada detalhe do processo. Somos os mais veementes defensores de
nós mesmos. Sabe disso, ‘né?
- Sim.
- Durante a lide mantenha o olhar cauteloso ao que se passa à
sua volta. Evite troca de insultos e discussões acalorados para não ter seus
direitos ameaçados. Assim terá autoridade moral para exigir rigor dos outros.
- Estou preparada, mesmo sabendo que ele vai me infernizar e
tentar de tudo para colocar minha vida em xeque – admite Suzana.
- Fique na sua, sempre. Não vacilar nunca.
- Prometo ficar atenta.
Pausa. Mathieu:
- Ao contrário do que se espera, ainda longe de ser um Tribunal
acima de qualquer suspeita, sabemos que existem Magistrados que valorizam mais
o papel do homem no matrimônio que, normalmente, manifesta o desejo de levar
vantagens em tudo.
- Como assim?
- Estimamos que os Juízes tenham noção apropriada de
distribuição igualitária de valores, não é assim? Mas não é. Em muitos deles o
desejo machista sobrepõe-se ao senso de justiça.
- Hein?
- A justiça é cega, todavia, nesses casos costuma dar uma
piscada para os litigantes do sexo masculino, principalmente, daqueles que têm
bolsos muito profundos – brinca o rapaz.
- Ainda estou boiando, Math.
- Na conformidade daquele princípio de caridade jurídica,
existem Juízes mestres em se estribar nos artifícios utilizados para prejudicar
as mulheres numa separação litigiosa. Ainda mais quando percebem que as esposas
chegaram à menopausa sem saber o que é um orgasmo, e estão loucas para cair
fora de um casamento enfermo.
- Como é que é? - assusta Suzana.
- O edifício jurídico, de alguns julgadores, costuma apresentar
rachaduras em seu fundamento, abrindo espaço para camaradagens a um quadro onde
já está decidido quem é o bandido e quem é o mocinho. Grosso modo é assim
mesmo. Para os ricos, como disse, a justiça é sempre um instrumento de muitos
recursos.
- Sério?
- Sério?
- Violação pura e simples dos direitos sociais, da ética e da
legalidade. E pior: estimula a cultura do machismo que, ao longo dos séculos,
reinou absoluta no Brasil como se as mulheres nascessem para ser subservientes.
Suzana, entre consternada e espantada, expressa:
- Que injustiça, meu Deus! Ai, ai, ai..., dá até medo de saber
dessas coisas. Repugnante.
- Não é de hoje que surgem relatos desse limbo jurídico. Dessa
maneira, fica de fato e de direito, os homens privilegiados no martelo de maus
juízes que distorcem a interpretação das leis, fazendo (in) justiça social com
as próprias mãos. Anacronismo regido pela lei da força e não pela força da lei.
De fato, causa indignação.
- Que coisa, hein?! - exclama a mulher, erguendo os braços.
- A Constituição Federal, outorgada em 1967, traz no artigo 153
- parágrafo primeiro: todos são iguais
perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e
convicção política.
Pausa. Suzana:
- Está ai a prova de que nem todos são iguais perante a Lei. Não
são mesmos! Os mais fortes continuam passando por cima dos mais fracos, apesar
do Ministro da Justiça, proclamar com certo arroubo, que a lei não distingue
grande ou pequeno.
- Não deve ser assim, fere o princípio da ética.
A mulher, com ar desolado:
- Coisa mais feia, Math!
- Não por ocaso que relatos dessa hipocrisia se espalham a um
ponto que a Comissão de Direitos Humanos da Igreja Católica, vira e mexe,
critica a conduta de Juízes que agem dessa maneira. A entidade, apoiada pelo
clero, articula o bastante para prevalecer os direitos da mulher, de acordo com
as letras da Lei. E, sobretudo, punir magistrados que ferem os princípios da
ciência moral do judiciário.
Numa expressão triste e tensa, Suzana:
- Calhordas!
- O Brasil não pode mais aceitar o estado de insegurança que
provoca grandes injustiças sociais. Muito menos a violência contra a mulher e o
desprezo às Leis.
- Claro.
Pausa. Mathieu:
- Esmorece, não. No seu caso, tudo vai correr bem.
- Deus lhe ouça!
Em seguida, a mulher esboça um sorriso e acende outro cigarro,
observando:
- Pelo visto, Math, você deve ser um dos melhores alunos da
classe.
- Me esforço.
- Estou gostando de ver seu desembaraço. Vamos, prossegue com
suas observações legais. Apesar de tudo, estou adorando.
- Okay.
- No fundo, gostaria que fosse uma separação conscienciosa,
resolvida numa boa para não deixar tantas mágoas. Não quero guerra.
- Nem por isso dói menos – alerta Mathieu.
- Ã-Hã!
- Seja como for, uma separação mexe com o emocional, mexe com o
bolso e a saúde. Não é uma sentença de morte, mas quem passa por um desquite
sofre violenta carga de estresse. O desafio é sobreviver sem traumas até o fim
do processo.
- Estou por dentro – assegura a mulher.
- De qualquer forma, voto para que a situação seja resolvida o
mais rápido possível.
Com o olhar carente Suzana:
- Tudo bem. Ainda não disse se vai me arranjar um advogado de
sua confiança.
- Na verdade não sei se devo.
- Ora!
- Vamos ver. Vamos ver.
Suzana abre mais o sorriso.
- Promete que vai me ajudar?
- Melhor me incluir fora dessa. Posso dar a você força nessa
‘parada’, sim. Mas, não me cabe tomar partido e nem ceder à tentação de
opinar numa situação de tal natureza. Sou amigo do casal.
- Ô Math!
- Antes que
me acuse de se esquivar da raia, digo que serei o mais neutro possível nessa
história, um discreto mediador de conflitos.
- Batata quente! Em briga de marido e mulher não se mete a
colher – caçoa a mulher rindo.
- Assim sendo, como não posso trazer de volta a harmonia entre
vocês, posso me fazer presente com mensagens de apoio e carinho, oferecendo uma
pequena dose de paz aos dois.
- Está certo, melhor assim.
- Prefiro não criar polêmica nem misturar os canais. Longe da
linha de tiro, tudo que posso fazer é torcer pelo bom entendimento das partes e
confiar na responsabilidade de cada um. Espero que não fique zangada comigo.
- Nem pensar. Sei que estou pedindo mais do que deveria,
reconheço.
- Não é boa política um amigo se intrometer em assuntos do
casal. Como disse, torço para que o embate seja o menos sofrível para os dois.
Não sou contra ninguém, portanto espero que cada um faça em boa-fé o que deve
ser feito, viu?
- Viu.
- Fique sabendo que, de todas as difíceis batalhas, financeiras
e emocionais, que figuram em um processo de Desquite, o problema maior está na
dúvida de dividir os amigos. Quem fica com quem?
Risos. Suzana, improvisando uma figa com a mão direita.
- Só peço que me alerte quando precisar de socorro, viu?
- O que a gente não deve, numa hora tão difícil, é não estar por
perto para dar apoio. Fique tranquila.
- Gentil de sua parte.
Será uma ajuda e tanto.
- Só o que poderei fazer.
A mulher repousa a cabeça na palma de uma mão e, com a outra,
brinca com a pocinha de cerveja derramada na mesinha da sala. Logo diz:
- Muita coisa em jogo, não é mesmo?
- Sim. Insisto: durante a plêiade não fazer o que lhe der na
telha, sem antes consultar o seu advogado. Nada mais importante.
- Sim, senhor. Demanda para quanto tempo?
O rapaz estende as pernas e bate as mãos nas coxas.
- Difícil prever, até porque, a justiça tem uma coisa chamada
trâmite. É o período de tramitação do processo, dividido em várias fases.
Quando o casal, com o espírito aberto para o entendimento, evita conflitos e a
discussão toma o rumo de um desfecho amigável, o jogo é rápido. Mas...
- Mas?
- Se tiver litígio, a ação estende-se por um período bem longo.
Não há outro remédio. Terá que enfrentar todas as etapas de uma separação
judicial, até que as coisas se equalizem e o procedimento chegue a um bom
termo.
- Quanto tempo, Math?
- Imprevisível. Sem consenso, costuma ser pendenga para uma boa
temporada. Peregrinação forense até a última parcela de sua paciência.
- Um ano, dois, três?
- Caso não tenha muita rota de colisão, podemos pensar numa
possibilidade de sair em dois anos ou pouco mais.
- Deus do céu, tanto tempo assim?
- Um compasso de espera, reconheço. Para resolver isso o foco é
ter calma, muita calma.
- Caramba!
- No Brasil é um prazo razoável.
- Ai, só de pensar nisso já me sinto cansada.
- Tenta se conformar.
- Bem...
- O judiciário brasileiro não está em condições de absolver
tantos processos com menos tempo. Questões delicadas crescem, dia após dia, na
Vara de Família.
- Paciência - concorda ela meio desanimada.
- Melhor.
- O negócio, Math, é implorar à minha alma que não me desampare,
nem por um segundo, porque seu ponto de união com o meu corpo será determinante
numa ocasião dessa natureza.
Pausa. Mathieu:
- Certa da decisão que vai tomar, eu posso perguntar quando vai
ser?
- Qualquer momento. Estou
a dois passos da tomada dessa decisão. Aguarde-me.
- Bem...
- Agora, eu queria mudar de assunto. Falar de outra coisa e, por
enquanto, esquecer essa novela de separação judicial.
- Encheu?
- Enchi.
- Enchi.
Mathieu ri, pedindo:
- Então olhe bem para mim.
Imitando o tom de voz de um árbitro, ele:
- Lá na frente, tão logo deslace da garganta a corda da justiça,
isto é, após a homologação do seu Desquite vamos nomear um dia para comemorar,
em grande estilo, o júbilo da vitória. Pode ser?
- Caracas!
- Prêmio pelo fardo do qual vai se ver livre.
- Festa estranha, não?
- Nem tanto. Carregada de simbolismo, claro. Afinal, terá outro
papel novinho em folha. Com a benção do judiciário, e sem o incômodo do peso
das alianças, você vai viver a vida da maneira que quiser, sem precisar
negociar sua felicidade com ninguém. Bom momento para comemorar, não?
- Solteira outra vez. Ai, nem acredito!!!
Com o olhar calculado e
sagaz, o rapaz:
- Sua carta de alforria para voltar à vida antiga e ser normal.
Livre e desimpedida. O passado, passado.
- Caramba!
- Saudades?
- Ai, o céu na terra! Math, só de saber que, de alguma forma,
minha vida pode melhorar já me conforta.
- Querida, com a autoestima recuperada terá o prazer de se
espalhar sobre o colchão de casal, contorcer, abrir os braços, revezar a cabeça
entre os travesseiros e atravessar o corpo de uma ponta à outra sem estorvos, contente
consigo mesma. Tem coisa melhor?
- Nem acredito.
- Ou repousar na diagonal e ter a cama inteira para você dormir
até não ter mais sono. Saborear a doce leveza da entrega total aos braços de
Morfeu com total ausência de pensamentos ruins. Enfim, dormir tranquilamente a
sono solto, indiferente e calmo.
- Ai, é bom demais!
Pausa. Mathieu com um sorriso largo:
- Separação significa cada um por si no seu ritmo, com o seu
papel social. Cada um no seu quadrado em busca de um futuro melhor, um novo
começo.
- Graças a Deus!
- Liberdade até para arranjar um noivo.
- Noivo?
Com o mesmo riso, ele:
Com o mesmo riso, ele:
- Por que não, sem amor nada faz sentido. O fim de
relacionamento não é um ponto final na vida amorosa de ninguém, no máximo uma
vírgula. De acordo com Platão, o amor é a
causa do movimento do Universo.
- É.
- Nenhum ser humano pode viver num mundo vazio, no vácuo, porque
solidão não é boa companhia para ninguém. Põe isso na sua cabecinha, viu?
- Poderia até ser um santo remédio para os meus males, sim.
Ainda acredito nas faculdades cicatrizantes do afeto, do amor de alguma pessoa
do lado que me complete. Mas...
- Você merece ser amada.
- Mereço, sim.
- Qual a dúvida então?
- Muito cedo. Muito cedo.
- Cedo?
- Pelo que a gente vê, o fim de um relacionamento deixa as
mulheres frágeis o suficiente para percebermos o que realmente tem importância
na vida. É uma fase em que temos que reavaliar tudo, precisamos de um tempo e
silêncio por dentro, até para limpeza de energia, certo?
- Correto.
- Tempo,
tempo, tempo é o que vai pedir o meu relógio biológico nessa hora. Tempo para
arrumar a casa, refletir, jogar coisas fora, organizar. Nada melhor para aliviar
aquela sensação de derrota, não é mesmo?
- Claro.
- Muitas
vezes é bom sair um pouco de cena e aguardar que a sabedoria do tempo termine o
espetáculo, expulsando boa parte das repercussões negativas, provocadas por um
casamento que arranhou muito.
-
Entendo.
- Ai,
sim, estarei de novo, nova para o mundo. Terei condições de me abrir para a vida
e me dar chance de encontrar alguém apaixonado que não me machuque. Eu quero
minha vida de volta, Math.
- Claro, claro. Nunca é
alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo, ensina Niet.
Suzana
esboça um ar decepcionado:
- Já casei uma vez. Nessa tentação eu não caio tão fácil assim.
- Águas passadas.
- Passadas que permanecerão turvas por um bom período.
- Talvez.
- Mesmo com a separação, Math, o homem deixa marcas de difícil
cicatrização na mulher, as rugas ficam no rosto e na alma. Sem falar no
sobrenome que não se extingue nunca.
- Amolada, ‘né?
- Muito. Por isso mesmo, afastar da cabeça ideias assim é bom. Só
dessa maneira poderei passar uma borracha naquilo que fere muito,
principalmente, a alma – sublinha a mulher.
- Tem razão, nada melhor do que o tempo para curar dores, restaurar
a alma e nos brindar com aprendizado.
- Sim. Sim. É o tempo que preciso para me levantar. Ampliar o
olhar e aprender, com os próprios erros, a ter o completo domínio de mim mesma.
Só preciso de um norte.
- O importante, Suzana, é não desistir do amor. Dar outra
chance...
- Bobinho, nunca. Nunca vou deixar de acreditar nesse sentimento
capaz de mover o mundo e as estrelas, porque sou uma mulher que ama sem
limites. Só que, agora, talvez queira namorar alguém cujo coração também foi
partido um dia e, principalmente, alguém que saiba que o erro pode nos ensinar
lições importantes.
- Por aí.
- Alguém que vai pintar na hora certa, como presente dos céus, e
escrever um novo capítulo na minha vida. Acredito nisso.
Risos. Mathieu confiante:
- O que sei é que a neurociência ainda tem muito pouco a dizer
sobre o amor. Mas, sabe-se que uma experiência mal sucedida, não pode nem deve
ser molde do que esperamos encontrar no verdadeiro amor.
- Claro.
- O poeta Mario Benedetto apregoa por todos os cantos que a gloria não consiste em não cair nunca, mas
em se levantar todas as vezes que seja necessário. Portanto, outro parceiro
para compartilhar as aventuras de viver pode ajudar a recolocar seu calendário
no princípio – afiança o rapaz.
Pausa. Suzana, depois de tomar um pouco de cerveja, expressa
admirada:
- Oh, my God!...
Esqueceu que o Desquite, como se não bastasse para envolver as mulheres em
total constrangimento social, impede também a formalização de outra união? Não
permite casamento civil de novo, muito menos religioso.
- Isso porque a Igreja considera o Desquite uma ofensa à vontade
de Deus.
- Ã-Hã.
- Quanto ao casamento civil será coisa por pouco tempo, mocinha.
O Divórcio logo desembarca no Brasil, está a caminho.
Suzana retrai o sorriso, gesticulando de leve:
- Voltando, voltando a agulha. Não vão rir de mim comemorando o
fim de um casamento?
- Claro que não.
- Meio esquisito, não?
O rapaz respira,
demoradamente. E sorri.
- Que nada! Festinha de arromba com todo mundo no clima. Brilho,
saltos altos e muita gente dançando sem parar como em qualquer outro festejo.
Emoção atrás de emoção! Inclusive, com a presença do futuro ‘ex’, José Renato,
para comemorar a separação numa atmosfera de pura alegria.
- Vixe!
- Não que será o ponto alto da festa, mas é uma maneira para
diminuir as turbulências do fim de uma relação matrimonial, superar qualquer
desavença entre vocês. Uma festa como nunca se viu, menina, nada de chororô...
Imagina o sucesso!
- Pode não dar certo.
- Isso depende de você. Até lá, exatamente como varremos as
migalhas de comida de uma mesa de jantar, você também poderá varrer boa parte de
amargura da convivência entre os dois. Vai jogar fora ressentimentos, mágoas, medos,
tristezas..., essas coisas que amarram a vida.
- Óbvio.
- Tudo para que a dupla não perca o respeito entre si, certo?
- Okay!
- Em todo mundo, o ódio jamais acabou com o ódio. Perdoar,
querida, deixa a vida mais leve. Ou vai curtir aversão dele para sempre?
- Lógico que não, apesar de muito contrariada, eu quero bem ao
José Renato, desde que não me aporrinha com seu jeito de pensar. Desde que ele
deixe de lado o seu ranço totalitarista e aprenda algo mais sobre os princípios
da razoabilidade. Nasci para compartilhar amor, não ódio.
- Ótimo. Um relacionamento que começou com um festejo, com um
festejo deve terminar. A admiração que você tinha por ele, então contaminada de
medo e desconfiança nos últimos anos, pode se transformar em simpatia, mesmo
sabendo que já não existe mais nada entre dois pombinhos separados.
- Ah, sim.
Pausa. Mathieu explica:
- Festa de fim de casamento é costume na Europa e nos Estados
Unidos. Para eles, não tem remédio mais eficiente para cicatrizar uma ferida
aberta, sem deixar tantas marcas, e estabelecer novo tópico na história de vida
dos dois no futuro.
- Gostei da ideia.
- No Japão, existe até a figura do ‘organizador da cerimônia do
casamento desfeito’. No evento, as alianças são esmagadas com um martelo e os
pedaços jogados na boca de um sapo de porcelana, simbolizando o momento de
alegria libertadora nesse capítulo trágico.
- Sapo?! – exclama Suzana caindo na gargalhada.
- Isso mesmo. Sabiamente, significa vida nova para os solteiros
novamente. Digo mais: nesse lance não pode faltar os docinhos bem separados nem
um buquê de rosas amarelas.
- Ah, essa é boa!
- Porque não? Tudo isso para guardar a memória de um passado
romanceado morto. A intenção é nobre, pode crer.
Suzana, com a mão direita erguida formando no ar a letra ‘O’
pela junção do polegar e do indicador, assegura em voz firme:
- Convenceu-me, rapaz. Um mergulho na alegria de uma festa pode
ser boa maneira de se proteger da dor do vazio, não é mesmo? Desse modo fica o
caso um pouco remediado.
Mathieu avança o corpo na poltrona, toma as mãos da amiga e
pousa-lhe um beijo na testa, dizendo:
- Querida, hora de abrir a alma e deixar que o sol entre pelos
ambientes mais íntimos da sua existência. Não tem nada melhor para fazer a limpeza
interior que você aspira. Vai que cola!
- Poeta! – suspira a mulher.
- Por tudo que é mais sagrado, quero vê-la todos os dias
provando que tristeza tem fim. Felicidade é transmissível, viu?
Suzana confirma com um piscar de olhos. O rapaz reforça:
- Espero que, em breve, terá o mesmo sorriso de antes, quando
solteira, quando existia na sua alma um mundo vivo e louco para viver bem.
- Ai, nem acredito?!
- Enfim, amanhã será um
novo dia, como diria Scarlet O’ Hara.
- Sim, sim.
Em seguida, o rapaz estira-se um pouco mais na poltrona,
convencido de que era maravilhoso estar ali, nunca noite de verão, com uma
mulher tão graciosa e encantadora ao seu lado.
Cabisbaixo, acaricia a mão dela, repetidas vezes.
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