2011-01-03

20/XX – PRIMAVERA DE 1968 NA FRANÇA

*

Manifestations.
 

  
Estudantes em protesto na França
 
 

 

Paris 1968 - É  Proibido Proibir







           Depois de um pequeno silêncio, Mathieu toma mais um pouco de cerveja. Faz um gesto de mão para que Suzana o ouvisse com atenção:

 - Em maio último, a insurreição protagonizada pelos estudantes da margem esquerda do Rio Sena, contra o autoritarismo do governo francês, marcou um dos maiores protestos sociais da história da civilização. Abandonaram as salas de aula e, durante 30 dias, foram às ruas levantar barricadas e trincheiras de guerra para confrontar a polícia.

- Ã-Hã.

- Com aquela voracidade juvenil, empunhando faixas com frases ousadas e gritos dentro e fora das universidades, realizaram a maior revolução cultural que a França e o mundo já viram.

- Une aventure de la pensée critique! – adverte a professora.
          - Aventura?!...

- Sim.

- Ora, Suzana, estudantes de Sorbonne e Nanterre viveram uma onda gigantesca de manifestações anti-governo, repudiando a política paquidérmica e repressora de Charles de Gaulle. Ameaçaram até desencadear campanhas de desobediência civil, caso não fossem ouvidos.

- Protagonismo juvenil, Math, não vê? Nada mais nada menos do que aquela coisa de jovem achar que ele deve ser sempre o ator principal em tudo na vida!

Risos. Mathieu:

- Protagonismo de jovens que querem se colocar no cenário público, reivindicando e assumindo lideranças. Manifestação de uma juventude que quer participar e intervir no planejamento social da sociedade, na sua avaliação e na apropriação dos resultados. Querem mudar o mundo, sim.

- Háháhá!

- Isso mesmo. Manifestações de rua, em confronto com a polícia, fazem parte da equação política em que o povo reivindica o direito de participar. Protestaram contra a ordem estabelecida, contra o ‘sistema’, protestaram pela liberdade de fazer protestos.

- Ã-Hã!

- Continuam unidos, têm ponto de encontro, destemor, otimismo e confiança. Enfim, a voz da juventude de Sorbonne já ecoou de Paris para o resto do planeta, dando força à maior revolução de costumes da história da humanidade.

- Arre!

- Empurrados por esse ideal, sem trégua milhares de rostos jovens e vozes firmes se multiplicaram nas ruas de Paris com seus cartazes, suas reivindicações. Cartéis com frases atacando a polícia e políticos de todos os partidos foram uma das marcas dos protestos. Abaixo às imposições!

- Háháhá... Até agora não vi nenhuma cabeça no chão. Sinal que não há nenhum Robespierre por lá.

- Ora...

- Coisa dos franceses, com sua fala carregada de ‘erres’, querendo impor suas teorias conspiratórias. Brigam-se. Depois do vendaval, voltam-se à paz. E tudo acaba em croissant.

- Ai que você se engana. O que a gente vê hoje é uma geração de universitários extremamente crítica que briga por direitos iguais para todos. Mais ainda para as mulheres. A causa é de todos, qual o problema?

- Ora, Math, ainda não percebeu que a juventude francesa se mobiliza a favor de uma revolução dos desejos individuais, contra a austeridade das universidades?

- Certíssimo.

- No fundo, no fundo os estudantes de Sorbonne desejam mesmo é a abolição dos freios sociais. Bagunça sem fim. Vê se cola?

- Salve!

- Abençoados pelas ideias do filósofo Michel Foucault, que vive entre a política e a vida nua, com suas obras iluminando questões contemporâneas baseadas em manifestações populares.

- Sem dúvida. Foucault, conhecido pelo espírito liberal que tanto anima a juventude, prega uma forma superior de educação para a cidadania.

- Por isso mesmo que seus alunos ambicionam o direito de transar com as colegas nos dormitórios universitários, de não ter que arrumar os quartos e, muito menos, de não precisar fazer provas nas Faculdades. Posam de angry young kids contra o status quo. Ah, vê se pode?

Mathieu solta uma gargalhada. Levanta o copo e toma gole de cerveja, bradando:

          - Senhor da Sabedoria, atenda a voz dessa mocidade!!!!...

- Ah, Math, tem cabimento?

- Autênticos baby-boomer.

- Baby-boomer?

- Jovens nascidos após a Segunda Guerra que lutaram pelo estabelecimento de uma nova conduta para a sexualidade, para o corpo e para a constituição familiar.

- Juro que não sabia.

- Celebraram o espírito de liberdade sob influência do rock e de ideologias libertadoras. Sua filosofia se baseia em novos conceitos de amor, harmonia, paz, liberdade e cuidados com o planeta.

- Interessante.

- Viva a França! – expressa o rapaz, elevando o copo de cerveja no ar.

Descrente, a mulher rebate:

- O governo francês não vai ceder tão fácil a tudo que pede esse grupo de anarquistas.

- Ah, vai. Vai, sim. De Gaulle vai ter que ouvir o que tem a dizer os estudantes de seu país e deixar de jogar gás lacrimogêneo neles toda que vez que se manifestarem pelas ruas de Paris. As vozes das ruas assustam os políticos, porque se impõem e mostram que vieram para ficar. Sabe o presidente que, para fabricar um incêndio basta uma fagulha e um pouco de oxigênio. E a faísca pode ser sua intransigência, parada no sinal vermelho.

- Será?
            - Não adianta. Vão continuar com suas caras expostas, enquanto não forem atendidos em todas as suas reivindicações. Intelectuais franceses engrossam as fileiras de protestos dos universitários, somando peso nesse duelo que tem como fim o desejo de transformar o mundo. Entendem eles que o movimento não visa o poder estatal mas, sim, explorar os sentidos da vida.

- Mesmo assim, o governo francês não cederá tão fácil, pode crer.

- Paul Valéry, de quem Charles De Gaulle é confesso admirador, consagrou as manifestações estudantis de Sorbonne. Sempre muito lúcido, ele continua oferecendo boas doses de pólvora aos universitários.  O pensador francês há muito defende que as ideias de tempo e futuro também passam por mutações. Portanto, o Presidente da França não deve confrontar com o pensamento de um homem com a estatura científica de Valéry. Até porque, politicamente falando, isso não seria de bom tom numa nação que sempre se destacou no mundo das mudanças.

- Sei não! Sei não!

- Acorda, Suzana, acorda. Esses protestos não são movimentos da extrema esquerda, nem uma rebelião puramente de adolescentes. E, muito menos, uma manifestação isolada. É de todos os franceses, de todos os cidadãos do mundo.

- Sim.

- Olha aqui: existem dois os modelos de protagonismo juvenil. O primeiro, quando os jovens praticam a ação de maneira autônoma. O outro, quando as pessoas do mundo adulto apoiam e participam junto com os jovens. É o caso. Tanto que pensadores como o casal das letras Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Guy Debord, André Gorz e Dorine, partidários de opiniões democráticas até a medula, estão aí engrossando essa rede de indignação e de esperança. Não tivessem consciência absoluta dos benefícios dessa luta para a humanidade, jamais jogariam luz sobre o ideário de uma geração que sonha mudar o mundo, que confronta por uma nova mentalidade social.

- Política intelectual, não vê?

- É o levante da parte mais intelectualizada da sociedade francesa que quer pôr um fim a essas questões. A classe intelectual, que sempre esteve insatisfeita com o obscurecimento político, agora desperta. Entende?

- Sonhos de grandeza teórica..., proselitismo ideológico..., contemplação de umbigo..., sei lá o que mais. Muita gente aproveita e se projeta sobre isso até para atrair a atenção da mídia.

- Nada disso. Estão ai para defender a união dos ‘pequenos’ contra a opressão política dos grandes.  E, por tabela, criticar também a grande influência da religião na sociedade atual.

- Ah, Math!

- Mais do que nunca querem que os efeitos da luta da juventude francesa não sejam menosprezados. São pensadores da esquerda progressista que, na essência, pregam socialismo com face mais humana, baseado no respeito ao indivíduo, na paz e no desenvolvimento social.

- Grupo de visionários?!...

- Não é não.

Suzana balanceia a cabeça, enquanto tragava a fumaça de um cigarro. 

- Se você pensa assim?

- Por isso mesmo, querida, que a luta saiu das Universidades e chegou às ruas de Paris como um rastro de fogo. Cheios de bravura os jovens, à sua maneira, pintaram muros, brandiram cartazes com mensagens aterrorizantes para De Gaulle e seu exército de ministros. Uma lição valiosa, não acha?

- Háháhá... Até hoje quando me falam de Paris, nem champagne, nem croissant ou Champion visualizo. O que me vem à cabeça quando penso na França são nuvens de fumaça, correria, jovens, quebra-quebra, rostos encobertos, polícia em estado bruto aterrorizando todo mundo.

- Não seja dramática.

- Ora, Math, o que a gente viu durante aqueles dias foi muita baderna, pichações com dizeres desconexos e palavras de ordens utópicas. Poluição visual pura. Nada muito além disso.

- Ora, ora... Mensagens que guardavam a razão legítima camuflada atrás delas, isso sim - com um olhar mais atento qualquer um percebeu surtos de aversão da juventude ao poder político constituído na França. Na verdade, cada manifestante com sua caligrafia, humor e indignação, levou para os muros e para a cartolina conceitos que já não cabiam dentro das faculdades francesas, exigindo mudanças sociais imediatas no país. É o novo jeito de mobilizar e protestar, um novo jeito da juventude dar seu recado.

- É.

- Não viu a paralisação de protesto do dia 20, quando estudantes se aliaram aos trabalhadores para impor greve geral de 24 horas em Paris? Cerca de seis milhões de grevistas ocuparam fábricas e fizeram a cidade-luz amanhecer apagada, praticamente, sem metrô, ônibus, telefones e outros serviços públicos?

- Bagunça de vândalos, transgressores! Vi pela televisão a baderna o que os rebeldes fizeram, arruaça total.

- Eu adorei, Suzana.

- Quebraram vitrines de lojas, puseram fogo em carros, depredaram calçadas, tudo. Precisava de tanta violência?

- Adorei a anarquia na cidade, mostrou força. Torci até para as estudantes francesas fazer topless em praça pública, tirando e queimando sutiãs para mostrar autonomia sobre o próprio corpo – brinca o rapaz sorrindo.

- Vixe!

- Nada mal. Topless com causa.

- Aí já seria demais, não?

- Perderam a chance de serem as primeiras no mundo a destruir sutiãs, publicamente, em sinal de protesto contra a condição subalterna das mulheres na sociedade.

- Caramba!

- O pioneirismo coube à ativista Robin Morgan. Ela protagonizou esse ato em setembro último, bem no meio da apresentação do Concurso Miss América, em Nova York. Seu intento foi chamar atenção do mundo no combate ao patriarcado, ou seja, modelo de organização da sociedade em que o homem prevalece sobre tudo.

Depois de tomar mais um pouco de cerveja e acender outro mentolado, Suzana eleva o copo no ar com um sorriso ligeiro no rosto.

- Parabéns. Um brinde a ela.

Risos. Mathieu:

- Maio de 68 forneceu substrato social para mudar as relações entre raças, sexos e gerações no final dos anos 1960. Tanto que, após a explosão do movimento francês, de uma forma direta e imediata, as ocupações de universidades se multiplicaram e os conflitos se espalharam por dezenas de cidades na Europa e no resto do mundo.

- Eu sei.

- Na Universidade de Frankfurt, estudantes da esquerda e da direita entraram em choque, quebraram o pau. Em junho, universitários de Milão tomaram a sede de um jornal, impedindo sua circulação. Nos países do Leste Europeu como Polônia, Tchecoslováquia e Iugoslávia, a juventude protestou pelo afrouxamento do comunismo de influência soviética. Pena que, em todos os lugares, as greves nas universidades foram reprimidas com selvageria pela polícia.

- Você queria o quê?

O rapaz exalta-se:

- Vida longa a Sorbonne! Vida longa a Nanterre!

- Hummm!

- Vive la démocratie! Viva Paris!

- E viva o que mais?

- Viva Suzana que contesta Sartre..., que contesta Foucault..., que contesta Sorbonne..., que contesta sexo livre..., que contesta o sonho de liberdade que vem deixando traços e marcas no planeta como a maior revolução comportamental que o mundo já viu.

- Chega. Nem tanto.

Mathieu mais entusiasmado:

- Viva Suzana, do alto de sua beleza e inteligência, exultante mulher de faces levemente douradas!

- Ora, Math!

- Salve!

Ela suspira longamente e volta a sorrir, dizendo:

- Ah, se é assim..., se é assim... Mon Dieu, quem sou eu para contestar? Saúde!

 




* FBN© - 2012 – Primavera de 68 na França...,  NUMA  NOITE EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: Paris, 1968 - É Proibido Proibir – Manifestations – vídeo YouTube – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com/2011/01/21xx-as-barricadas-estudantis-de-maio.html?zx=6f01b9ffbf6742b    

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