2011-01-03

08/VIII - APENAS UM SONHO

*
Di Cavalcanti
Dores Malditas do Amor
 

  Nu, óleo sobre tela.






         Depois de uma pausa, os dois calados, Suzana quebra o silêncio:

- Na verdade, Math, eu sonho com um amor sem calorias, que não machuque e construa seu dia a dia em parceria. Entende?

- Ideal, claro.

- Preciso encontrar alguém normal para trocar afetos e ser feliz. Só isso. Só isso - dispara mulher, num riso malicioso.

- Hey! Hey!

Mathieu sacode a cabeça, negativamente.

- Vai com calma. Não se precipite.

A mulher ri. Faz uma mímica rodeando o dedo perto da têmpora.

- Ando tão sozinha, cara, que nem sei se já esqueci o que é um abraço, o carinho e um beijo de um homem de verdade.

- Deixa de ser boba, ninguém esquece essas coisas.

- Tanto tempo, Math! Tanto tempo! 

- Sério?

- Iiiiiiii! Fique sabendo que, quanto às dificuldades de ser fiel, falta um tiquinho assim para jogar tudo para o alto e botar um par de chifres no seu amigo, viu?

- Suzana!

- Azeite! Quer saber? No íntimo ele não é mais nada meu.

- Ainda são casados.

- Mas não estou morta..., não estou morta. Puxa, tenho minhas necessidades! – articula ela com as mãos sobre o rosto.

- Não pense assim, criatura.

Suzana, com desafio na voz, pergunta:

- Ora, Math, vale a pena insistir em uma relação que, dia após dia, se torna mais irritante quando, talvez, haja alguém com a qual a vida seria mais bonita e feliz?

O rapaz persiste, com seu olhar interrogador, fixo na amiga:

- Ora, Suzana, a saída não é a fantasia de que vamos achar outra pessoa que satisfaça todas as nossas expectativas. Não é por aí.

- Passa da hora!

Pausa. Mathieu:

- Sei que fala isso só da boca para fora. Qualquer intenção maliciosa fica só no plano das ideias, não é mesmo?

Suzana cora:

- Tem razão, Math. Desculpe-me. Sou super, super fiel!

- Eu sei que nunca faria nada que não pudesse ser remediado depois, ‘né?

- Claro que não, ainda estou casada. E uma mulher honrada jamais pensa em chegar assim à fronteira da infidelidade. Nunca. Ninguém pode levantar o dedo e me acusar de ter alguma coisa com alguém por aí. Aventuras, jamais! Falo isso da boca para fora. Posso dizer que, em toda a minha vida, única ereção que conheço é daquele que toda vida me frequentou os lençóis, viu. Falei de brincadeira, você sabe.

- Eu sei. Eu sei. Seu comportamento é irrepreensível, posso garantir.

- Graças a Deus! Não pode uma mulher de família sair da linha, temos o dever de preservar a nossa aliança matrimonial. Ou melhor: não basta à mulher de Cesar ser honesta, ela deve parecer honesta e considerar a fidelidade um princípio inatingível. Trair jamais, não é mesmo?

Mathieu sobressalta-se:

- Não gosto dessa expressão: trair. Parece tiro nas costas.

- Não deixa de ser.

- Traição é uma palavra que traz em si uma série de significações negativas, soa como uma sentença. Muitas vezes, totalmente, injusta com pessoas que agiram dessa maneira – afiança o rapaz.

- Cada caso é um caso.

- Sim. Penso que, quando o envolvimento é apenas físico, contorna-se melhor. Infidelidade grave é quando se refere a sentimentos. Ai, sim, envolve deslealdade.

- Essa é a regra?

- Talvez.

- Quem trai mais, o homem ou a mulher?

- Não existem estatísticas sobre quem trai mais no Brasil, se o homem ou a mulher. Mas uma coisa é certa, o homem trai mais por razões ligadas à necessidade sexual, o que ainda é um mistério da ciência. A mulher trai quando se sente subnutrida amorosamente, quando o companheiro se torna agressivo, mal humorado e mantém atitudes depreciativas em relação a ela. Aí, pode acontecer.

Pausa. Suzana:

- De qualquer forma não é legal. Mas, pelo que sei, homem nenhum tolera traição. Seja lá como for, faz parte do universo machista.

- É.

- A mulher pode até perdoar, não guardar rancor, mas nunca esquece quando seu parceiro pula a cerca.

- Com homem é mesmo diferente. Quase sempre não anistia uma traição, até porque em nossa sociedade o cara traído é considerado um ‘senhor boçal’, enganado, tripudiado..., sei lá mais o quê?

- Acha?

- O coitado sofre pela chacota dos amigos por todo canto. Pior, ele não tem como desabafar com alguém a desonra, morre de vergonha.

- Questão cultural.

- Aquela palavrinha horrível não sai da cabeça, principalmente, dos machões inveterados, bradando aos quatro ventos sua condição de ‘chifrudo’.

- Háháhá! Quem procura acha.

Depois de um gole de cerveja, Mathieu tenta ponderar, mudando o rumo da conversa:

- Estresse! O José Renato anda estressado.

- Tadinho! Está dizendo que o sujeito precisa de um pouco mais de tolerância. É isso?

- Ele trabalha muito.

- Sim.

- Pensa seriamente em ampliar seus negócios.

- Que conversa é essa?

- Pretende comprar a parte dos sócios no cursinho preparatório para o vestibular e, mesmo sendo Professor Emérito da UFMG, pretende deixar de lecionar Literatura na Universidade. Sonha ter o negócio todo seu.

Um leve tremor agita as comissuras dos lábios de Suzana, enquanto lançava, ao rapaz, um olhar entre assustado e curioso.

- O quê? Repete, não ouvi direito.

- Não sabe?
- Nada.
- Isso mesmo, quer ficar sozinho no comando da Escola Preparatória.
- Sério?
- É o pulo do gato, não se aborreça.
- Mas...
- Nada para se preocupar. Pelo contrário.
- Meu Deus, ele pensa em fazer isso, Math?

- O Zé apresenta disposição, alma de empreendedor, os dois pés firmes no chão e uma visão extraordinária de mercado futuro. Percebe, como ninguém, o avanço da economia brasileira no momento.

- Háháhá... Piada, não é? 
- Algum problema?
- Todos e mais alguns.

- Não o subestime. Seu marido corre atrás de um velho sonho. Está no caminho certo. Ele vai dar 101% de si para o negócio prosperar, paixão pelo trabalho. Pode crer.

- Filho da mãe!

- Implica não. O negócio é ótimo, uma excelente máquina de fazer dinheiro em Belo Horizonte. Não existe na praça melhor seguimento para traduzir em números o desejo de quem quer ficar rico em pouco tempo.

- Delírio. Vocês dois estão delirando.

- Não é não. Trata-se de um empreendimento bastante robusto que pode levá-lo a ser dono de um verdadeiro império na rede escolar do futuro – assegura o rapaz.

- Ideia de péssimo gosto, pode não prestar.

- Ora, ele acredita no seu ‘taco’. Quer mergulhar de cabeça no empreendimento, tempo integral. É um bom negócio.

- É uma coisa de risco.

- Sim. Todo negócio tem seu risco. Mas, é preciso dar um passo para trás para dar um salto à frente. E depois, é uma iniciativa na área da Educação, ‘né? Seu marido, sempre esteve atento em questões ligadas ao ensino, sabe bem disso.

- Ai, nem quero detalhes - expressa Suzana enfática.

Risos. Mathieu:

- Está vendo, mulher adora contrariar.

- Ora, Math, dinheiro em demasia significa muito poder nas mãos de uma pessoa. Onde reina o poder, a sensibilidade humana esvazia.

- Ora, Suzana, não faz pouco caso. Existe no ser humano um desejo natural para melhorar a sua condição de vida, receita o filósofo escocês Adam Smith. Até Mao Tse Tung, imerso na sua maior ambição, admite que a verdade é que enriquecer é glorioso.

- C’est de la merde!

- Iiiiiiii... Não faz essa carinha. Seu marido vai se dar bem, claro. Ele tem know-how e estrada. Raposa que vê o futuro, acredite.

- Conheço a peça: raposinha ardilosa como nenhuma outra. Foi depois que ele inventou de fundar esse cursinho, que nossa relação entrou em parafuso de vez. Nada bateu mais.  Hoje ele só pensa em fama e dinheiro.

- Caracas!

- Quando se começa a olhar para o lado financeiro com tanta ambição não se pensa mais na vida amorosa, rompe até os laços de convivência familiar, porque a existência passa a ser calculada em termos de rentabilidade. É repugnante, Math!

    - Menos, querida.

- A ganância é uma máquina perigosa, avarenta e cega, pode crer.

- Putz!

- É o caso. Meu marido sai de manhã, passa aqui voando para almoçar e só volta tarde da noite, como se a gente estivesse brincando de gato e rato. Mal vê o filho crescer. O cara passa o dia inteiro na correria, sempre consultando o relógio. Tudo pelo dinheiro, o resto ele bota para escanteio. Esposa, filho, casa é para ele apenas enfeite - aborrecida, lamenta Suzana.

- No início é assim mesmo, querida.

- Háháhá! Desculpa mais esfarrapada.

- Desassossegue não.

- Está semeando ventos que vão produzir uma tempestade em nossa relação. Espere só para ver.

- Com o tempo as coisas chegam nos eixos.

- Nunca. O dinheiro, Math, pode comprar uma casa, mas não um lar. Via de regra, o resultado é desastroso, catastrófico.

 - Não pense assim.

- Ora, Math, não acha que viver deve ter propósito maior do que trabalhar, ganhar dinheiro e morrer como um todo poderoso?

- Fica fria. Pelo que conheço do seu marido a família está em primeiro lugar, negócios em segundo. É o que ele me passa.

Pausa. Suzana com escarninho:

- A vida não é só dinheiro. Em demasia faz mal, animaliza. Vira piração.

- Talvez.

- Já leu o Grande Gatsby, livro de Scott Fitzgerald?

- Não, ainda não li – responde o rapaz.

- O autor registra as sutilezas da moralidade endinheirada norte-americana. Nesse livro mostra que o milionário produz seu próprio código de conduta. Leia. Vale a pena.

- Claro.

- Aí, vai me dar razão.

O rapaz, como se arrumando os pensamentos, reflete um pouco antes de falar:

- Não é o caso. José Renato é gente boa. Humanista por natureza.

- Ai que você se engana. Cada vez mais me convenço de que meu esposo sofre de psicopatia institucional. Ele quer para si toda a fama, toda a gloria e, também toda a fortuna.

- Ferina hoje, hein? – alfineta o rapaz.

Sem responder, a mulher se deixa cair para trás na poltrona, baixa os olhos úmidos e diz numa voz embargada:

- Aí tem.

- O quê?

- Coisas para complicar mais ainda a minha vida e a de meu filho.

- Está vendo, já ficou ‘jururu’ de novo! – observa o rapaz.

Suzana segura a respiração por dois ou três segundos. Depois, soltando o ar, expressa entristecida:

- Ai, um porre!

E escondendo o rosto nas mãos.

- Que mulher aguenta?

- Controle-se. Raiva não lhe faz bem.

- Não, não faz. Bem, bem... Quer mais um café, Math?

- Aceito.

- Ok. Um minutinho só.

A mulher deixa a sala e, instante depois, retorna com a chávena cheia de café.

- Pode tomar, está quente.

- Obrigado.

- Saaaaaco!

- Alguma coisa que eu possa fazer?

- Não sei.

- Sabe, sim. Vejo interrogações nos seus olhos.

- Não precisa ter essa preocupação comigo.

- Somos amigos.

- Quer saber, eu quero que ele vá para os quintos do inferno – esbraveja a mulher, em cujo rosto reproduzia o tédio que a insipidez da infelicidade pode causar.

- Que isso, Suzana?

- Seu amigo, de uns tempos para cá, é como uma doença que provoca mal-estar. Incomoda. Na verdade, não tolero mais olhar para ele que tenho vontade de esganar sua cara.

- Posso imaginar.

  - Em casa seu mau-humor, virou moda.

- O que não é bom. Tem como maior desvantagem a grosseria que acompanha esse estado de espírito, não é?

- Certamente. Amanhã vou entrar numa Igreja e rezar para que ele não volte tão cedo dessa viagem – protesta Suzana com ares de preocupação.

- Caracas!

- Por mim, ele pode desaparecer do mapa, evaporar.

- Putz! Sem ele aqui até o ar fica mais respirável. Troço químico..., sei lá – conclui a esposa num ligeiro sorriso de ironia.

- Difícil de imaginar tudo isso. José Renato é um cara que se dá bem com todo mundo. Gente fina, boa-praça.

- Até parece!

- Hein?

- Idôneo, mas nem tanto.

- O que está querendo me dizer?

- Ora, Math, gente fina não engrossa, não trapaceia. Não humilha, não esnoba, muito menos julga alguém. Aquele seu jeito de ser inofensivo é balela. Ele possui faces que você não conhece nem pode imaginar. Um camaleão! Digo mais: só preserva os amigos que lhe interessam, bem situados na vida.

- Não sei. Não sei. Comigo ele é legal, meu chapa. Mostra-se interessado no meu crescimento literário.

Pausa. Suzana admirada:

- Nossa, Math, que rasgação de seda! Não imaginava que eram tão afinados. Almas gêmeas?

O rapaz retrai o sorriso. Faz um sinal com a mão:

- Menos, Suzana.

- Ninguém é só o que parece ser. Escondemos de todos, e de nós mesmo, o que temos de pior. Sabe disso melhor do que ninguém.

- É assim?

- O que somos de verdade fica camuflado no inconsciente, como um motor de pouco barulho. Clarice acertou em cheio ao afirmar que o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.

- De pleno acordo.

- As pessoas nem sempre são aquilo que parece ser, viu?
            - Caramba!

- José Renato é péssima influência para você. Um mascarado. Ambivalente como ninguém, ele reúne vários ‘zés’ dentro de um só.

- Não é o que se nota.

- Claro. Na rua o ‘babado’ é outro, ele segue o rastro do leão manso, macio por fora e duro por dentro. Desapega, enquanto é tempo.

- Putz!

- O verdadeiro homem é o que está oculto no próprio homem. E o grande erro é ver no ente exterior o ente real, viu?

- Viu.

Suzana dá-lhe um leve beliscão nas costas da mão esquerda, dizendo:

- Você não precisa chaleirar nem ficar babando ninguém. Deixa de ser besta, sô!

- Hein?

- É um jovem de talento. Não joga isso no lixo não.

- Devo aos meus amigos, mais do que todos a José Renato, a oportunidade de estar aí no mercado editorial, elaborando com mais pretenções o meu trabalho.

- Best friends?

- Bons amigos, sim. Além de aprender muito com sua amizade, por meio dela, entrei em contato com a cena literária da cidade. Com a amizade dele que os meus valores começaram a mudar, dando partida a uma odisseia que ainda não chegou ao fim. Foi mesmo um encontro interessante, estou muito entusiasmado.

- Eu sei.

- Corro atrás de meus sonhos, Suzana. Sempre tive muito foco e profissionalismo. As coisas ficam melhores para aqueles que procuram ajuda dos mais experientes, não?

- Ã-Hã.

- O Zé me apoiou desde o início. Seu marido é uma das figuras mais influentes no mundo das artes da Capital Mineira. Sabe disso, ‘né?

- Seu protégé?

- Para mim, ele se tornou uma figura admirável, até porque vivemos mais ou menos dentro do mesmo ideal. Além de amigos, como disse, é meu fiador literário e mentor intelectual. Sou-lhe grato pelas portas que me abriu. No mais, sinto que muitos fatos marcantes ainda estão por vir - acentua o rapaz com firmeza.

- Imagino.

- Não posso negar que as pessoas mais velhas que conheci, sempre me passaram um bom aprendizado de vida.

Suzana coloca a mão direita no joelho do rapaz, dizendo:

- Esquenta, não. O Zé também ganha com sua juventude. Não lhe deve favor nem satisfação. Uma troca. Põe isso na sua cabeça e cuide de seu futuro.

- Nem sei o que dizer.

- Pense o que quiser. Mas, fique sabendo que, em casa, o único idioma que seu amigo conhece é o da autoridade. Abusado demais da conta, falso.

- Não é melhor ter mais compreensão com seu marido?

- Só noutra encarnação, porque nessa já perdi seu amiguinho de vista.

- Caramba!

- Abra os olhos, cara. Sob essa sombra de bonzinho o que há é um lobo em pele de lobo mesmo. Ele tem dupla personalidade. Depois diga que não lhe avisei.

- Sem baixar o nível, por favor.

- Tem um provérbio chinês que meu pai falava sempre: prepare seu cocuruto àquele que você mais confia, porque dele poderá vir grande cacetada.

- Nada a ver.

Suzana reabre o sorriso, dizendo:

- Nem tanto ao céu nem tanto ao mar!

E sugere:

- bom. O que você acha de mudar de assunto, porque não aguento mais sua adulação pelo José Renato.

- Boa pedida.

- Então me deixa respirar um pouco.

- Respire.

- Deus é mais!

- Dê cá a sua mão, querida. Quero sentir o calor de uma mulher virtuosa e muito bela.

Suzana estende o braço e aperta a mão do companheiro, demoradamente. Ele coloca o cigarro na boca, traga e, pensativo, começa a distrair seu olhar nas volutas de fumaça.



 


* FBN© - 2012 – Apenas um Sonho..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  Nu, de Di Cavalcanti – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/9ix-revelacoes-intimas.html?zx=4dd0c056f5d6731c





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