*
Com todas as letras
Repórter WAP/ EM. Revelações de um cronista jovem - 1968
- Foto: Miro Sopeña.
- Foto: Miro Sopeña.
Suzana,
depois de rápidas anotações na folha de papel, imposta a voz e articula a
primeira pergunta da entrevista com o amigo:
* Quando e como iniciou sua história com a
literatura?
A
leitura é uma atividade que me acompanha desde a infância. Não foi por acaso.
Tudo começou no colo de meus pais, dona Filhinha e seu Juca, que sempre me
contavam histórias e, logo no início da vida escolar, quando aprendi a decifrar
a escrita, peguei gosto pelos livros. A partir daí criei intimidade com as
palavras e nunca mais deixei de ler, certo de que alguém, inteligente e lúcido,
iria me passar coisas importantes para o resto da vida, influenciando minha
formação, minhas convicções e sensibilidades.
*
E a vocação para a escrita?
Muito
cedo percebi que ler e escrever eram prazeres que se misturavam. Aos dez, onze
anos já rabiscava uns versinhos para minha mãe. Foi o começo de uma paixão
eterna. Entre quinze e 17 comecei a escrever ensaios, narrando para outras
pessoas o que gostaria que fosse dito a mim. Tomei gosto pela coisa. A motivação
para escrever passou a ser a mesma que a motivação para respirar e me manter
vivo. Parafraseando Guimarães Rosa, também descobri que a língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam
apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção eclesiástica e
científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me
preocupa. Minha amante é mais importante para mim.
* Como tinha acesso aos livros na juventude?
Comprava
dos vendedores que passavam oferecendo coleções na minha cidade. Adquiri muita
coisa boa, principalmente, do Círculo do Livro. Entre tantas, de Machado de
Assis com 31 volumes encadernados em capa dura. Por outro lado, meu primo,
Newton Santos Brito, que era assinante do jornal Folha de São Paulo, sempre de
me passava o caderno cultural para eu ler crônicas, contos, poesias, ensaios,
resenhas literárias. Fato que me introduziu, definitivamente, na república das
letras.
* Seus textos surgem de forma espontânea, partindo do ponto zero ou transforma algo ocorrido em literatura?
* Seus textos surgem de forma espontânea, partindo do ponto zero ou transforma algo ocorrido em literatura?
Quando
decidimos ser escritor, qualquer coisa serve de inspiração para dar início a
uma história, sabendo que ela está na paixão pela vida. Eu, por exemplo, apanho
o fundamental da existência e escrevo sobre o mais próximo de mim. Afinal, é
preciso transformar a vida para cantá-la em seguida, ensina Maiakovski.
* Quanto de sua história está contada em suas obras?
Um
pouco, claro. O escritor Bartolomeu Campos de Queirós certo dia me disse que o
escritor é, antes de tudo, alguém que escuta a si mesmo. Desse modo, posso
dizer que parte de meus ensaios são alimentados por coisas que vivi. Mas não
são autobiografias. Tanto que, muitas vezes, o personagem original se
transforma na medida em que a história progride, abrindo caminho para outro que
eu próprio desconheço. Acontece.
* Onde busca inspirações?
Especialista
em desvendar a natureza humana, eu perambulo pelas ruas e praças das cidades
para falar com a população, e tirar de cada pessoa alguma coisa que tem para dizer
das coisas de todos os dias. Como gente inspira gente, anoto tudo. É o ouro
cultural garimpado todo dia que me oferece os motes e os personagens para meus
ensaios. Tenho paixão pela história das pessoas, porque a vida e a literatura
são duas coisas profundamente interligadas. Nesse exercício diário de catador
de memórias, descubro em cada esquina, em cada olhar, ecos de uma boa fantasia
para recontar, aumentando alguns pontos. Dessa forma, aprimoro a capacidade de
narrar fábulas como se fossem minhas, e contar as minhas como se fossem dos
outros. Tchekhov, mestre em escutar as pessoas discorrendo sobre suas vidas,
também era doutor em recolher historietas na busca de um fio narrativo. Apaixonado
pela cultural oral e pelos personagens populares da rua, ele não escondia que
tinha neles sua eterna fonte de inspiração. Enfim, os dramas humanos são
universais, um mar de história viva que deve ser contada.
* Como escolhe os temas?
Na prosa
como nos versos vou fundo em questões da reminiscência, do comportamento
humano, encontros e desencontros. Material minerado, eu rascunho em bloquinhos,
sempre ao alcance das mãos, para não perder de vista o que me interessa.
* E a composição de seus personagens?
Ciente de
que os personagens têm que ter e respirar vida, ou não são nada, crio através
da observação de pessoas ao meu redor, do povo e da imaginação. Junto tudo e
logo nascem figuras teatrais, prontinhas para a sua luta particular. Detalhe:
todos têm um rosto com características corporais e psicológicas, pois não são
apenas elementos gramaticais de uma massa anônima. Posso garantir.
* Entre o processo de criação do poeta e do prosador, o que há
de diferente?
Penso que
bom de texto é aquele autor que escreve poemas em prosa, e narrativas com boa
dose de poesia. No mais é ter material literário na mão e talento para enxergar
além da superfície das coisas. Moral da história: um ensaio deve apresentar
alma e substância para comover o leitor, porque, o que vale mesmo é saber que
meu texto pode alcançar um indivíduo do mesmo jeito que o de outro me tocou um
dia. Isso que conta. Eu quero que meus leitores, de qualquer idade e classe
social, se emocionem com meu trabalho e, no final da leitura de cada obra,
possam dizer: valeu a pena.
* Como é a experiência de escrever uma obra
literária ambientada no lugar em que você vive ou viveu?
Favorece,
sim. Nesse sentido a cidade passa a ser tão universal quanto qualquer uma
europeia ou norte-americana que a gente vê nos filmes, nos livros ou nas
revistas. Outro motivo é oferecer ao leitor condições de apreciar os
personagens no universo onde vivem.
* Qual
importância da literatura na sociedade?
Monteiro
Lobato dizia: quem não lê, mal fala, mal
ouve, mal vê. Paulo Freire completou, afirmando que a educação é parte de um projeto de libertação do homem; transforma a
vida das pessoas. Regras que, no geral, o Brasil pouco segue. Prova maior é
a baixa tiragem dos seus principais jornais – em cada mil habitantes, menos de
menos de 100 compram um periódico, diariamente. Isso aponta que a instrução no
Brasil está muito abaixo da média mundial. Não é bom. Nas palavras de Ezra
Pound: se a Literatura de uma nação entra
em declínio a nação se atrofia e decai..., os artistas são a antena da raça,
completa o poeta.
* Políticas culturais podem modificar a
realidade social?
A
arte e a educação no dia a dia das pessoas agregam valores, ajudam a humanizar
e a criar cidadãos conscientes para combater a deterioração social. Paulo
Freire defende que a educação não transforma o mundo, a educação muda as
pessoas e as pessoas transformam o mundo, porque nada detém o conhecimento.
Basta ver que nações que investem na cultura, como agentes de transformação social,
estão se dando bem ao mostrar que a informação é a maior arma de transformação
social. Exemplo maior é o da Coréia do Sul que, após investir pesado em
educação, começa a superar estragos da guerra, levando seu povo a um patamar de
desenvolvimento invejável em todos os níveis. Lá, você toma um taxi e o
motorista é capaz de contar, em inglês, a história inteira do seu país.
* Pensa, um dia, viver só da produção
intelectual?
Pretensão
de todo escritor. Pelo menos daquele que imagina uma vida que lhe permita
pensar e escrever pela manhã e passar o resto do dia observando o mundo à sua
volta. Um dia, quem sabe, poderei mergulhar de vez a cabeça no mundo das letras
e viver de literatura, porque escrever é o que sonhei fazer na vida e, quanto
mais você faz, melhor você fica. Por enquanto, consciente de que literatura não
dá retorno financeiro no Brasil, me viro como repórter e trabalhos esporádicos
para agências de propaganda, o que se chama freelance
no jargão profissional. Faço isso não só para garantir o pão de cada dia, mas
para sustentar minha vocação e celebrar a vida de sonhos e utopia, como um
escravo da criação à mercê das palavras. Conheço vários escritores, mas nenhum
que viva dos livros que escreve. Direitos autorais existem mais para garantir ao
editor o retorno do seu investimento e impedir cópias do seu produto. É isso.
* Ser
jornalista ajuda ou atrapalha o escritor?
Ernest
Hemingway falava que o jornalismo pode
ajudar muito o autor, desde que ele saiba saltar fora a tempo. Gay Talese,
um dos maiores jornalistas contemporâneos do mundo, certa vez disse que a vida de escritor é, ao mesmo tempo, um
retrato do ofício do jornalismo e uma soma de reportagens sobre a vida dos
outros. A impressão final é a de um filme que poderia ser mais breve. José
Loureiro, por sua vez, assegura que o escritor,
atualmente, deve ser jornalista, pois o realismo mágico da literatura é muito
fácil de ser encontrado na nossa realidade e ao alcance do jornalista. Até é
preciso ter certo cuidado ao falar da realidade, para não ser mágico demais!
Para Loureiro, todo escritor é um cronista social do seu tempo.
*
Auxilia?
Dá
caminhos, sim. Na redação de um veículo de comunicação aprendemos que concisão
e prosa fluída são cobranças inquestionáveis dos leitores. Tudo pode ser
editado, até bons conceitos. Não há assunto que, em sua essência, não se
acomode numa lauda apenas, porque artigos curtos são os únicos que o povo lê.
Para isso, seguimos regras que doutrinam como organizar as ideias, ter
pensamento lógico, fala adequada e correção gramatical – diante das palavras
duvidosas o autor deve ter a humildade de checar a grafia correta. No mais,
usar o ponto final em abundância, principalmente, quando a frase resiste a
qualquer reparo. Enfim, o negócio é desbastar o texto, burilar até a perfeição
em prol do ritmo da frase curta. Não é tudo, mas ajuda a ser um redator capaz,
porque a insatisfação é a marca do jornalista, do escritor. Tanto é assim, que
o jornalismo tem sido a instituição chave para a formação de literatos no mundo
todo, contribuindo para formar bons criadores intelectuais – quase sempre é o
fim do jornalista e o nascimento de um escritor. É o caso do escritor
colombiano Gabriel Garcia Márquez com seu livro Cem Anos de Solidão, lançando
em Buenos Aires em maio do ano passado pela Editorial Sudamericana. E depois, só por estar na mídia, ganhamos público e
credibilidade. A informação é poder.
* Como é o ofício
numa redação de um Diário?
Adrenalina
pura! Em um jornal a gente vive cada hora com intensidade a mil para dar conta
da produção diária, pois as coisas acontecem em períodos delimitados.
Produzimos a tempo, ou nosso trabalho não terá valor nenhum. E temos de
escrever bem, mesmo na correria, no esforço. É lei. A matéria não pode esperar,
porque o jornal respeita a exigência da banca, tem a hora certa do leitor que
gosta de ler uma matéria bem polida, sem palavras fora do lugar ou termos mal
empregados, atenta ao rigor estético.
* Imagina trabalhar só para a Editoria de Cultura?
Ah, sim,
até porque crônicas e contos são terrenos em que me sinto bem mais à vontade e
motivado. Gosto de trabalhar a ficção, de criar, gosto do processo do fazer da
literatura um exercício diário, porque a gente aprende é fazendo. Sem falar que
o jornalismo cultural é o lado mais intelectual da carreira, a parte relevante de
uma escalada profissional para atingir a entrega total às letras. Jornalistas e
escritores têm muito uns com os outros, pode crer.
* Por isso é estimulado a escrever contos, crônicas e poesias?
Sim,
claro. A criação é um mistério. Dá prazer e alegria. Os versos, quase sempre,
surgem de forma espontânea, vem de estalo..., quando querem. Garcia Márquez
defende que poesia é uma potência
guardada no interior de todos os homens, que desperta as forças secretas do
idioma. Por sua vez, como gênero narrativo colado às vozes do
cotidiano, as crônicas se tecem nos limites, têm fronteiras demarcadas. Por sua
vez, o conto literário é outra coisa. Sem amarras, pode mudar de tom e de voz,
falar na primeira pessoa, na terceira, ir até onde alcança a imaginação do
autor. Os Ibéricos antigos, sabiamente, diziam que os contos são recortes do
romanção comum da vida, portanto, quando a história começa a ter vírgulas
demais é porque está chegando a hora de colocar um ponto final. É o poder de
síntese, a concisão.
* Produzir contos é mais difícil do que escrever romances?
Sobre
os romances o escritor Júlio Cortázar fez uma analogia entre o universo da
prosa e do boxe. Para o argentino, no combate que se dá entre um texto
apaixonante e seu leitor, ‘o romance
sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute’.
E completa, advertindo: ‘não se entenda
isso demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto,
e vários de seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na
realidade, já estão minando as resistências mais sólidas do adversário’. Em
resumo, escrever contos exige tanto sacrifício quanto escrever romances.
Qualquer texto literário é como um animal vivo com a sua respiração, sua pele e
sua temperatura. Difícil mesmo é, ao mesmo tempo, ter habilidade para encontrar
palavras certas, unidade dramática e tom para compor o ritmo da narrativa. Sem
rodeios e floreios, óbvio. É a simplicidade que vai desencadear a fantasia do
leitor, já que o que eu escrevo é escrito
porque tem que ser escrito. Porque a ideia nasce por conta própria e exige ser
dita, já dizia no limiar de nosso século o escritor norte-americano Howard
Phillips Lovecraft.
* Um contista como referência?
Tchekhov,
considerado um dos mestres do conto moderno. Minha tentativa é ser iluminado
por Anton Pavlovitcht Tchekhov, o autor que mais se aproxima do que eu tenho em
mente ao narrar o cotidiano, com tinta meio que autobiográfica. O escritor
russo, como ninguém, sabia que o prazer e o efeito literário de um bom conto
estão ligados a certo sentido de completude, de desfecho. E mais artístico fica
quando a história termina com uma leve suspensão. Sabia Anton que prosa
límpida, fluída como conversa num banco de jardim público, ou numa mesa de bar,
é tudo. Isso contribui para sustentar a atenção do leitor, principalmente, num
romance em miniatura, como considerava seus contos, marcados por diálogos.
* Quando chega o
seu romance?
A
pergunta é recorrente no cotidiano de um contista, ou de um cronista.
Curiosidade inteligível, embora traga a sombra de uma cobrança. Um dia, mesmo
sabendo que é uma corrida de longa distância, lanço meu romance. É o caminho
natural de todo mundo que escreve e sonha ser reconhecido como escritor de
fato.
* Com trama envolvida em sexo?
Sou
voyeur do erotismo. Como se trata de
uma linguagem universal, qualquer literatura romântica sabe que amor e sexo
estão ligados ao mundo das paixões. No fundo, todo romance precisa ter, no
mínimo, uma fagulha de sexo incorporada para tornar o texto sedutor e estimular
a imaginação do leitor. Tanto é assim que, nas palavras do escritor Wander
Pirolli, a vida e a literatura são duas
coisas profundamente interligadas, e toda literatura que se afasta da vida é
falsa. Permeando por esses elementos, somados a alguns outros como
mistério, bisbilhotice, inquietação, sabemos que qualquer ensaio literário pode
render cenas docemente pornográficas, adequadas para desencadear reflexões
admiráveis sobre o ser humano. É necessário possuir uma inquietude, um mal
estar, um conflito, uma pergunta para que se tenha uma história interessante.
Dessa forma instrui Drummond que prefere o refinamento
das metáforas e dos eufemismos, poupando palavrões ao explorar a temática
erótica.
* Há receita para o sucesso?
Não há
fórmula pronta para atingir o grande público. Prevalece a capacidade de
apresentar um trabalho de bom nível, porque se o leitor travar nas primeiras
páginas troca de livro sem pestanejar. O importante é ter boa história para
contar e conhecer bem o tema que desenvolve para persuadir os leitores de que
aquela fábula é real. Depois de escrita, ouvir a própria voz. No mais, é
recomendado deixar os originais por um tempo razoável numa gaveta lacrada. Mais
tarde, se o livro ainda respirar e emitir o cheiro das palavras, você pode
correr atrás de uma editora com menor risco de jogar letras ao vento. O sucesso
é consequência, vem depois.
*O escritor deve ter preocupação em combater
o lugar-comum na linguagem?
Oscar
Wilde dizia que criar um lugar-comum é
ter gênio, usar o lugar-comum é ser medíocre. Ele quis dizer que devemos
fugir das soluções fáceis que já veem prontas. Qualquer um que se dedica a
escrever para outros lerem sabe que escrever uma boa história exige muito do
autor. É do ofício inovar meios e formas de expressão para sustentar a
vivacidade da voz narrativa.
*Quais suas influências como escritor? Que
trabalhos e autores mais influenciam o seu trabalho?
Falar
disso é complexo. Mas, posso afirmar que não existe ninguém que ensina
literatura. Isso nós aprendemos lendo grandes obra que ampliam nossas
referências literárias. Com as portas da percepção abertas, incorporei
múltiplas influências de autores consagrados. A lista é extensa. Todos foram e
continuam importantes em minha formação literária. Na verdade, tudo que a gente
lê, vê e escuta, se é bom, fica na memória e ajuda a construir o nosso universo
particular através de um estilo próprio, em que se perceba de quem é a dicção e
de quem é pena. Certa vez, Guimarães Rosa revelou que, aos 21 anos, seus quatro
primeiros contos premiados pela revista O Cruzeiro foram escritos rastejando o
modo de narrar de grandes escritores. Nada de novo. No trabalho intelectivo,
talvez não exista criador que não tenha sido influenciado por outros escritores
até encontrar a embocadura do estilo que passa a dominar, imprimindo a marca
autoral em seus ensaios. Lá atrás, como qualquer adolescente com imaginação
viva e pretensiosa, eu tive meus momentos de mergulhar no universo literário de
José de Alencar, porque sentia afinidades atávicas com o escritor cearense. Obras
tão romanceadas e feitas de combates que me instigaram a rabiscar qualquer
coisa numa imitação amadora. Depois de ler Iracema, escrevi Yara. Um pouco
disso.
* Por que esse nome?
Conta-se
que Manuel Bandeira passava sempre em frente a um hotel no Rio de Janeiro que
se chamava Península Fernandes. Um dia, entrou e perguntou ao dono o porquê do
nome. Sem titubear ele respondeu: Fernandes porque é meu nome e península
porque é bonito. Yara porque é um nome bonito, pomposo e leve do
Tupi-Guarani.
* Qual o melhor dia para escrever literatura?
O dia em
que estou de bem comigo mesmo. De baixo astral nem adianta tentar, porque,
entre o escritor de carne e osso e o narrador fictício reside a figura
provocadora do criador.
* Refaz seus trabalhados publicados?
Como
Rosa, em alguns casos, faço revisões em páginas impressas, sim. Às vezes
inúmeras revisões. Do início ao final da obra trabalho no polimento do texto,
mexendo em palavras até não enxergar mais nada que possa ser alterado.
* Censura de Imprensa?
Injuria-me
qualquer censura nos meios de comunicação, porque o autoritarismo representa
uma ameaça à livre expressão do povo, quer mesmo é calar a boca da imprensa
crítica. Prova disso é a Lei sancionada pelo Presidente Castelo Branco,
conhecida como Lei da Rolha, que já espalhou vítimas por todos os lados, e fez
das redações órgãos obedientes aos cortes que os censores militares impõem – os
milicos mandam e desmandam. Jornais, revistas, estações de rádio e redes de TV
são obrigados omitir conteúdo de interesse público, principalmente, dados em
relação à economia e à política brasileira - imagem ofensiva ao brasileiro e ao
mundo. O certo é que boa parte dos grandes jornais que apoiavam o golpe militar
de 1964, ao perceber que a informação passada aos leitores corre o risco de não
ser aceita por falta de credibilidade, já demonstra inquietação com a censura
militar. Portanto, mesmo que de forma dissimulada, alguns jornais começam a
abrir espaço para o noticiário, e até artigos assinados, divulgando os excessos
da Ditadura, conscientes de que a coisa mais importante que a imprensa deve
temer não é a censura, mas o fim do seu papel social. Isso mostra que a
imprensa, em nenhum momento, vai abandonar a luta contra a Ditadura. Resistir é
preciso, porque informação
e democracia andam juntas. Resumindo: até a
Bíblia condena a falta de liberdade de comunicação social. Em Mateus, leia-se:
... o que vos falei ao pé do ouvido,
publicai-o de cima dos telhados.
* O jornalista é porta-voz do povo?
- Há um
elo muito estreito entre o exercício da profissão de jornalista e o interesse
público. Para um profissional consciente, perante todos os valores que existem
no mundo, um é inegociável: a liberdade de expressão. No Brasil, mesmo com uma
penca de jornalistas presos e torturados pelos órgãos de repressão, alguns
deles não desistem de fazer do ofício um ato de resistência ao arbítrio, porque
a liberdade de comunicação para eles é um sonho real, é como sair da sombra e
passar a existir de forma plena. Na verdade, grande massa da população
brasileira, que não é bem informada, tem pouco conhecimento do que representa o
AI-5, mas todo jornalista sabe do desastre social que ele causa. Como também
sabe que o marketing político que
está na pauta para vender imagem positiva do Governo deveria ter sua embalagem
rasgada para mostrar o produto real. Portanto, é do jornalista o dever de
informar o que se passa em seu país, ainda que seja meio impotente diante do
sistema que, cada dia, torna mais afiada a tesoura da censura em nosso país.
Cabe ao profissional de imprensa a responsabilidade de garantir espaço para um
jornalismo crítico e independente em qualquer lugar do mundo, porque, quem mais
perde é a sociedade com o silêncio de um jornalista.
* Cooptação?
Abominável.
É uma tática usada pela Ditadura Militar que, muitas vezes, preenche cargos
públicos estratégicos, independentemente, de critérios externos para
contratação de pessoas que procuram a sombra do poder para fazer sua
independência financeira. Tanto é que alguns mitos da imprensa nacional aderem
a essa prática inefável, sem a menor preocupação com os princípios éticos do
jornalismo, colocando a mídia e o estado de mãos dadas. É fabuloso o magnetismo
do poder público para a imprensa! Basta lembrar que, durante a Segunda Guerra
Mundial, veículos de imprensa apoiaram Hitler em decisões vergonhosas.
* O que é liberdade, literalmente, falando?
Cecília
Meirelles dizia que liberdade é uma
palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não
entende. Liberdade se traduz na expressão mais genuína da essência humana.
É tudo.
* Dos anos 60, o que fica como legado?
Muito. Posso dizer que uma nova história está sendo escrita nesse momento,
principalmente, na luta pelos direitos civis. Outra filosofia! Embalados pela
energia contagiante do Rock’n’roll californiano, estamos rompendo fronteiras,
revolucionando o pensamento, construindo novas alternativas, vivendo momentos
que serão lembrados por gerações e gerações. Nutridos pelo movimento Hippie e por
diferentes bandeiras, estamos mudando a maneira de ser, de se vestir, de dicção
e de se relacionar uns com os outros. Em cinco de outubro de 1962, enquanto os
Estados Unidos e a União Soviética lutavam pela conquista da Lua, quatro rapazes
de Liverpool empunhando guitarras no lugar das metralhadoras, conquistaram o
planeta ao lançar a canção Love Me Do. Nos anos 60, graças à invenção da pílula
anticoncepcional a mulher recebeu sinal verde na conquista de seu espaço,
inaugurando o prazer sexual sem a ameaça da gravidez indesejada. E, de olho no
amanhã, estamos aí para passar às novas gerações a consciência de luta pela
defesa dos direitos do cidadão, aversão ao poder autoritário e a percepção do
equilíbrio ecológico nas questões ambientais, que mostram como usufruir da
natureza sem estuprá-la para vivermos um mundo melhor, preservando a
diversidade de flora e da fauna que sofrem em meio à ambição do homem. O futuro
do planeta já começou.A gente acredita que projetos sustentáveis podem fazer do
mundo um lugar melhor para todos.
* Pílula anticoncepcional?
Estou com
a escritora Pearl Buck. Recentemente, perguntada sobre a droga criada pelo
cientista Gregory Pincus, disse que todo mundo sabe o que a pílula é. Um objeto
pequeno, mas que pode ter um efeito mais devastador em nossa sociedade do que a
bomba atômica. A pílula veio para coroar novos horizontes do comportamento
humano, numa época obcecada pelo sexo livre. Enfim, a pílula deu à mulher
controle discreto e seguro sobre seu corpo, principalmente, porque não precisa
mais ter todos os filhos que a natureza determina. É o futuro do passado em
busca do prazer perdido!
*Aborto
Eu
defendo que, se houvessem políticas dinâmicas para a saúde feminina e da
natalidade no Brasil, talvez não houvesse procura por tantos abortos
clandestinos. Acho que a própria mulher deve decidir sobre o destino de seu
corpo.
* Como vê as mulheres no contexto sexual dessa década?
Avançando
cada vez mais. Para elas o sexo não é mais uma questão moral, mas de bem-estar
e de prazer. No auge de uma sociedade cada vez mais tolerante, elas estão
presentes e ativas no exercício de sua sexualidade. Mudaram os costumes,
modificaram os hábitos, alteraram os valores e a maneira de pensar. A revolução
está em curso. E têm brasileiras nessa poderosa conexão com o mundo que surge
do interior de cada um de nós.
* De que forma imagina a sexualidade no futuro?
Desencanada.
Sabendo-se que o amor se manifesta de várias formas, a questão da sexualidade
liberada é uma discussão que antecipa o futuro, mesmo com a Igreja e boa parte
da opinião pública ser, agressivamente, contra. Hoje em dia, bem mais do que
antes, é possível o desfrute sexual homoafetivo numa troca erótica mais
tranquila e divertida - não fará a menor diferença a identidade sexual do
parceiro. Dessa forma, podemos afiançar que o ser humano nunca vai deixar de
viver suas fantasias e ilusões sexuais, e tudo mais que pode o corpo e o desejo
dele, apesar das convenções morais. Até mesmo planejar o gozo em paraísos
artificiais será viável, experiência cada vez mais presente na vida de muita
gente, mundo afora.
*
Homofobia?
Acho que
a opção sexual é como ser católico, protestante ou budista, a chave está nos
prazeres e nas emoções de cada um. Foro íntimo, claro. Cada cidadão tem o
direito de fazer o que quiser da sua vida pessoal, regida ou não pela
inteligência erótica. A discussão é antiga. Ainda vai longe num debate aberto
entre o preconceito e o conservadorismo obscurantista, porque o universo
homossexual, com suas particularidades e diversidades, no futuro será visto
pela sociedade com naturalidade, sem despertar curiosidades, risos, cochichos,
hostilidades. Isso é falta de respeito com os gays que, acima de tudo, defendem uma relação de amor e de
respeito, apesar de quase sempre serem depreciados ou relegados a clichês de
‘bicha afetada’. Freud afirmou, e Lacan confirmou que o que causa a
homossexualidade é o mesmo que causa a bissexualidade e a heterossexualidade: a
escolha inconsciente de objeto do desejo, nada a ver com hipersexualidade. Portanto, nenhuma escolha é mais natural do
que a outra. Como os valores culturais da humanidade são dinâmicos, avançam e
registram alterações de comportamento, esses mesmos valores também determinam
as alterações nas condutas sexuais. Dessa maneira, acredito que, daqui a 50/60
anos vamos assistir cenas de casamento entre pessoas do mesmo sexo aos montes,
bem longe de serem apontadas nas ruas como figuras estranhas que caminham por
todo lado de braços dados. Eu, por exemplo, sempre coloquei em dúvida a
masculinidade daqueles, obsessivamente, preocupados ou ofendidos com o
homossexualismo, acreditando que a causa é uma perturbação psíquica que precisa
ser tratada.
* O amor?
É a
essência da vida.
* Amor
romântico?
Aquele
que prega a fusão de duas pessoas para se transformar numa só, uma completando
a outra? Não sei. Não sei. A verdade é que, numa época em que muita gente começa
a amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo está cada vez mais comum - sexo a três
-, e casais frequentam casas de swing
sem o menor constrangimento, esse modelo de amor romântico começa a sair de
cena.
* Já se apaixonou por uma professora nos tempos de ginásio?
Sim. Por
uma linda mulher que dava aulas de inglês. Fazia até poemas para ela. Em
inglês, evidente.
* O que é um abraço?
Para os poetas é um momento mágico.
Anatomicamente, os olhos se fecham, mas as pupilas continuam dilatadas. A boca
sorri em silêncio e o coração bate mais forte. O cérebro, por sua vez, tenta
desesperadamente parar o tempo.
* Que o tira do sério?
Injustiça.
Parasitismo. Egoísmo. Malversação do dinheiro público. Prefiro gente que é justa
com a sociedade e consigo mesma.
* Religião?
Fui
educado numa família católica, mais ainda procuro a veracidade sobre esse
fenômeno social. Minha religião é ser brasileiro.
* Sua relação com Deus
Nada
muito definido, mas torço para que ele exista de verdade.
* Livros?
Sou meio
utopista. Como entendo que o brasileiro não tem uma relação de necessidade com
os livros, quando aposentar, pretendo transformar uma Kombi, pintada de azul,
numa minibiblioteca móvel para empreender uma grande jornada pela formação de leitores.
Vou sair Brasil afora, oferecendo à meninada, um paiol de histórias para um
banquete de conhecimento com muita alegria e diversão. A ideia é criar uma
forma de promover a biblioteca itinerante para difundir a prática da leitura
nos quatro cantos do país. Combinação irresistível! Desse jeito, vamos fazer a
alegria de todo mundo e, desde cedo os brasileirinhos, começam a ter intimidade
com as palavras. Portanto, não tenho dúvida de que estimular o hábito de
leitura é a melhor maneira de alimentar esperanças de um futuro melhor para
nossa gente. Precisamos valorizar a escola como parte do futuro que precisamos
alcançar. Enfim, uma pessoa que lê vale por duas.
* Livros que marcaram?
Curto
um mundo de autores. Quase impossível destacar uns dos outros, porque cada
livro lido deixa sua pegada. Idade de Razão, de Sartre, me marcou muito.
A Cidadela, de Cronin, idem. São esses, entre outros, meus livros da vida.
Obras que deveriam ser lidas por todo mundo, principalmente, por pessoas
acometidas por uma doença que se alastra como a doença do século: a
superficialidade da alma. Posso dizer que o papel da literatura, em qualquer
idioma ou época, altera de forma positiva a vida das pessoas.
*Autor preferido?
Tenho
minha biblioteca preferida. Posso afirmar que o papel da literatura em qualquer
idioma, aumenta muito. E cada época produz não só os seus talentos como também
a balança com que se deve pesá-los.
* Música?
Música é
socialização. Escuto de tudo, porque melodia não tem gênero, vale a
criatividade do autor. Gosto da música de raiz aos clássicos. Acredito que a
boa música ajuda na reflexão literária.
* Sétima Arte?
Aaiaiai!...
Difícil... Difícil responder para um cinéfilo como eu, porque no fundo, no
fundo somos todos apaixonados pela luz que sai dessa geringonça chamada
projetor. Entre centenas de filmes que vieram para revolucionar a forma de
fazer cinema no mundo, destaco o hiperclássico Cidadão Kane com sua
esplendorosa e poética fotografia em preto e branco, mostrando as cores de um
palácio extravagante projetado na Flórida, semelhante ao que o magnata das
comunicações William Randolph Hearst tinha em San Simeon. Construída com
rigores geométricos, a película concentra em si todos os assuntos do cinema:
amizade, amor, fama, política, dinheiro, memória..., e tudo o mais que
almejarmos. Também imagino que sobreviverá, entre outros, pelo papel
determinante na indústria cinematográfica o filme Um Corpo que Cai, de Alfred
Hitchcock. A atriz Kim Novak está muito bem no papel principal.
* Personagem histórico preferido?
Santos-Dumont.
O cientista brasileiro Alberto Santos-Dumont que teve o poder de dar asas ao
homem e quebrar as barreiras do espaço.
* Morte?
Encanta-me
não pensar na transitoriedade da vida, muito menos cortejar a morte. Como vida
e morte são irmãs univitelinas, a última verdade da existência humana vai me
encontrar amando e escrevendo, porque não acredito na vida após a morte.
Portanto, gostaria de ir para ‘todo o sempre’ como o velho Zorba, o grego: em
pé na janela, de olho no infinito azul engolido pelo cenário mágico de mais um
dia se entregando, lascivamente, ao silêncio da noite. Na minha lápide quero
escrito em latim: Não espero nada. Não temo nada. Sou livre. Exatamente como no
túmulo do cretense Nikos Kazantizakis, morto em 1957.
* Drogas?
Merece
mais discussões. Brincadeira à parte, eu penso que a legalização da maconha
para quem tem mais de cinquenta anos seria uma boa pedida. Vários estudos
científicos registram que os agentes ativos da erva têm efeitos significativos
como analgésicos, especialmente em dores decorrentes de danos nos nervos. Isso
é, as dores crônicas. A descriminação é uma decisão que cabe a sociedade
debater de forma ampla e irrestrita. E não casuística.
* Que lhe aborrece?
Ingratidão.
* O que lhe diverte?
Meus
amigos, principalmente.
* Lugar
favorito?
Qualquer
parque ecológico com um banco de madeira sombreado, onde possa sentar e observar,
ao ar livre, o que acontece ao meu redor, preferencialmente, diante de uma
folha de papel ao alcance de minhas mãos; não há convite mais sedutor para
passar o tempo e refletir. É superbacana apreciar macaquinhos, esquilos e
borboletas coloridas que chegam e escolhem flores para pousar. Na quietude
quase silvestre de um lugar como esse, além de pios majestosos dos pássaros,
escuto do próprio coração os batimentos. É nesse playground de diversão do cérebro - espaço para o diálogo interior
-, quase sempre ao lado de uma estátua branca de mulheres gregas, que reflito
sobre valores como bem-estar, ética e justiça, que devem ser estimulados na
comunidade. É a onda boa que abre minha mente e oferece inspiração e clorofila
para os pontos e vírgulas de um texto inconcluso. Fascinante! A sensação de
fazer parte da natureza é total. Enfim, são momentos de beleza pura em que tiro
o pé do acelerador, todo tempinho livre que tenho, para encontrar tudo que
necessito fora de casa, natureza e adrenalina.
* Como é o paraíso?
Cheios de
deusas, sorrindo. Imagino.
* E o inferno?
Melhor
perguntar a Dante Alighieri.
* Viu alguma vez a mulher mais bela do mundo?
Vi, sim.
Minha mãe.
* Vida em outros planetas? Óvnis?
Não há. O
homem sabe que existem milhões de galáxias espalhadas pelo infinito, mas é
quase evidente que planeta habitável só o nosso. Estamos sozinhos no universo,
o céu está vazio de vida e a terra nunca
foi beijada, afirmava o filósofo Shopenhauer. Ainda ontem, recebi o segundo
número da Ebal. Folheei a revista por curiosidade. Não sou curtidor do gênero,
portanto não acredito em discos voadores. Pura fantasia!
* Cibernética? Computadores?
Eu amo a informática. Com a evolução dos aparelhos de inteligência artificial, a ciência caminha para unir homens e máquinas, através de um avançado processamento de dados - dispositivos que demandam mais neurônios do que músculos para serem operados, prometendo fabulosas mudanças com a era digital no futuro. Ao que tudo indica, a meta da computação eletrônica é transferir até a consciência humana aos computadores. Tanto é assim que, desde os anos 1940, cientistas criam supermáquinas com a missão de armazenar, em um banco de dados, boa parte de nossas obrigações e memórias na memória desses dispositivos de alta tecnologia, que transformam o mundo cada vez mais digital. Isso significa que o século 21 será conectado a tecnologias que terão total domínio no mundo virtual, tanto que ‘estar plugado’ será sinônimo de oportunidade e de prazer. Vai chegar o dia em que a ciência mudará a matemática: um será igual a dois, três, cinco... Quem sabe até favorecer ao ser humano a possibilidade de namorar belos robôs eróticos! Isso é bom ou ruim? É o que a gente vai sentir lá na frente. Refletir sobre essas e outras questões relativas às relações virtuais entre as pessoas é, no mínimo, uma interessante temática pós-moderna. Por enquanto, entre a realidade e o delírio, existem mais perguntas do que respostas, garante o projeto Arpanet, desenvolvido pelo Departamento de Defesa Americano. Mesmo longe do Santo Graal, já temos muito que comemorar e sonhar em viver plenamente as teorias de Paul Lafargue, ditadas em seu livro Direito à Preguiça, escrito no século 19. Não podemos ir contra a tecnologia.
Eu amo a informática. Com a evolução dos aparelhos de inteligência artificial, a ciência caminha para unir homens e máquinas, através de um avançado processamento de dados - dispositivos que demandam mais neurônios do que músculos para serem operados, prometendo fabulosas mudanças com a era digital no futuro. Ao que tudo indica, a meta da computação eletrônica é transferir até a consciência humana aos computadores. Tanto é assim que, desde os anos 1940, cientistas criam supermáquinas com a missão de armazenar, em um banco de dados, boa parte de nossas obrigações e memórias na memória desses dispositivos de alta tecnologia, que transformam o mundo cada vez mais digital. Isso significa que o século 21 será conectado a tecnologias que terão total domínio no mundo virtual, tanto que ‘estar plugado’ será sinônimo de oportunidade e de prazer. Vai chegar o dia em que a ciência mudará a matemática: um será igual a dois, três, cinco... Quem sabe até favorecer ao ser humano a possibilidade de namorar belos robôs eróticos! Isso é bom ou ruim? É o que a gente vai sentir lá na frente. Refletir sobre essas e outras questões relativas às relações virtuais entre as pessoas é, no mínimo, uma interessante temática pós-moderna. Por enquanto, entre a realidade e o delírio, existem mais perguntas do que respostas, garante o projeto Arpanet, desenvolvido pelo Departamento de Defesa Americano. Mesmo longe do Santo Graal, já temos muito que comemorar e sonhar em viver plenamente as teorias de Paul Lafargue, ditadas em seu livro Direito à Preguiça, escrito no século 19. Não podemos ir contra a tecnologia.
* Milagre econômico?
O
mandachuva das finanças brasileiras, ministro Antônio Delfim Neto, consagra-se
como excelente guru do crescimento da nossa economia. Com esse choque de
capitalismo ativo, fomentado pela política dirigista do Governo, experimentamos
novos avanços no aspecto da econômica. A sensação é que o país está bombando em
quase todos os sentidos, mesmo que orquestrado por uma Ditadura Militar. Torço
para que o Ministro da Fazenda tire o Brasil do subdesenvolvimento o mais
rápido possível.
* Um desejo?
Que a
democracia floresça por todos os cantos do planeta. Aqui, principalmente.
* O Brasil tem remédio?
Claro que
sim, a receita está na liberdade política. E, consequentemente, investir com
força na educação, ousar mais. Não há instrumento mais eficiente do que um
livro para o desenvolvimento socioeconômico de uma nação.
* Muito bem, para terminar, fale sobre o Brasil de hoje no plano
político?
Na arena
de nosso teatro político, semana passada a Capital Federal reafirmou sua fama
de viver de costas para o Brasil real, alheia às demandas éticas de um governo
desejado. Com a sanção do AI-5, pelo General Costa e Silva, engalanado naquele
fardão de arrogância e arroubo, a Ditadura passou a ter a bala no tambor, o
dedo no gatilho e todo poder nas mãos da tropa linha dura do Exército do golpe
militar de 1964 para combater a ameaça vermelha. Agora, o Ministro José de Magalhães Pinto, das Relações
Exteriores do Brasil, parodiando Che Guevara, pode ocupar a tribuna diante da
Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, balançar a cabeça e admitir:
Temos que dizer aqui o que é uma verdade conhecida. Torturas, sim! Temos
torturado: torturamos e vamos continuar torturando enquanto for necessário. Mas,
isso não é o que o brasileiro quer. Basta ver a dimensão da marcha dos ‘100 Mil’,
a maior ação coordenada vista até agora contra a ditadura militar. Estudantes,
artistas, religiosos e intelectuais foram às ruas do centro do Rio de Janeiro,
no dia 26 de junho de 1968, para protestar contra o sistema político vigente.
Virou uma praça de guerra. De punhos cerrados, cidadãos indignados caminharam
pela cidade, gritando palavras de ordem contra excessos de órgãos de repressão
política. A revolta e a repulsa eram tão grandes que muita gente saiu de casa
com os bolsos cheios de bolinhas de gude, para atirá-las nas patas dos cavalos
da tropa de choque. Era soldado que não acabava mais. Mil. Dois mil. Nada mais
delirante do que, no meio daquela turbulência sacudindo as ruas do Rio,
assistir a queda de um soldado no asfalto - história verdadeira, embora envolta
pela neblina da anedota. Enfim, desforra que marcará para sempre a alma de
nossa gente que vivemos o período mais obscurantista da vida política do
Brasil.
Depois de
uma pausa, como se para recuperar o fôlego, Mathieu conclui:
O Governo
não pode tudo. A intromissão na vida privada do cidadão é uma afronta que mina
o ânimo de nossa gente e, sobretudo, ameaça a credibilidade do Brasil lá fora.
Muito triste! Tanto que a revista Veja, nesse 18 de dezembro, foi para as
bancas com a foto do presente Costa e Silva na capa sem palavras. Apenas a
imagem dele próximo a um quepe branco de almirante de esquadra, sentado no
Congresso Nacional vazio, metaforicamente, barulhento. Parabéns! Ideia nenhuma
poderia traduzir pior a significado do Ato Institucional número 5, com o qual,
numa sexta-feira 13, a Ditadura deu fortes sinais de que vai operar por mais
tempo um período de blecaute na vida
de nosso país. Olé, Brasil! Eu penso que se fossemos governado por Carlos
Drummond de Andrade, taciturno como é de estilo e feitio, nós teríamos uma
nação melhor e, com certeza, seu estado democrático de direito consolidado para
sempre, ciente de que política e ética podem e devem caminhar juntas. O Brasil
precisa e quer mudanças já. Merecemos, não?
Suzana de
pé, levanta as mãos e aplaude:
- Saí
bem, Math? Saí?
- Ótima,
mocinha, ótima. Show de bola!
- Que bom
que gostou!
-
Melhor, impossível.
- Jura?
- Tem
traquejo. Perfeita.
- Jura?
-
Inclinação e estilo de sobra. O resto é contar com um pouco de sorte e muito suor.
Na redação de um jornal não tem moleza – adianta o rapaz, surpreso com o
desempenho da amiga.
- Vou
redigir a matéria.
- Folgo
em dizer que foi muito legal ter sido entrevistado por um ‘foca’ como você,
linda e inteligente.
-
‘Foca’! Como assim?
-
No jargão jornalístico é o nome que se dá a uma pessoa que inicia seu trabalho
na redação de um veículo de comunicação. Pouco experiente, mas imbuída
curiosidades e boa cultura.
-
Ah, sim.
-
Se depender de mim já está contratada.
Suzana
ergue os olhos, expressando com euforia:
-
Ai, nem acredito! Nem acredito!
-
Vou falar com meu editor para iniciar como estagiária. No princípio, em troca
de aprendizado, vai trabalhar sem remuneração. Se deslanchar passa a fazer
parte da folha do jornal.
-
Por mim, tudo bem. Mas é permitido exercer a profissão sem ter o diploma?
-
O jornalismo, como algumas outras profissões de nível intelectual superior,
ainda não é uma atividade regulamentada para o exercício da profissão. Para
muitos nem é emprego, é ‘bico’. Boa parte acumula a redação com uma repartição
pública, principalmente. Na verdade, ainda somos menos profissionalizados e
mais boêmios, agasalhados por aquela visão romântica de uma carreira um tanto
transgressiva.
-
Entendo.
-
Os mais entusiasmados ainda acompanham a edição até a sua impressão, só para
ler o jornal de madrugada, na boca da rotativa. Acredita?
-
Legal.
-
Particularmente, eu acho bem-vinda a ideia do jornalista com grau de bacharel.
O diploma legitima o campo profissional, mesmo sabendo que a profissão não é
terminada numa Faculdade de Jornalismo. Não é possível ensinar alguém a
escrever bem, ‘né? Por enquanto, a vocação e a vivência pessoal substituem a
programação técnica.
-
Ai, nem acredito! - repete a mulher sem conter a alegria, mordendo a ponta da
caneta.
-
Em breve será uma jovem jornalista entre as poucas que trabalham no meio de uma
penca de repórteres talentosos e mafiosos. Terá muito trabalho,
principalmente, para cobrir passeatas de estudantes contra a Ditadura na
Avenida Afonso Pena.
-
Maravilha!
Pausa.
Mathieu:
-
Devo adiantar que vida de repórter é puxada. Não é mole. Como apurador de
notícias tem que ‘ralar’ muito, viver sempre no limite, pronto e preparado para
cobrir qualquer evento no dia a dia, o que quer que aconteça em qualquer hora,
em qualquer lugar. Mergulhar no assunto, pesquisar, fuçar e, a partir daí,
extrair sua história. Ser o mais rápido possível na edição de uma matéria de
peso, é regra para registrar boas imagens.
- Tudo
por um furo de reportagem?
-
Principalmente. Querida, se não tiver essa correria não é redação de jornal!
- Claro.
- Não é
para qualquer um. Muito esforço e determinação para buscar informações
verdadeiras e frescas. Ao bom jornalista nada de ficar sentadinho numa mesa, dependurado
num telefone tentando cumprir sua pauta. Precisa ir para rua, conhecer pessoas
e estar sempre à beira dos grandes acontecimentos.
- Legal.
- Numa
entrevista previamente agendada, seja quem for, o repórter deve se aproximar do
interlocutor com um olhar vivo e intenso, como se o chamasse para uma conversa
fluída e inteligente. É assim.
-
Tudo bem.
-
Ao jornalista tudo interessa. Da matemática ao conhecimento da história da
humanidade. Para fazer uma boa matéria, o profissional tem que investigar e, na
maioria das vezes, pegar o rastro de um acontecimento e impedir que algo
valioso vá embora, ensina o seu futuro editor geral, Gonçalo Coelho, que vive
dizendo, lá do mesão do copidesque, que ninguém sabe o que se passa entre as
páginas escritas e a pessoa que as lê.
- Ai,
será que estou preparada?
-
Claro. Só encarnar o espírito do jornal e não medir esforços para aplicar os
pontos cardeais de nossa bússola particular: Quem? Quando? Somo? Onde?
Por quê? Interrogações que nos levam à determinação de ser jornalista em tempo
integral, fascinado pela informação. No mais é saber que todo jornalista deve
ter por obrigação ser leitor de bons livros, de grandes jornais, da vida e de
si próprio. Criatividade é treino.
-
Claro.
-
Saber fazer jornalismo é muito mais do que narrar um fato, é saber contar a
história com clareza e objetividade.
-
Com certeza – anui Suzana.
Mathieu,
depois tomar um gole de cerveja e solver uma boa tragada no cigarro, diz:
- Eu, por
exemplo, sempre fui uma pessoa questionadora, tenho alma de repórter
investigativo. Vou fundo. Apuro cada detalhe da notícia.
-
Bom, hein?
- Três
episódios no mundo ainda me incomodam.
-
Quais?
-
O primeiro é provar que Cristo, se existiu, não morreu na cruz como fala o
texto bíblico. A contradição está na sua própria história, através dos séculos,
que mostra que ele foi julgado e condenado pelo Sinédrio.
-
Ai, Math, guarde essas explicações para você. Desse desafio eu não quero saber.
E os outros dois?
-
Provar que Tiradentes não morreu na forca. Por questões de acordos políticos,
outra pessoa foi enforcada no seu lugar. Desejo aprofundar no assunto até obter
uma radiografia confiável dos fatos. Doideira, ‘né?
-
Caracas! E o terceiro episódio?
- Esse é
mais fácil. Quero a certeza absoluta de que Mário Palmério escreveu mesmo os
únicos dois livros que constam da sua biografia: Vila dos Confins, de 1956 e
Chapadão do Bugre, lançado em 1965. Por sinal, adorei ler os romances.
- Tarefa
de fôlego, cara. Desejo-lhe boa sorte, muita pesquisa e profundos estudos.
- Ah,
pera ai: Mário vive falando que tem na gaveta, em fase de revisão, o romance: O
Morro das Sete Voltas. Ansioso, eu aguardo a publicação da obra.
- Posso
ajudar nessa empreitada, quer?
- Com o
maior prazer.
- Agora
em novembro, ele ocupou a cadeira de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de
Letras. Dia 22, a de número dois.
- Vem cá,
Math, nunca pensou trabalhar no Rio ou em São Paulo como muitos dos seus
colegas?
- Não.
Amo Belo Horizonte de paixão, eu gosto de seus morros. É aqui que quero ficar e
vencer. Sou mineiro da gema, com os dois pés no chão.
- Também
sou dessa opinião. Acho que não temos que buscar longe o sentido de nossa vida.
- Por aí.
Pausa.
Suzana, sorrindo:
-
Meu geniozinho, nem sei como agradecer sua atenção comigo.
- Precisa
não.
- Fique
sabendo que, no infinito de meu campo de desejos, algo me diz que será muito
legal trabalhar ao seu lado – revela Suzana.
- Joia!
-
Então quero contar com sua ajuda, sempre que precisar. Posso?
-
Lógico. Lógico.
-
De coração, obrigada.
-
Espero que o Zé aprove – finaliza Mathieu.
-
Já disse, estou noutra. Ele que se dane - pragueja a mulher contra o marido.
Os
dois se entreolham, mostrando no olhar admiração mútua. Mathieu:
-
Fico feliz, querida. Em você observo o retrato da mulher possível num futuro
cada dia mais palpável, ocupando postos de trabalho sem perder o equilíbrio
entre o público e o privado. Parabéns.
Suzana
faz um ‘sim’ balançando várias vezes a cabeça. O rapaz levanta o copo na ponta
dos dedos, olham-se e os dois trocam sinais de pacto, clicando os copos.
-
Tim-Tim!
-
Tim-Tim!
Risos.
Enternecida, ela deixa a poltrona e passa para o sofá ao lado. Deita a cabeça
nos ombros do rapaz e aperta-lhe num abraço demorado, como se selasse novo
desafio de uma mulher em época de mudanças.
* FBN© - 2012 – O Cronista - NUMA
NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida
Pinto. Iustr.: fotografia do autor em trabalho de repórter - 1968 –
Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/31xxxi-revelacoes-de-um-cronista-jovem.html
- 30-