2011-01-03

30/XXX – O CRONISTA

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Com  todas as letras

                        Repórter WAP/ EM.  Revelações de um cronista jovem - 1968
 - Foto: Miro Sopeña.


Suzana, depois de rápidas anotações na folha de papel, imposta a voz e articula a primeira pergunta da entrevista com o amigo:
* Quando e como iniciou sua história com a literatura?
         A leitura é uma atividade que me acompanha desde a infância. Não foi por acaso. Tudo começou no colo de meus pais, dona Filhinha e seu Juca, que sempre me contavam histórias e, logo no início da vida escolar, quando aprendi a decifrar a escrita, peguei gosto pelos livros. A partir daí criei intimidade com as palavras e nunca mais deixei de ler, certo de que alguém, inteligente e lúcido, iria me passar coisas importantes para o resto da vida, influenciando minha formação, minhas convicções e sensibilidades.
         * E a vocação para a escrita?
         Muito cedo percebi que ler e escrever eram prazeres que se misturavam. Aos dez, onze anos já rabiscava uns versinhos para minha mãe. Foi o começo de uma paixão eterna. Entre quinze e 17 comecei a escrever ensaios, narrando para outras pessoas o que gostaria que fosse dito a mim. Tomei gosto pela coisa. A motivação para escrever passou a ser a mesma que a motivação para respirar e me manter vivo.  Parafraseando Guimarães Rosa, também descobri que a língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.
* Como tinha acesso aos livros na juventude?
         Comprava dos vendedores que passavam oferecendo coleções na minha cidade. Adquiri muita coisa boa, principalmente, do Círculo do Livro. Entre tantas, de Machado de Assis com 31 volumes encadernados em capa dura. Por outro lado, meu primo, Newton Santos Brito, que era assinante do jornal Folha de São Paulo, sempre de me passava o caderno cultural para eu ler crônicas, contos, poesias, ensaios, resenhas literárias. Fato que me introduziu, definitivamente, na república das letras.
          * Seus textos surgem de forma espontânea, partindo do ponto zero ou transforma algo ocorrido em literatura?
Quando decidimos ser escritor, qualquer coisa serve de inspiração para dar início a uma história, sabendo que ela está na paixão pela vida. Eu, por exemplo, apanho o fundamental da existência e escrevo sobre o mais próximo de mim. Afinal, é preciso transformar a vida para cantá-la em seguida, ensina Maiakovski.
* Quanto de sua história está contada em suas obras?
         Um pouco, claro. O escritor Bartolomeu Campos de Queirós certo dia me disse que o escritor é, antes de tudo, alguém que escuta a si mesmo. Desse modo, posso dizer que parte de meus ensaios são alimentados por coisas que vivi. Mas não são autobiografias. Tanto que, muitas vezes, o personagem original se transforma na medida em que a história progride, abrindo caminho para outro que eu próprio desconheço. Acontece.
* Onde busca inspirações?
         Especialista em desvendar a natureza humana, eu perambulo pelas ruas e praças das cidades para falar com a população, e tirar de cada pessoa alguma coisa que tem para dizer das coisas de todos os dias. Como gente inspira gente, anoto tudo. É o ouro cultural garimpado todo dia que me oferece os motes e os personagens para meus ensaios. Tenho paixão pela história das pessoas, porque a vida e a literatura são duas coisas profundamente interligadas. Nesse exercício diário de catador de memórias, descubro em cada esquina, em cada olhar, ecos de uma boa fantasia para recontar, aumentando alguns pontos. Dessa forma, aprimoro a capacidade de narrar fábulas como se fossem minhas, e contar as minhas como se fossem dos outros. Tchekhov, mestre em escutar as pessoas discorrendo sobre suas vidas, também era doutor em recolher historietas na busca de um fio narrativo. Apaixonado pela cultural oral e pelos personagens populares da rua, ele não escondia que tinha neles sua eterna fonte de inspiração. Enfim, os dramas humanos são universais, um mar de história viva que deve ser contada.
* Como escolhe os temas?
Na prosa como nos versos vou fundo em questões da reminiscência, do comportamento humano, encontros e desencontros. Material minerado, eu rascunho em bloquinhos, sempre ao alcance das mãos, para não perder de vista o que me interessa.
* E a composição de seus personagens?
Ciente de que os personagens têm que ter e respirar vida, ou não são nada, crio através da observação de pessoas ao meu redor, do povo e da imaginação. Junto tudo e logo nascem figuras teatrais, prontinhas para a sua luta particular. Detalhe: todos têm um rosto com características corporais e psicológicas, pois não são apenas elementos gramaticais de uma massa anônima. Posso garantir.
* Entre o processo de criação do poeta e do prosador, o que há de diferente?
Penso que bom de texto é aquele autor que escreve poemas em prosa, e narrativas com boa dose de poesia. No mais é ter material literário na mão e talento para enxergar além da superfície das coisas. Moral da história: um ensaio deve apresentar alma e substância para comover o leitor, porque, o que vale mesmo é saber que meu texto pode alcançar um indivíduo do mesmo jeito que o de outro me tocou um dia. Isso que conta. Eu quero que meus leitores, de qualquer idade e classe social, se emocionem com meu trabalho e, no final da leitura de cada obra, possam dizer: valeu a pena.
         * Como é a experiência de escrever uma obra literária ambientada no lugar em que você vive ou viveu?
         Favorece, sim. Nesse sentido a cidade passa a ser tão universal quanto qualquer uma europeia ou norte-americana que a gente vê nos filmes, nos livros ou nas revistas. Outro motivo é oferecer ao leitor condições de apreciar os personagens no universo onde vivem.
         * Qual importância da literatura na sociedade?
         Monteiro Lobato dizia: quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Paulo Freire completou, afirmando que a educação é parte de um projeto de libertação do homem; transforma a vida das pessoas. Regras que, no geral, o Brasil pouco segue. Prova maior é a baixa tiragem dos seus principais jornais – em cada mil habitantes, menos de menos de 100 compram um periódico, diariamente. Isso aponta que a instrução no Brasil está muito abaixo da média mundial. Não é bom. Nas palavras de Ezra Pound: se a Literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai..., os artistas são a antena da raça, completa o poeta.
         * Políticas culturais podem modificar a realidade social?
         A arte e a educação no dia a dia das pessoas agregam valores, ajudam a humanizar e a criar cidadãos conscientes para combater a deterioração social. Paulo Freire defende que a educação não transforma o mundo, a educação muda as pessoas e as pessoas transformam o mundo, porque nada detém o conhecimento. Basta ver que nações que investem na cultura, como agentes de transformação social, estão se dando bem ao mostrar que a informação é a maior arma de transformação social. Exemplo maior é o da Coréia do Sul que, após investir pesado em educação, começa a superar estragos da guerra, levando seu povo a um patamar de desenvolvimento invejável em todos os níveis. Lá, você toma um taxi e o motorista é capaz de contar, em inglês, a história inteira do seu país.
* Pensa, um dia, viver só da produção intelectual?
Pretensão de todo escritor. Pelo menos daquele que imagina uma vida que lhe permita pensar e escrever pela manhã e passar o resto do dia observando o mundo à sua volta. Um dia, quem sabe, poderei mergulhar de vez a cabeça no mundo das letras e viver de literatura, porque escrever é o que sonhei fazer na vida e, quanto mais você faz, melhor você fica. Por enquanto, consciente de que literatura não dá retorno financeiro no Brasil, me viro como repórter e trabalhos esporádicos para agências de propaganda, o que se chama freelance no jargão profissional. Faço isso não só para garantir o pão de cada dia, mas para sustentar minha vocação e celebrar a vida de sonhos e utopia, como um escravo da criação à mercê das palavras. Conheço vários escritores, mas nenhum que viva dos livros que escreve. Direitos autorais existem mais para garantir ao editor o retorno do seu investimento e impedir cópias do seu produto. É isso.
              * Ser jornalista ajuda ou atrapalha o escritor?
Ernest Hemingway falava que o jornalismo pode ajudar muito o autor, desde que ele saiba saltar fora a tempo. Gay Talese, um dos maiores jornalistas contemporâneos do mundo, certa vez disse que a vida de escritor é, ao mesmo tempo, um retrato do ofício do jornalismo e uma soma de reportagens sobre a vida dos outros. A impressão final é a de um filme que poderia ser mais breve. José Loureiro, por sua vez, assegura que o escritor, atualmente, deve ser jornalista, pois o realismo mágico da literatura é muito fácil de ser encontrado na nossa realidade e ao alcance do jornalista. Até é preciso ter certo cuidado ao falar da realidade, para não ser mágico demais! Para Loureiro, todo escritor é um cronista social do seu tempo.
* Auxilia?
Dá caminhos, sim. Na redação de um veículo de comunicação aprendemos que concisão e prosa fluída são cobranças inquestionáveis dos leitores. Tudo pode ser editado, até bons conceitos. Não há assunto que, em sua essência, não se acomode numa lauda apenas, porque artigos curtos são os únicos que o povo lê. Para isso, seguimos regras que doutrinam como organizar as ideias, ter pensamento lógico, fala adequada e correção gramatical – diante das palavras duvidosas o autor deve ter a humildade de checar a grafia correta. No mais, usar o ponto final em abundância, principalmente, quando a frase resiste a qualquer reparo. Enfim, o negócio é desbastar o texto, burilar até a perfeição em prol do ritmo da frase curta. Não é tudo, mas ajuda a ser um redator capaz, porque a insatisfação é a marca do jornalista, do escritor. Tanto é assim, que o jornalismo tem sido a instituição chave para a formação de literatos no mundo todo, contribuindo para formar bons criadores intelectuais – quase sempre é o fim do jornalista e o nascimento de um escritor. É o caso do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez com seu livro Cem Anos de Solidão, lançando em Buenos Aires em maio do ano passado pela Editorial Sudamericana. E depois, só por estar na mídia, ganhamos público e credibilidade. A informação é poder.
         * Como é o ofício numa redação de um Diário?
         Adrenalina pura! Em um jornal a gente vive cada hora com intensidade a mil para dar conta da produção diária, pois as coisas acontecem em períodos delimitados. Produzimos a tempo, ou nosso trabalho não terá valor nenhum. E temos de escrever bem, mesmo na correria, no esforço. É lei. A matéria não pode esperar, porque o jornal respeita a exigência da banca, tem a hora certa do leitor que gosta de ler uma matéria bem polida, sem palavras fora do lugar ou termos mal empregados, atenta ao rigor estético.
* Imagina trabalhar só para a Editoria de Cultura?
Ah, sim, até porque crônicas e contos são terrenos em que me sinto bem mais à vontade e motivado. Gosto de trabalhar a ficção, de criar, gosto do processo do fazer da literatura um exercício diário, porque a gente aprende é fazendo. Sem falar que o jornalismo cultural é o lado mais intelectual da carreira, a parte relevante de uma escalada profissional para atingir a entrega total às letras. Jornalistas e escritores têm muito uns com os outros, pode crer.
* Por isso é estimulado a escrever contos, crônicas e poesias?
         Sim, claro. A criação é um mistério. Dá prazer e alegria. Os versos, quase sempre, surgem de forma espontânea, vem de estalo..., quando querem. Garcia Márquez defende que poesia é uma potência guardada no interior de todos os homens, que desperta as forças secretas do idioma.  Por sua vez, como gênero narrativo colado às vozes do cotidiano, as crônicas se tecem nos limites, têm fronteiras demarcadas. Por sua vez, o conto literário é outra coisa. Sem amarras, pode mudar de tom e de voz, falar na primeira pessoa, na terceira, ir até onde alcança a imaginação do autor. Os Ibéricos antigos, sabiamente, diziam que os contos são recortes do romanção comum da vida, portanto, quando a história começa a ter vírgulas demais é porque está chegando a hora de colocar um ponto final. É o poder de síntese, a concisão.
* Produzir contos é mais difícil do que escrever romances?
 Sobre os romances o escritor Júlio Cortázar fez uma analogia entre o universo da prosa e do boxe. Para o argentino, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, ‘o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute’. E completa, advertindo: ‘não se entenda isso demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e vários de seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, já estão minando as resistências mais sólidas do adversário’. Em resumo, escrever contos exige tanto sacrifício quanto escrever romances. Qualquer texto literário é como um animal vivo com a sua respiração, sua pele e sua temperatura. Difícil mesmo é, ao mesmo tempo, ter habilidade para encontrar palavras certas, unidade dramática e tom para compor o ritmo da narrativa. Sem rodeios e floreios, óbvio. É a simplicidade que vai desencadear a fantasia do leitor, já que o que eu escrevo é escrito porque tem que ser escrito. Porque a ideia nasce por conta própria e exige ser dita, já dizia no limiar de nosso século o escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft.
* Um contista como referência?
Tchekhov, considerado um dos mestres do conto moderno. Minha tentativa é ser iluminado por Anton Pavlovitcht Tchekhov, o autor que mais se aproxima do que eu tenho em mente ao narrar o cotidiano, com tinta meio que autobiográfica. O escritor russo, como ninguém, sabia que o prazer e o efeito literário de um bom conto estão ligados a certo sentido de completude, de desfecho. E mais artístico fica quando a história termina com uma leve suspensão. Sabia Anton que prosa límpida, fluída como conversa num banco de jardim público, ou numa mesa de bar, é tudo. Isso contribui para sustentar a atenção do leitor, principalmente, num romance em miniatura, como considerava seus contos, marcados por diálogos.
          * Quando chega o seu romance?
A pergunta é recorrente no cotidiano de um contista, ou de um cronista. Curiosidade inteligível, embora traga a sombra de uma cobrança. Um dia, mesmo sabendo que é uma corrida de longa distância, lanço meu romance. É o caminho natural de todo mundo que escreve e sonha ser reconhecido como escritor de fato.
* Com trama envolvida em sexo?
         Sou voyeur do erotismo. Como se trata de uma linguagem universal, qualquer literatura romântica sabe que amor e sexo estão ligados ao mundo das paixões. No fundo, todo romance precisa ter, no mínimo, uma fagulha de sexo incorporada para tornar o texto sedutor e estimular a imaginação do leitor. Tanto é assim que, nas palavras do escritor Wander Pirolli, a vida e a literatura são duas coisas profundamente interligadas, e toda literatura que se afasta da vida é falsa. Permeando por esses elementos, somados a alguns outros como mistério, bisbilhotice, inquietação, sabemos que qualquer ensaio literário pode render cenas docemente pornográficas, adequadas para desencadear reflexões admiráveis sobre o ser humano. É necessário possuir uma inquietude, um mal estar, um conflito, uma pergunta para que se tenha uma história interessante. Dessa forma instrui Drummond que prefere o refinamento das metáforas e dos eufemismos, poupando palavrões ao explorar a temática erótica.
* Há receita para o sucesso?
Não há fórmula pronta para atingir o grande público. Prevalece a capacidade de apresentar um trabalho de bom nível, porque se o leitor travar nas primeiras páginas troca de livro sem pestanejar. O importante é ter boa história para contar e conhecer bem o tema que desenvolve para persuadir os leitores de que aquela fábula é real. Depois de escrita, ouvir a própria voz. No mais, é recomendado deixar os originais por um tempo razoável numa gaveta lacrada. Mais tarde, se o livro ainda respirar e emitir o cheiro das palavras, você pode correr atrás de uma editora com menor risco de jogar letras ao vento. O sucesso é consequência, vem depois.
*O escritor deve ter preocupação em combater o lugar-comum na linguagem?
Oscar Wilde dizia que criar um lugar-comum é ter gênio, usar o lugar-comum é ser medíocre. Ele quis dizer que devemos fugir das soluções fáceis que já veem prontas. Qualquer um que se dedica a escrever para outros lerem sabe que escrever uma boa história exige muito do autor.  É do ofício inovar meios e formas de expressão para sustentar a vivacidade da voz narrativa.
*Quais suas influências como escritor? Que trabalhos e autores mais influenciam o seu trabalho?
Falar disso é complexo. Mas, posso afirmar que não existe ninguém que ensina literatura. Isso nós aprendemos lendo grandes obra que ampliam nossas referências literárias. Com as portas da percepção abertas, incorporei múltiplas influências de autores consagrados. A lista é extensa. Todos foram e continuam importantes em minha formação literária. Na verdade, tudo que a gente lê, vê e escuta, se é bom, fica na memória e ajuda a construir o nosso universo particular através de um estilo próprio, em que se perceba de quem é a dicção e de quem é pena. Certa vez, Guimarães Rosa revelou que, aos 21 anos, seus quatro primeiros contos premiados pela revista O Cruzeiro foram escritos rastejando o modo de narrar de grandes escritores. Nada de novo. No trabalho intelectivo, talvez não exista criador que não tenha sido influenciado por outros escritores até encontrar a embocadura do estilo que passa a dominar, imprimindo a marca autoral em seus ensaios. Lá atrás, como qualquer adolescente com imaginação viva e pretensiosa, eu tive meus momentos de mergulhar no universo literário de José de Alencar, porque sentia afinidades atávicas com o escritor cearense. Obras tão romanceadas e feitas de combates que me instigaram a rabiscar qualquer coisa numa imitação amadora. Depois de ler Iracema, escrevi Yara. Um pouco disso.
* Por que esse nome?
Conta-se que Manuel Bandeira passava sempre em frente a um hotel no Rio de Janeiro que se chamava Península Fernandes. Um dia, entrou e perguntou ao dono o porquê do nome. Sem titubear ele respondeu: Fernandes porque é meu nome e península porque é bonito. Yara porque é um nome bonito, pomposo e leve do Tupi-Guarani. 
* Qual o melhor dia para escrever literatura?
O dia em que estou de bem comigo mesmo. De baixo astral nem adianta tentar, porque, entre o escritor de carne e osso e o narrador fictício reside a figura provocadora do criador.
* Refaz seus trabalhados publicados?
Como Rosa, em alguns casos, faço revisões em páginas impressas, sim. Às vezes inúmeras revisões. Do início ao final da obra trabalho no polimento do texto, mexendo em palavras até não enxergar mais nada que possa ser alterado.
* Censura de Imprensa?
Injuria-me qualquer censura nos meios de comunicação, porque o autoritarismo representa uma ameaça à livre expressão do povo, quer mesmo é calar a boca da imprensa crítica. Prova disso é a Lei sancionada pelo Presidente Castelo Branco, conhecida como Lei da Rolha, que já espalhou vítimas por todos os lados, e fez das redações órgãos obedientes aos cortes que os censores militares impõem – os milicos mandam e desmandam. Jornais, revistas, estações de rádio e redes de TV são obrigados omitir conteúdo de interesse público, principalmente, dados em relação à economia e à política brasileira - imagem ofensiva ao brasileiro e ao mundo. O certo é que boa parte dos grandes jornais que apoiavam o golpe militar de 1964, ao perceber que a informação passada aos leitores corre o risco de não ser aceita por falta de credibilidade, já demonstra inquietação com a censura militar. Portanto, mesmo que de forma dissimulada, alguns jornais começam a abrir espaço para o noticiário, e até artigos assinados, divulgando os excessos da Ditadura, conscientes de que a coisa mais importante que a imprensa deve temer não é a censura, mas o fim do seu papel social. Isso mostra que a imprensa, em nenhum momento, vai abandonar a luta contra a Ditadura. Resistir é preciso, porque informação e democracia andam juntas. Resumindo: até a Bíblia condena a falta de liberdade de comunicação social. Em Mateus, leia-se: ... o que vos falei ao pé do ouvido, publicai-o de cima dos telhados.
* O jornalista é porta-voz do povo?
- Há um elo muito estreito entre o exercício da profissão de jornalista e o interesse público. Para um profissional consciente, perante todos os valores que existem no mundo, um é inegociável: a liberdade de expressão. No Brasil, mesmo com uma penca de jornalistas presos e torturados pelos órgãos de repressão, alguns deles não desistem de fazer do ofício um ato de resistência ao arbítrio, porque a liberdade de comunicação para eles é um sonho real, é como sair da sombra e passar a existir de forma plena. Na verdade, grande massa da população brasileira, que não é bem informada, tem pouco conhecimento do que representa o AI-5, mas todo jornalista sabe do desastre social que ele causa. Como também sabe que o marketing político que está na pauta para vender imagem positiva do Governo deveria ter sua embalagem rasgada para mostrar o produto real. Portanto, é do jornalista o dever de informar o que se passa em seu país, ainda que seja meio impotente diante do sistema que, cada dia, torna mais afiada a tesoura da censura em nosso país. Cabe ao profissional de imprensa a responsabilidade de garantir espaço para um jornalismo crítico e independente em qualquer lugar do mundo, porque, quem mais perde é a sociedade com o silêncio de um jornalista.
* Cooptação?
Abominável. É uma tática usada pela Ditadura Militar que, muitas vezes, preenche cargos públicos estratégicos, independentemente, de critérios externos para contratação de pessoas que procuram a sombra do poder para fazer sua independência financeira. Tanto é que alguns mitos da imprensa nacional aderem a essa prática inefável, sem a menor preocupação com os princípios éticos do jornalismo, colocando a mídia e o estado de mãos dadas. É fabuloso o magnetismo do poder público para a imprensa! Basta lembrar que, durante a Segunda Guerra Mundial, veículos de imprensa apoiaram Hitler em decisões vergonhosas.
* O que é liberdade, literalmente, falando?
Cecília Meirelles dizia que liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entende. Liberdade se traduz na expressão mais genuína da essência humana. É tudo.
* Dos anos 60, o que fica como legado?
           Muito. Posso dizer que uma nova história está sendo escrita nesse momento, principalmente, na luta pelos direitos civis. Outra filosofia! Embalados pela energia contagiante do Rock’n’roll californiano, estamos rompendo fronteiras, revolucionando o pensamento, construindo novas alternativas, vivendo momentos que serão lembrados por gerações e gerações. Nutridos pelo movimento Hippie e por diferentes bandeiras, estamos mudando a maneira de ser, de se vestir, de dicção e de se relacionar uns com os outros. Em cinco de outubro de 1962, enquanto os Estados Unidos e a União Soviética lutavam pela conquista da Lua, quatro rapazes de Liverpool empunhando guitarras no lugar das metralhadoras, conquistaram o planeta ao lançar a canção Love Me Do. Nos anos 60, graças à invenção da pílula anticoncepcional a mulher recebeu sinal verde na conquista de seu espaço, inaugurando o prazer sexual sem a ameaça da gravidez indesejada. E, de olho no amanhã, estamos aí para passar às novas gerações a consciência de luta pela defesa dos direitos do cidadão, aversão ao poder autoritário e a percepção do equilíbrio ecológico nas questões ambientais, que mostram como usufruir da natureza sem estuprá-la para vivermos um mundo melhor, preservando a diversidade de flora e da fauna que sofrem em meio à ambição do homem. O futuro do planeta já começou.A gente acredita que projetos sustentáveis podem fazer do mundo um lugar melhor para todos.
* Pílula anticoncepcional?
Estou com a escritora Pearl Buck. Recentemente, perguntada sobre a droga criada pelo cientista Gregory Pincus, disse que todo mundo sabe o que a pílula é. Um objeto pequeno, mas que pode ter um efeito mais devastador em nossa sociedade do que a bomba atômica. A pílula veio para coroar novos horizontes do comportamento humano, numa época obcecada pelo sexo livre. Enfim, a pílula deu à mulher controle discreto e seguro sobre seu corpo, principalmente, porque não precisa mais ter todos os filhos que a natureza determina. É o futuro do passado em busca do prazer perdido!
*Aborto
Eu defendo que, se houvessem políticas dinâmicas para a saúde feminina e da natalidade no Brasil, talvez não houvesse procura por tantos abortos clandestinos. Acho que a própria mulher deve decidir sobre o destino de seu corpo.
* Como vê as mulheres no contexto sexual dessa década?
Avançando cada vez mais. Para elas o sexo não é mais uma questão moral, mas de bem-estar e de prazer. No auge de uma sociedade cada vez mais tolerante, elas estão presentes e ativas no exercício de sua sexualidade. Mudaram os costumes, modificaram os hábitos, alteraram os valores e a maneira de pensar. A revolução está em curso. E têm brasileiras nessa poderosa conexão com o mundo que surge do interior de cada um de nós.
* De que forma imagina a sexualidade no futuro?
Desencanada. Sabendo-se que o amor se manifesta de várias formas, a questão da sexualidade liberada é uma discussão que antecipa o futuro, mesmo com a Igreja e boa parte da opinião pública ser, agressivamente, contra. Hoje em dia, bem mais do que antes, é possível o desfrute sexual homoafetivo numa troca erótica mais tranquila e divertida - não fará a menor diferença a identidade sexual do parceiro. Dessa forma, podemos afiançar que o ser humano nunca vai deixar de viver suas fantasias e ilusões sexuais, e tudo mais que pode o corpo e o desejo dele, apesar das convenções morais. Até mesmo planejar o gozo em paraísos artificiais será viável, experiência cada vez mais presente na vida de muita gente, mundo afora.
          * Homofobia?
Acho que a opção sexual é como ser católico, protestante ou budista, a chave está nos prazeres e nas emoções de cada um. Foro íntimo, claro. Cada cidadão tem o direito de fazer o que quiser da sua vida pessoal, regida ou não pela inteligência erótica. A discussão é antiga. Ainda vai longe num debate aberto entre o preconceito e o conservadorismo obscurantista, porque o universo homossexual, com suas particularidades e diversidades, no futuro será visto pela sociedade com naturalidade, sem despertar curiosidades, risos, cochichos, hostilidades. Isso é falta de respeito com os gays que, acima de tudo, defendem uma relação de amor e de respeito, apesar de quase sempre serem depreciados ou relegados a clichês de ‘bicha afetada’. Freud afirmou, e Lacan confirmou que o que causa a homossexualidade é o mesmo que causa a bissexualidade e a heterossexualidade: a escolha inconsciente de objeto do desejo, nada a ver com hipersexualidade.  Portanto, nenhuma escolha é mais natural do que a outra. Como os valores culturais da humanidade são dinâmicos, avançam e registram alterações de comportamento, esses mesmos valores também determinam as alterações nas condutas sexuais. Dessa maneira, acredito que, daqui a 50/60 anos vamos assistir cenas de casamento entre pessoas do mesmo sexo aos montes, bem longe de serem apontadas nas ruas como figuras estranhas que caminham por todo lado de braços dados. Eu, por exemplo, sempre coloquei em dúvida a masculinidade daqueles, obsessivamente, preocupados ou ofendidos com o homossexualismo, acreditando que a causa é uma perturbação psíquica que precisa ser tratada.
* O amor?
É a essência da vida.
* Amor romântico?
         Aquele que prega a fusão de duas pessoas para se transformar numa só, uma completando a outra? Não sei. Não sei. A verdade é que, numa época em que muita gente começa a amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo está cada vez mais comum - sexo a três -, e casais frequentam casas de swing sem o menor constrangimento, esse modelo de amor romântico começa a sair de cena.
* Já se apaixonou por uma professora nos tempos de ginásio?
Sim. Por uma linda mulher que dava aulas de inglês. Fazia até poemas para ela. Em inglês, evidente.
* O que é um abraço?
 Para os poetas é um momento mágico. Anatomicamente, os olhos se fecham, mas as pupilas continuam dilatadas. A boca sorri em silêncio e o coração bate mais forte. O cérebro, por sua vez, tenta desesperadamente parar o tempo.
* Que o tira do sério?
Injustiça. Parasitismo. Egoísmo. Malversação do dinheiro público. Prefiro gente que é justa com a sociedade e consigo mesma.
 * Religião?
Fui educado numa família católica, mais ainda procuro a veracidade sobre esse fenômeno social. Minha religião é ser brasileiro.
* Sua relação com Deus
Nada muito definido, mas torço para que ele exista de verdade.
* Livros?
Sou meio utopista. Como entendo que o brasileiro não tem uma relação de necessidade com os livros, quando aposentar, pretendo transformar uma Kombi, pintada de azul, numa minibiblioteca móvel para empreender uma grande jornada pela formação de leitores. Vou sair Brasil afora, oferecendo à meninada, um paiol de histórias para um banquete de conhecimento com muita alegria e diversão. A ideia é criar uma forma de promover a biblioteca itinerante para difundir a prática da leitura nos quatro cantos do país. Combinação irresistível! Desse jeito, vamos fazer a alegria de todo mundo e, desde cedo os brasileirinhos, começam a ter intimidade com as palavras. Portanto, não tenho dúvida de que estimular o hábito de leitura é a melhor maneira de alimentar esperanças de um futuro melhor para nossa gente. Precisamos valorizar a escola como parte do futuro que precisamos alcançar. Enfim, uma pessoa que lê vale por duas.
* Livros que marcaram?
 Curto um mundo de autores. Quase impossível destacar uns dos outros, porque cada livro lido deixa sua pegada.  Idade de Razão, de Sartre, me marcou muito. A Cidadela, de Cronin, idem. São esses, entre outros, meus livros da vida. Obras que deveriam ser lidas por todo mundo, principalmente, por pessoas acometidas por uma doença que se alastra como a doença do século: a superficialidade da alma. Posso dizer que o papel da literatura, em qualquer idioma ou época, altera de forma positiva a vida das pessoas.
*Autor preferido?
Tenho minha biblioteca preferida. Posso afirmar que o papel da literatura em qualquer idioma, aumenta muito. E cada época produz não só os seus talentos como também a balança com que se deve pesá-los.
* Música?
Música é socialização. Escuto de tudo, porque melodia não tem gênero, vale a criatividade do autor. Gosto da música de raiz aos clássicos. Acredito que a boa música ajuda na reflexão literária.
* Sétima Arte?
Aaiaiai!... Difícil... Difícil responder para um cinéfilo como eu, porque no fundo, no fundo somos todos apaixonados pela luz que sai dessa geringonça chamada projetor. Entre centenas de filmes que vieram para revolucionar a forma de fazer cinema no mundo, destaco o hiperclássico Cidadão Kane com sua esplendorosa e poética fotografia em preto e branco, mostrando as cores de um palácio extravagante projetado na Flórida, semelhante ao que o magnata das comunicações William Randolph Hearst tinha em San Simeon. Construída com rigores geométricos, a película concentra em si todos os assuntos do cinema: amizade, amor, fama, política, dinheiro, memória..., e tudo o mais que almejarmos. Também imagino que sobreviverá, entre outros, pelo papel determinante na indústria cinematográfica o filme Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock. A atriz Kim Novak está muito bem no papel principal.
* Personagem histórico preferido?
Santos-Dumont. O cientista brasileiro Alberto Santos-Dumont que teve o poder de dar asas ao homem e quebrar as barreiras do espaço.
* Morte?
Encanta-me não pensar na transitoriedade da vida, muito menos cortejar a morte. Como vida e morte são irmãs univitelinas, a última verdade da existência humana vai me encontrar amando e escrevendo, porque não acredito na vida após a morte. Portanto, gostaria de ir para ‘todo o sempre’ como o velho Zorba, o grego: em pé na janela, de olho no infinito azul engolido pelo cenário mágico de mais um dia se entregando, lascivamente, ao silêncio da noite. Na minha lápide quero escrito em latim: Não espero nada. Não temo nada. Sou livre. Exatamente como no túmulo do cretense Nikos Kazantizakis, morto em 1957.
* Drogas?
Merece mais discussões. Brincadeira à parte, eu penso que a legalização da maconha para quem tem mais de cinquenta anos seria uma boa pedida. Vários estudos científicos registram que os agentes ativos da erva têm efeitos significativos como analgésicos, especialmente em dores decorrentes de danos nos nervos. Isso é, as dores crônicas. A descriminação é uma decisão que cabe a sociedade debater de forma ampla e irrestrita. E não casuística.
* Que lhe aborrece?
Ingratidão.
 * O que lhe diverte?
Meus amigos, principalmente.
* Lugar favorito?
Qualquer parque ecológico com um banco de madeira sombreado, onde possa sentar e observar, ao ar livre, o que acontece ao meu redor, preferencialmente, diante de uma folha de papel ao alcance de minhas mãos; não há convite mais sedutor para passar o tempo e refletir. É superbacana apreciar macaquinhos, esquilos e borboletas coloridas que chegam e escolhem flores para pousar. Na quietude quase silvestre de um lugar como esse, além de pios majestosos dos pássaros, escuto do próprio coração os batimentos. É nesse playground de diversão do cérebro - espaço para o diálogo interior -, quase sempre ao lado de uma estátua branca de mulheres gregas, que reflito sobre valores como bem-estar, ética e justiça, que devem ser estimulados na comunidade. É a onda boa que abre minha mente e oferece inspiração e clorofila para os pontos e vírgulas de um texto inconcluso. Fascinante! A sensação de fazer parte da natureza é total. Enfim, são momentos de beleza pura em que tiro o pé do acelerador, todo tempinho livre que tenho, para encontrar tudo que necessito fora de casa, natureza e adrenalina.
* Como é o paraíso?
Cheios de deusas, sorrindo. Imagino.
* E o inferno?
Melhor perguntar a Dante Alighieri.
* Viu alguma vez a mulher mais bela do mundo?
Vi, sim. Minha mãe.
* Vida em outros planetas? Óvnis?
Não há. O homem sabe que existem milhões de galáxias espalhadas pelo infinito, mas é quase evidente que planeta habitável só o nosso. Estamos sozinhos no universo, o céu está vazio de vida e a terra nunca foi beijada, afirmava o filósofo Shopenhauer. Ainda ontem, recebi o segundo número da Ebal. Folheei a revista por curiosidade. Não sou curtidor do gênero, portanto não acredito em discos voadores. Pura fantasia!
* Cibernética? Computadores?
           Eu amo a informática. Com a evolução dos aparelhos de inteligência artificial, a ciência caminha para unir homens e máquinas, através de um avançado processamento de dados - dispositivos que demandam mais neurônios do que músculos para serem operados, prometendo fabulosas mudanças com a era digital no futuro. Ao que tudo indica, a meta da computação eletrônica é transferir até a consciência humana aos computadores. Tanto é assim que, desde os anos 1940, cientistas criam supermáquinas com a missão de armazenar, em um banco de dados, boa parte de nossas obrigações e memórias na memória desses dispositivos de alta tecnologia, que transformam o mundo cada vez mais digital. Isso significa que o século 21 será conectado a tecnologias que terão total domínio no mundo virtual, tanto que ‘estar plugado’ será sinônimo de oportunidade e de prazer. Vai chegar o dia em que a ciência mudará a matemática: um será igual a dois, três, cinco... Quem sabe até favorecer ao ser humano a possibilidade de namorar belos robôs eróticos! Isso é bom ou ruim? É o que a gente vai sentir lá na frente. Refletir sobre essas e outras questões relativas às relações virtuais entre as pessoas é, no mínimo, uma interessante temática pós-moderna. Por enquanto, entre a realidade e o delírio, existem mais perguntas do que respostas, garante o projeto Arpanet, desenvolvido pelo Departamento de Defesa Americano. Mesmo longe do Santo Graal, já temos muito que comemorar e sonhar em viver plenamente as teorias de Paul Lafargue, ditadas em seu livro Direito à Preguiça, escrito no século 19. Não podemos ir contra a tecnologia.
* Milagre econômico?
O mandachuva das finanças brasileiras, ministro Antônio Delfim Neto, consagra-se como excelente guru do crescimento da nossa economia. Com esse choque de capitalismo ativo, fomentado pela política dirigista do Governo, experimentamos novos avanços no aspecto da econômica. A sensação é que o país está bombando em quase todos os sentidos, mesmo que orquestrado por uma Ditadura Militar. Torço para que o Ministro da Fazenda tire o Brasil do subdesenvolvimento o mais rápido possível.
* Um desejo?
Que a democracia floresça por todos os cantos do planeta. Aqui, principalmente.
* O Brasil tem remédio?
Claro que sim, a receita está na liberdade política. E, consequentemente, investir com força na educação, ousar mais. Não há instrumento mais eficiente do que um livro para o desenvolvimento socioeconômico de uma nação.
* Muito bem, para terminar, fale sobre o Brasil de hoje no plano político?
            Na arena de nosso teatro político, semana passada a Capital Federal reafirmou sua fama de viver de costas para o Brasil real, alheia às demandas éticas de um governo desejado. Com a sanção do AI-5, pelo General Costa e Silva, engalanado naquele fardão de arrogância e arroubo, a Ditadura passou a ter a bala no tambor, o dedo no gatilho e todo poder nas mãos da tropa linha dura do Exército do golpe militar de 1964 para combater a ameaça vermelha. Agora, o Ministro José de Magalhães Pinto, das Relações Exteriores do Brasil, parodiando Che Guevara, pode ocupar a tribuna diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, balançar a cabeça e admitir: Temos que dizer aqui o que é uma verdade conhecida. Torturas, sim! Temos torturado: torturamos e vamos continuar torturando enquanto for necessário. Mas, isso não é o que o brasileiro quer. Basta ver a dimensão da marcha dos ‘100 Mil’, a maior ação coordenada vista até agora contra a ditadura militar. Estudantes, artistas, religiosos e intelectuais foram às ruas do centro do Rio de Janeiro, no dia 26 de junho de 1968, para protestar contra o sistema político vigente. Virou uma praça de guerra. De punhos cerrados, cidadãos indignados caminharam pela cidade, gritando palavras de ordem contra excessos de órgãos de repressão política. A revolta e a repulsa eram tão grandes que muita gente saiu de casa com os bolsos cheios de bolinhas de gude, para atirá-las nas patas dos cavalos da tropa de choque. Era soldado que não acabava mais. Mil. Dois mil. Nada mais delirante do que, no meio daquela turbulência sacudindo as ruas do Rio, assistir a queda de um soldado no asfalto - história verdadeira, embora envolta pela neblina da anedota. Enfim, desforra que marcará para sempre a alma de nossa gente que vivemos o período mais obscurantista da vida política do Brasil.
Depois de uma pausa, como se para recuperar o fôlego, Mathieu conclui:
O Governo não pode tudo. A intromissão na vida privada do cidadão é uma afronta que mina o ânimo de nossa gente e, sobretudo, ameaça a credibilidade do Brasil lá fora. Muito triste! Tanto que a revista Veja, nesse 18 de dezembro, foi para as bancas com a foto do presente Costa e Silva na capa sem palavras. Apenas a imagem dele próximo a um quepe branco de almirante de esquadra, sentado no Congresso Nacional vazio, metaforicamente, barulhento. Parabéns! Ideia nenhuma poderia traduzir pior a significado do Ato Institucional número 5, com o qual, numa sexta-feira 13, a Ditadura deu fortes sinais de que vai operar por mais tempo um período de blecaute na vida de nosso país. Olé, Brasil! Eu penso que se fossemos governado por Carlos Drummond de Andrade, taciturno como é de estilo e feitio, nós teríamos uma nação melhor e, com certeza, seu estado democrático de direito consolidado para sempre, ciente de que política e ética podem e devem caminhar juntas. O Brasil precisa e quer mudanças já. Merecemos, não?
Suzana de pé, levanta as mãos e aplaude:
- Saí bem, Math? Saí?
- Ótima, mocinha, ótima. Show de bola!
- Que bom que gostou!
          - Melhor, impossível.
- Jura?
- Tem traquejo. Perfeita.
- Jura?
- Inclinação e estilo de sobra. O resto é contar com um pouco de sorte e muito suor. Na redação de um jornal não tem moleza – adianta o rapaz, surpreso com o desempenho da amiga.
- Vou redigir a matéria.
- Folgo em dizer que foi muito legal ter sido entrevistado por um ‘foca’ como você, linda e inteligente.
         - ‘Foca’! Como assim?
         - No jargão jornalístico é o nome que se dá a uma pessoa que inicia seu trabalho na redação de um veículo de comunicação. Pouco experiente, mas imbuída curiosidades e boa cultura.
         - Ah, sim.
         - Se depender de mim já está contratada.
         Suzana ergue os olhos, expressando com euforia:
         - Ai, nem acredito! Nem acredito!
         - Vou falar com meu editor para iniciar como estagiária. No princípio, em troca de aprendizado, vai trabalhar sem remuneração. Se deslanchar passa a fazer parte da folha do jornal.
         - Por mim, tudo bem. Mas é permitido exercer a profissão sem ter o diploma?
         - O jornalismo, como algumas outras profissões de nível intelectual superior, ainda não é uma atividade regulamentada para o exercício da profissão. Para muitos nem é emprego, é ‘bico’. Boa parte acumula a redação com uma repartição pública, principalmente. Na verdade, ainda somos menos profissionalizados e mais boêmios, agasalhados por aquela visão romântica de uma carreira um tanto transgressiva.
         - Entendo.
         - Os mais entusiasmados ainda acompanham a edição até a sua impressão, só para ler o jornal de madrugada, na boca da rotativa. Acredita?
         - Legal.
         - Particularmente, eu acho bem-vinda a ideia do jornalista com grau de bacharel. O diploma legitima o campo profissional, mesmo sabendo que a profissão não é terminada numa Faculdade de Jornalismo. Não é possível ensinar alguém a escrever bem, ‘né? Por enquanto, a vocação e a vivência pessoal substituem a programação técnica.
         - Ai, nem acredito! - repete a mulher sem conter a alegria, mordendo a ponta da caneta.
         - Em breve será uma jovem jornalista entre as poucas que trabalham no meio de uma penca de repórteres talentosos e mafiosos.  Terá muito trabalho, principalmente, para cobrir passeatas de estudantes contra a Ditadura na Avenida Afonso Pena.
         - Maravilha!
         Pausa. Mathieu:
         - Devo adiantar que vida de repórter é puxada. Não é mole. Como apurador de notícias tem que ‘ralar’ muito, viver sempre no limite, pronto e preparado para cobrir qualquer evento no dia a dia, o que quer que aconteça em qualquer hora, em qualquer lugar. Mergulhar no assunto, pesquisar, fuçar e, a partir daí, extrair sua história. Ser o mais rápido possível na edição de uma matéria de peso, é regra para registrar boas imagens.
- Tudo por um furo de reportagem?
- Principalmente. Querida, se não tiver essa correria não é redação de jornal!
- Claro.
- Não é para qualquer um. Muito esforço e determinação para buscar informações verdadeiras e frescas. Ao bom jornalista nada de ficar sentadinho numa mesa, dependurado num telefone tentando cumprir sua pauta. Precisa ir para rua, conhecer pessoas e estar sempre à beira dos grandes acontecimentos.
- Legal.
- Numa entrevista previamente agendada, seja quem for, o repórter deve se aproximar do interlocutor com um olhar vivo e intenso, como se o chamasse para uma conversa fluída e inteligente. É assim.
         - Tudo bem.
         - Ao jornalista tudo interessa. Da matemática ao conhecimento da história da humanidade. Para fazer uma boa matéria, o profissional tem que investigar e, na maioria das vezes, pegar o rastro de um acontecimento e impedir que algo valioso vá embora, ensina o seu futuro editor geral, Gonçalo Coelho, que vive dizendo, lá do mesão do copidesque, que ninguém sabe o que se passa entre as páginas escritas e a pessoa que as lê.
- Ai, será que estou preparada?
         - Claro. Só encarnar o espírito do jornal e não medir esforços para aplicar os pontos cardeais de nossa bússola particular: Quem? Quando? Somo? Onde?  Por quê? Interrogações que nos levam à determinação de ser jornalista em tempo integral, fascinado pela informação. No mais é saber que todo jornalista deve ter por obrigação ser leitor de bons livros, de grandes jornais, da vida e de si próprio. Criatividade é treino.
         - Claro.
         - Saber fazer jornalismo é muito mais do que narrar um fato, é saber contar a história com clareza e objetividade.
         - Com certeza – anui Suzana.
         Mathieu, depois tomar um gole de cerveja e solver uma boa tragada no cigarro, diz:
- Eu, por exemplo, sempre fui uma pessoa questionadora, tenho alma de repórter investigativo. Vou fundo. Apuro cada detalhe da notícia.
         - Bom, hein?
- Três episódios no mundo ainda me incomodam.
         - Quais?
         - O primeiro é provar que Cristo, se existiu, não morreu na cruz como fala o texto bíblico. A contradição está na sua própria história, através dos séculos, que mostra que ele foi julgado e condenado pelo Sinédrio.
         - Ai, Math, guarde essas explicações para você. Desse desafio eu não quero saber. E os outros dois?
         - Provar que Tiradentes não morreu na forca. Por questões de acordos políticos, outra pessoa foi enforcada no seu lugar. Desejo aprofundar no assunto até obter uma radiografia confiável dos fatos. Doideira, ‘né?
- Caracas! E o terceiro episódio?
- Esse é mais fácil. Quero a certeza absoluta de que Mário Palmério escreveu mesmo os únicos dois livros que constam da sua biografia: Vila dos Confins, de 1956 e Chapadão do Bugre, lançado em 1965. Por sinal, adorei ler os romances.
- Tarefa de fôlego, cara. Desejo-lhe boa sorte, muita pesquisa e profundos estudos.
- Ah, pera ai: Mário vive falando que tem na gaveta, em fase de revisão, o romance: O Morro das Sete Voltas. Ansioso, eu aguardo a publicação da obra.
- Posso ajudar nessa empreitada, quer?
- Com o maior prazer.
- Agora em novembro, ele ocupou a cadeira de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras. Dia 22, a de número dois.
- Vem cá, Math, nunca pensou trabalhar no Rio ou em São Paulo como muitos dos seus colegas?
- Não. Amo Belo Horizonte de paixão, eu gosto de seus morros. É aqui que quero ficar e vencer. Sou mineiro da gema, com os dois pés no chão.
- Também sou dessa opinião. Acho que não temos que buscar longe o sentido de nossa vida.
- Por aí.
Pausa. Suzana, sorrindo:
         - Meu geniozinho, nem sei como agradecer sua atenção comigo.
- Precisa não.
- Fique sabendo que, no infinito de meu campo de desejos, algo me diz que será muito legal trabalhar ao seu lado – revela Suzana.
- Joia!
         - Então quero contar com sua ajuda, sempre que precisar. Posso?
         - Lógico. Lógico.
         - De coração, obrigada.
         - Espero que o Zé aprove – finaliza Mathieu.
         - Já disse, estou noutra. Ele que se dane - pragueja a mulher contra o marido.
         Os dois se entreolham, mostrando no olhar admiração mútua. Mathieu:
         - Fico feliz, querida. Em você observo o retrato da mulher possível num futuro cada dia mais palpável, ocupando postos de trabalho sem perder o equilíbrio entre o público e o privado. Parabéns.
Suzana faz um ‘sim’ balançando várias vezes a cabeça. O rapaz levanta o copo na ponta dos dedos, olham-se e os dois trocam sinais de pacto, clicando os copos.
         - Tim-Tim!
         - Tim-Tim!
         Risos. Enternecida, ela deixa a poltrona e passa para o sofá ao lado. Deita a cabeça nos ombros do rapaz e aperta-lhe num abraço demorado, como se selasse novo desafio de uma mulher em época de mudanças.
 

 

* FBN© - 2012 – O Cronista - NUMA NOITE EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  fotografia do autor em trabalho de repórter  - 1968 – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/31xxxi-revelacoes-de-um-cronista-jovem.html  

 

 

 

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