*
Toulouse Lautrec
A Bailarina, óleo sobre tela.
Brincando
com os óculos numa das mãos, cobrindo o pescoço com a outra, Suzana pergunta:
- Outra
xícara de café?
- Não.
Tira o sono.
- Quer
beber alguma coisa, uma Champangne?
-
Champangne?
- Tenho
na geladeira.
- Doce
demais.
- Então
podemos azeitar nosso papo com um drinque. Prefere uísque, gim-tônica, cocktail, cuba libre ou vinho?
- Cachaça
afrodisíaca, tem?
- Não.
Não tem.
- Pena.
- Escolhe
outra bebida.
-
Drinque, não. Vinho? Não aprendi a gostar desse néctar dos deuses – admite
Mathieu.
- Não
sabe o que está perdendo. In vino veitas
– observa Suzana.
O rapaz
entre risos:
- Solta?
- Quem
bebe revela verdades.
- Pois
então...
- Então?
- Minto.
Vez ou outra eu tomo um Liebfraumilch.
- Da
garrafa azul?
- Sim.
-
Açucaradinho?
- O
próprio, um brinde à vida. O termo liebfraumilch, em alemão, quer dizer leite
da mulher amada - ilustra o rapaz, sorridente.
- Prefere
tomar um vinho?
- Não.
Não desce bem.
-
Mocinho, bebe o quê? – repete Suzana meio confusa.
- Bem...
- Pode
dizer, não faça cerimônia.
- Prefiro
uma cerveja.
- Ok.
- Com
esse calor pega bem, desce melhor.
- Claro,
Math.
- A cerveja é a prova viva de que Deus nos ama
e quer nos ver felizes, professou Benjamim Franklin, fissurado na bebida.
Risos.
Suzana:
- Math,
pelo jeito, você deve ser bom de copo.
- Sinto
que a mente nutrida por uma pequena dose de álcool acende a lucidez, garante
maior flexibilidade ao pensamento e ajuda a trazer boas ideias. O corpo fica um
pouquinho mais leve.
- Nossa!
- Além do
mais, o álcool tempera amores e dores.
- Não
pode é exagerar na dose – adianta Suzana. - Homem bêbado bate. Mulher bêbada
apanha. Não é assim?
-
Infelizmente. Infelizmente.
- Ok. Ok.
Aguenta aí um minutinho que pego uma garrafa na geladeira.
Mathieu
olha para a mulher e estende a mão para ajudá-la a se levantar.
- Quer
uma ajudazinha?
- Não
precisa. Com licença, querido: um, dois,
três e já! – a mulher se levanta, suspira e sai sorrindo. Lá da cozinha, grita:
- Gosta
de azeitona?
- Sim.
Minutos
depois ela volta equilibrando nas mãos uma bandeja com a cerveja, dois copos e
uma tigela cheia de azeitonas. Abre a garrafa em silêncio. Enche os copos,
deixando um dedo de espuma na borda, como se quisesse tornar a bebida mais
convidativa naquela noite quente de verão.
- Aqui
está, geladérrima!
- Oba!
O rapaz
suspende o copo e o esvazia de um sorvo. Suzana apanha o seu, e começa a beber
também.
-Tenho na
geladeira croquetes de bacalhau, fritos de tardinha. Quer?
- Pitéu
dos deuses!
- Quer?
-
Deliciosos, mas alimentam demais.
- E
amendoins torradinhos?
-
Hummmmm!
- Quer?
Risos.
Mathieu:
- Por
enquanto, melhor ficar só com as azeitonas como tira-gosto.
- E
bastante juízo para nós – ressalta Suzana.
- Não se
inquiete, juízo tenho de sobra. Baco eu referencio com sabedoria. Sei dos meus
limites para qualquer bebida alcoólica.
- Legal.
- Não sou
de tomar umas e outras pelos bares da vida, sou um bebedor socialmente
aceitável.
- Acredito.
- Estudos
mais recentes com bebedores moderados mostram que o álcool traz benefícios para
o organismo e para a mente – explica o rapaz.
- De onde
tirou isso?
- Ora,
ora... Vivo de olho nas novidades das pesquisas científicas. Consumido sem
abuso, o álcool contribui para aumentar o nível de colesterol bom no sangue e
previne a formação de placas de gordura, que atravancam as artérias do corpo.
- Bem, se
é assim.
- É.
- Pelo
jeito, também aprecia muito azeitona.
- Combina
com a cerveja. Um gole, uma mordiscada e tudo fica mais gostoso – festeja
Mathieu, espetando o fruto verde, enquanto sorvia um pouco mais da bebida.
- Não sou
de beber muito, fico tonta rápida – avisa Suzana. - Pior: a indisposição
estomacal me estraga o dia seguinte, passo mal.
- Sei
como é.
- Prefiro
os petiscos.
-
Cuidado, viu? O que engorda não é a cerveja, mas o que desce junto.
Risos.
Suzana confirma:
- Pode
ser.
- Tem
dons culinários? – indaga Mathieu.
- Alguma
coisa eu sei fazer. Aprecio muito a vida de casa, mas a culinária não é algo
forte em mim. Metido a entender de cozinha é o Zé. Cozinheiro de mão cheia.
- Sério?!
- Gosta
de macarrão?
- Claro,
meu prato predileto.
- Ele
prepara um spaghetti in salsa di sangue
di maiale. Ao dente, claro. Daqui, ó! Para lá de saboroso..., de dar água
na boca!
- Legal.
- Nada
menos nada mais do que uma macarronada ao molho de chouriço com ervas finas e
uvas passas. É o prato da moda que ele inventou. Outro, ganha páprica e queijo.
Ambas levam qualquer cristão a uma incrível viagem de paladar, sem ter que
responder pela culpa do pecado da gula.
- Devem
ser boas mesmo!
- A doce
amizade do salgado com o doce, ressalta o sabor da uva. Um manjar divino,
óhhhh..., nota 10!!! Provoca suspiros a cada garfada – aquiesce a amiga.
- Veramente speciale?
- Prato
digno de ser apreciado até pelos cardeais romano. Ou pelos sacerdotes eunucos
da mitologia grega. Com um detalhe: é rapidinho de preparar. Iguaria feita na
velocidade do cachorro quente.
- Maravilha.
Desce com o quê?
-
Preferencialmente, com um vinho tinto não muito encorpado. E, para sobremesa,
ele prepara uma rabanada, enfeitada com fios de ouro do mel coado.
Mathieu
morde os lábios, troçando:
-
Háháhá... Homem na cozinha!
- Raro,
não é?
- Sim.
- Para
ele, não há nada mais humano do que cozinhar. A mesa é o lugar que resume a
civilização.
- Ã-Hã! Deve
ser muito engraçado ver o Zé de avental, sem a menor cerimônia, pilotando um
fogão.
E depois
de um risinho comprido:
- Espero
o convite para uma dessas aventuras gastronômicas em sua casa, viu?
-
Deu vontade?
- Sim.
Até porque comida não é só alimentar o corpo. É também uma pausa para curtir as
amizades em encontros sociais. Não é mesmo?
- Ah,
claro. Reunir é um prazer.
-
Perfeito. Quando o casal está bem num relacionamento, tudo ao redor também
irradia harmonia. E eles devem compartilhar esse momento com as pessoas e
os amigos – pondera Mathieu.
Suzana
recolhe um pouco o sorriso.
- É. Não
vai faltar um dia para festejarmos a elogiada iguaria. Só falar com ele.
- Pois
então, vamos celebrar.
- O quê?
– quis saber Suzana curiosa.
- Spaghetti con salsiccia di sangue di maiale...
Comida com bossa tupiniquim, viva!
-
Tim-Tim!
Mathieu
levanta os olhos para ela. Por um momento, fica em silêncio.
- Que
foi? – pergunta Suzana.
- Observo
você, seus gestos.
- Me
observa?
- Você é
muito suave, encanta.
- Falando
assim me deixa encabulada, viu?
- Não
precisa. Proponho outro brinde.
- Outro?
- A uma
coisa bem especial. E com estilo.
- Com
estilo?
- Ao seu look.
- Oh,
não!
- Super fashion.
- Olha
só!
- Não
merece?
- Tudo
bem. Tudo bem. Tim-Tim – clica a mulher seu copo ao do rapaz outra vez.
Mathieu,
depois de um suspiro prolongado, elogia:
- Bacana
seu vestido.
- Gostou?
- Não
esconde nada de seus atributos femininos.
- Nossa!!!
Acha minha roupa exibida e curta demais, extravagante?
- No ponto,
cai bem em você. Curto e, incrivelmente, sexy.
- Vixe!
- Sou fã
da minissaia, do minivestido que deixa o corpo da mulher mais à mostra. É a voga
minimalista que ronda o verão brasileiro. Temporada em que as revistas não
economizam espaço com as celebridades que usam decote profundo e looks mini.
- Gosta,
não é?
- Quem
não gosta. Essa moda está aí para começar a despir o enigmático corpo da
mulher. Nada melhor, mais sensual e gostoso de ver.
- Assanhado!
- Bem, roupa
de pouco pano, pernas e barriga de fora, se alinha com a visão da mulher como
forte objeto de desejo, concorda?
- Bobo!
- Acha?
- Da
França o figurino ganhou o mundo com energia total. A onda atual é essa: a minissaia.
Pausa.
Mathieu:
- Seu
vestido é o mais bonito que já vi na vida.
- Só o
vestido?
- Bem, o
recheio..., o recheio...
-
Recheio, Math?
-
Desculpe-me, o conteúdo também.
-
Melhorou. Chanel, que tem obsessão pela beleza e vocação para a alegria, fala
que elegância é quando o interior é tão
belo quanto o exterior.
- Seu
caso. Sem tirar nem por.
Risos.
Suzana apanha o copo de cerveja e toma mais um pouco da bebida. Depois explica:
- Modelo
tubinho. Predileto de Jacqueline.
-
Kennedy?
- Sim, a
própria. Ela usa a peça com óculos de lentes gigantes, colares de pérola e a
inseparável bolsa Cucci, que nesse ano a grife resolveu rebatizá-la com o nome
Jackie Bag. Sabia?
- Bela
jogada de marketing! A primeira-dama
merece pela elegância e sobriedade de quem vem conquistando e influenciando
mulheres no mundo todo.
- Jackie
tem, sim, uma aura que nos estimula a copiá-la, da postura ao traje. Não há
como negar – admite Suzana.
- Sinal
que, como ela, você cultiva bom gosto.
- Tento.
- Beleza!
-
Voltando, voltando a agulha..., não tem mais que me diga?
- Quer
saber o quê?
- Além da
prisão de seu conhecido, como vão as coisas fora isso?
- Ah,
sim.
- Quero
saber notícias da rua.
- Posso
dizer que seu marido já deve ter chegado ao Nordeste.
Suzana
aperta a testa, contrai o sorriso. E pergunta:
- Por que
não foi com ele?
- Meu
tempo é outro, querida. Viajo de mochila nas costas, grandes sonhos na cabeça,
uma Nikon-F nas mãos e muita quilometragem para conhecer lugares fora de série
no interior do Brasil.
-
Hummmmm!
- Deixo a
estrada me levar ao cenário que ela quiser, deixo acontecer porque sei que numa
viagem assim, a gente volta com muito mais conhecimento que levou – revela o
rapaz todo sorridente.
- Ai, que
inveja!
- Gosto
de fotografar tudo o que pinta na minha frente. Não sou um Sebastião Salgado,
mas clico tudo como se quisesse escrever boas histórias com minha câmara
fotográfica, ciente de que o que mais vale numa foto é a vida que pulsa na
imagem. Entende?
- Bacana.
Pausa.
Mathieu entusiasmado:
- Posso
dizer que o mais legal de viajar assim é o intercâmbio. Permite conhecer novas
pessoas, o que nos dá oportunidade de passar coisas boas da sua cultura
adiante. Muito dos ensaios que publico vieram de conversas que tive com amigos
nessas andanças.
- Alma
cigana?
- Talvez.
A mim não apenas o cenário natural interessa, mas a vida que nele se manifesta.
- Claro.
- Oportunidade
de contemplar a cultura local, de comer a comida típica, de ir a lugares que só
quem mora no espaço conhece, de bater papo com o pessoal do lugar para ouvir
histórias de alguém bom de prosa.
Suzana
balança a cabeça, concordando. Depois de uma longa tragada no cigarro, pergunta
curiosa:
- Viaja
sempre?
- Quando
posso eu ando por aí mineirando, principalmente, pelo interior mineiro com sua
natureza exuberante. Passei por lugares admiráveis, como também vivi histórias
incríveis em cidades que ainda conservam a arquitetura e o ritmo de vida do
Brasil colonial.
- Legal.
- É o que
chamo sossego criativo. O que é muito bom para eliminar o estresse e produzir
bons textos. Pode crer, é fascinante e surpreendente.
Suzana
retrai-se na poltrona.
- Como
urbanoide assumida, nas minhas férias, prefiro viajar para o litoral e passar
uns dias num lugar com uma bela vista para o mar. Conforta-me bem mais.
- Qual é
sua praia?
Ela
sorri.
-
Qualquer uma em que possa ficar no ‘bem bom’ do à-toa, deitada numa rede de
pernas para o ar. Depois, sair pela areia catando conchinhas com meu filho,
pular na água, sorrir e emocionar com a beleza do mar. Ai, que delícia!
- Bacana!
- Férias
devem ser assim mesmo: beleza pura. Nada a fazer e, quando fizer…, nada muito
sério.
- Que
folga, hein?
- Ninguém
é de ferro.
- Claro.
- Mas,
não é só isso, claro. Atrai-me a alegria de uma praia, vendo a satisfação de
gente bronzeada que sorri com os lábios e a mente ao mesmo tempo – revela
Suzana com ar divertido.
-
Realmente.
- Renovo
e volto com a cabeça cheia de ideias para aplicar em sala de aula.
- Ótimo.
- Me
fala, existe coisa melhor em tempos de férias?
- Não,
não tem.
- A felicidade
é tanta que passo boa temporada marcada pelo barulhinho do mar nos ouvidos,
como sinônimo de descontração.
-
Maravilha!
Pausa.
Suzana:
- Math,
então me conta. Viaja de ônibus, de trem ou naquela tradição de pedir carona
acenando o polegar, tipo hippie?
- Quando
vivia numa pindaíba danada, na ‘lona’, eu viajava com a condução que pintasse
na área, naquela ‘maré’ que cada um se desloca como pode. Agora, pego estrada
no meu fusquinha ‘pé de boi’.
- Olha!
Meu pai tem um Fuscão.
- Muito
chique.
- Qual a
cor do seu carro, Math?
- Azul
lavado. Versão proletária, tão simples que não possui nenhum item cromado. Mas
é uma ‘ximbica’ cheia de atitudes, tanto no asfalto como na estrada de terra. Mas,
um dia, aspiro ter meu Karmann Ghia
bem incrementado, da ‘onda’.
- Metido!
Carro de grã-fino!
- Ora,
Suzana, quem nunca sonhou em ter uma dessas maravilhas do mundo moderno?
- Gera
fascínio nas pessoas, não é mesmo?
- Claro.
- O meu é
um Corcel – admite a mulher.
- Cor de
mel?
- Azul também.
Adoro o meu carrinho!
- Carrão!
Risos.
Suzana, cruzando o olhar com ele.
- E as
garotas? Já pintou alguém que deixou marcas nessas aventuras?
- Ah,
sim.
- Alguma
especial?
- Uma
viagem só fica perfeita se cultivamos uma boa história de amor, não?
- Não
sei, é?
- Casos
que nem sempre se prolongam, mas costumam ser inesquecíveis, inspirando poemas
breves. Alguns sobem a serra sem parar na pista, outros morrem na praia mesmo,
duram somente o tempo da viagem.
A mulher inclina-se para o amigo e pergunta, como os
olhos semicerrados:
- Me conta, o galãzinho, pelo que vejo coleciona dezenas
de aventuras amorosas nessas aventuras pelo mundo?
- Algumas.
- Então,
deve ter muita história para contar
- Tenho.
Quer que lhe conte uma dessas aventuras?
- Ã-Hã.
Suzana,
abrindo mais ainda o sorriso:
- Falando
assim, me lembrei de um poema de Álvaro de Campos, cria de Pessoa, poetando
sobre a arte de viajar.
- Recita
aí.
- Afinal, a melhor maneira de viajar é
sentir/Sentir tudo de todas as maneiras/ Sentir tudo excessivamente/Porque todas
as coisas são, em verdade, excessivas.
- Bravo!
– aplaude Mathieu, elogiando o tom macio de voz da amiga.
Suzana
agradece, enquanto punha um pouco de ordem nos cabelos. Em seguida, com ar de
brincadeira, brinca:
- Uau! Na
próxima, quem sabe você me leva de carona?
- Até que
não seria uma má ideia.
- Ai, eu
quero!
- Pois
então...
- Só nos
dois na estrada?
- Bem,
não ousaria – sacode a fronte o rapaz. - Com o Zé, claro.
-
Iiiiiiii!
- O
Júnior também. Seria bem divertido, posso apostar.
- Vou
pensar – articula a moça, revirando os olhos.
- Só
marcar que a gente vai fazer acontecer. O Brasil é grande, o mundo mais ainda.
Suzana se
faz de desentendida. Desvia o assunto, perguntando:
- Se
pudesse escolher ser uma ave que ave gostaria de ser?
-
Andorinha. As andorinhas são migratórias, voam longas distâncias em bando. O
importante é que, quando vão construir seus ninhos, cada macho, cada fêmea
procura um novo par para construir a família da temporada.
- Oooooh!
- Sério.
-
Romanticamente modernas?
- Como
são aves que se acasalam somente para reproduzir, a viagem em grupo aumenta as
chances de encontrar parceiros bons nessa arte.
- Hummm!
- As
fêmeas da espécie são determinadas, palavras dos biólogos.
-
Parabéns, andorinha faceira. Parabéns.
Mathieu
pega o copo de cerveja e bebe em pequenos goles, inflamando as bochechas. Em
seguida, levanta-se do sofá e dá um beijo na testa da amiga. Ela sorri. Em
silêncio, Suzana devolve-lhe o beijo numa das faces com um pouco de malícia e
muita festividade.
* FBN© - 2012 – Recordações
Afetivas..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor:
Welington Almeida Pinto. Iustr.: ‘Bailarina’ óleo sobre tela de Toulouse
Lautrec - Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/4iv-recordacoes-afetivas.html?zx=137a1b4284971b05
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