2011-01-03

21/XXI – O SAGRADO. EIS O MEDO.


*

W. A. Pinto

 
'Cristo Fálico' - óleo sobre tela 

Nicola Constantino
Artista Argentina
 

 
Santa Ceia - óleo sobre tela.



 

Mathieu retira um cigarro do maço. Deixa-o entre os dedos sem acender, rindo. Suzana:

- Pelo que se vê, hoje em dia, o termo liberdade se constitui numa receita da degradação do homem. Caminhamos a passos largos para um mundo de despudorados.

- Menos, querida, menos – atalha o rapaz, fazendo um sinal com a mão espalmada para baixo.

- Ora, Math, essa história da rapaziada sair por aí, brincando de fazer todo tipo de coisa, trinca a ideia da verdadeira definição da palavra liberdade. Pode achar que não, mas é.

- Há excessos, admito.

Suzana insiste:

- Pelo que se percebe, marchamos para outra ditadura, a do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa.

- Acha?

- O planeta esquece que Deus, em sua onipotência, imprimiu na alma humana uma hierarquia, onde a inteligência deve guiar a vontade do ser, sem desgovernar a sensibilidade das pessoas.

O rapaz abre um sorriso meio sarcástico:

- Tudo bem. Tudo bem. Não quero interferir nem influenciar a cabeça de ninguém. Mas, não acha que já é tempo de acabar com atitudes, excessivamente, conservadoras desses fiéis alucinados que pregam o fim do mundo para quem não adota os preceitos religiosos?

- Não exagera.

- Ora, Suzana, a religião reprime, ameaça e amedronta. Só fala de pecado e de culpa. Deus castiga. Você sabe que é assim. Difícil entender tamanha resistência de sua parte.

- Eu, resistente?!

- Querida, uma mulher culta, observadora e atenta às sutilezas do mundo como você, leitora de Nietzsche, tinha que ser mais flexível e mais aberta às mudanças.

- Gosto muito de Niet. Mas nem tudo que ele defendeu eu concordo.

- Só porque era ele ateu?

Suzana, muito segura, rechaça sem desviar os olhos do amigo:

- Evidente. Como posso concordar com um ser humano que dizia ter matado Deus. Não tem sentido. Ateu e louco, coisa-ruim. Por cima forneceu substrato ideológico ao Nazismo.

- Epa! Não foi bem assim.

- Avant la lettre do Nazismo!

- Nada disso. Nada disso – contrapõe Mathieu. - Como poderia Niet ser nazista se viveu e morreu na primeira metade do século XX, antes da criação do partido alemão?

Pausa. Suzana:

- Influenciou com suas ideias malucas, bestiais... Ah, Math, eu achava Niet um filósofo excepcional. Quando descobri isso perdi o encanto.

- Ninguém contesta que Nietzsche foi considerado um individualista da ala radical. Mas, daí a ser fonte de inspiração para Hitler não tem nada a ver. Hoje, todo mundo sabe que a história é outra.

- Possivelmente até admirador da Eugenia, do Transumanismo.

- Nada disso.

- Não ponho a mão no fogo. Para quem acha que matou Deus, oferecer fórmulas evolucionais para acabar com Judeus seria apenas mais um passo.

- Ora, Suzana!

- Ora o quê?

- Essa política de eliminação de castas foi adotada pelos soviéticos e pelos nazistas, apadrinhada por teorias de Francis Galton. Defensor da barbárie para criar um novo homem, ele pregava o fim dos ‘parasitas sociais’. Do mesmo jeito Karl Marx fundamentou sua tese eugenista, defendendo que as classes e as raças muito fracas devem desaparecer no holocausto revolucionário. Ou seja: harmonia definitiva só é alcançada quando se eliminam certos grupos de pessoas. Nada. Nada a ver com Niet.

- Sei não!

- Na verdade, essa ideia de transumanismo é uma coisa ainda confinada às páginas dos livros de ficção científica. Não passa de um surrealismo futurista!

Pausa. Suzana admirada:

- Que coisa, hein!

- Tudo isso é fruto de uma desprezível manobra familiar. A irmã do filósofo, Elisabeth Förster-Nietzsche, que cuidou dele enquanto doente, era simpatizante do movimento nazifascista. Tanto que, num gesto simbólico, brindou a Hitler a bengala que pertenceu a Niet, como se quisesse dizer que seu irmão, se estivesse vivo, seria defensor do papel especial do povo alemão, admirador do Fuhrer.

- Deus-me-livre!

- Devaneios, claro. Coisas da cabeça de Elisabeth, nada mais fantasioso.

 - Bem, bem...

- Para esclarecer melhor seu raciocínio, leia A Gaia Ciência, um dos seus livros mais profundos.

- Faço questão.

- Não há evidências de que Niet entrou na onda do antissemitismo. Se, de fato, foi um dia simpático a alguma teoria da suposta superioridade racial, logo descartou por achar absurda. Portanto, é errôneo dizer que Nietzsche tem alguma coisa a ver com a psicose de pureza racial.

- Será?

- Também não aprovo. Me causa repulsa, constrange.

- Ainda bem.

Mathieu sorri, enigmaticamente. Leva o cigarro à boca e puxa uma longa tragada. Depois diz:

- Suspeito que Friedrich Nietzsche, esse alucinado genial, não era tão descrente assim. Basta saber que o título da sua autobiografia é Ecce Homo, termo que, na iconografia cristã, costuma tratar das representações de Jesus Cristo em sofrimento.

           - Ah, Math, mesmo assim.

- Então...

- Religiosa de moldes antigos, não dispenso a proteção Dele em todos os sentidos. Educada de acordo com a tradição católica, apostólica e romana estou certa de que Deus existe e guardo a fé cristã dentro de mim.

- Nada contra. Não sou religioso, mas respeito todas as crenças e me aborreço com qualquer ateuzinho que incha o peito para desqualificar as religiões e a arte religiosa, como se fosse prova de maior inteligência ou coragem intelectual.

- Ainda bem.

- É um flagrante desrespeito ao que de mais sagrado: a liberdade de culto religioso.

- Claro.

- Mal sabe ele o histórico papel civilizador dessas filosofias seculares, ‘né?

-Ã-Hã.

- Mas, não posso deixar de criticar a Igreja que investe na figura dos pais para manter a família no caminho desejado por ela, principalmente, diante do silogismo de que se lida com a vontade de Deus, um ser ubíquo que tudo governa conforme sua vontade. Rege o Sol, a Terra e a Lua, o universo inteiro.

- Deus é supremo.

- Tanto é que, para os fiéis de carteirinha que seguem os preceitos de um livro sagrado, quando alguém se livra de uma doença ou de um acidente fatal a vitória, incontestavelmente, é atribuída ao milagre da providência divina. Não é assim? 

- Eu creio em milagres.

Mathieu solta uma gargalhada:

- Milagres! Milagres não existem. Coisas assim não passam da prodigiosa habilidade do acaso. Nada mais. Nada.

- Não impreque – impacienta-se a mulher.

- Veritas odium parit.

- Hein?

- A verdade gera o ódio entre os fiéis.

- Ora, rapaz!

- Acredito na racionalidade. Nada a ver com Deus. Nada. Acredito numa visão do universo que possa ser provada pela ciência.

Pausa. Suzana:

- Para você, there’s probably no God?

- Deus é um delírio.

- Morreu acabou?

- Cessa tudo. Fim da linha.

- Que coisa, hein?

- A vida do homem começa na Terra num momento de amor, se desenvolve no útero de uma fêmea, passa pelo berço e termina no túmulo como ‘reles mortais’. Bye, bye... The end.

- Caramba!

- Essa história de céu lá em cima é outro desatino. Mistério que Hamlet chamou de ‘país desconhecido’, de onde jamais alguém voltou para contar alguma coisa do lugar.

- Ora, Math!

- Mas, se de tudo eu estiver enganado, espero que Maat, a deusa da verdade, da ordem e da justiça, que julgava os mortos no Egito antigo, me dê um espaço especial ao seu lado.

- Bobo!

- Pela imagem é uma belíssima deusa. Insinuante e fogosa como Vênus, June e Minerva.

Suzana, depois de uma comprida tragada em seu mentolado:

- Eu sei que a existência de Deus não pode ser medida pelos métodos científicos. Mas, a ciência só evoluiu pela inteligência que Deus deu ao ser humano.

- Kkkkkk!

- Rindo de quê, Math?

- Leu o livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin?

- Ainda não.

- Leia. Foi escrito em 1859. O maior estudo sobre a evolução do ser humano, focado em apartar a ciência da crença religiosa.

- Sim.

- Darwin nos deu base segura para responder com verdades as mentiras dos místicos que iludem a humanidade, desde que o mundo é mundo. Para o biólogo, fora da ciência não há salvação.

A mulher sobressalta-se:

- Mesmo?

- É extremamente necessário ser um cientista de dignidade para infectar de dúvidas todos os equívocos que os livros sagrados plantaram na cabeça dos religiosos. E Darwin foi.

- Ainda assim milhares de pessoas em todo o planeta continuam a questionar a ‘Teoria da Evolução’. Por que, hein? Por quê?

- Pela ausência de conhecimentos, óbvio. Geralmente essa gente não sabe nada, ou quase nada, sobre a evolução dos seres vivos e, muito menos, admite boa convivência entre a ciência e as religiões.

- Pois então, qual a explicação dessa relação de grupos humanos isolados com as forças sobrenaturais?  Gente como os índios da Amazônia, da África, da Ásia! Vamos, me explique?

Mathieu estica o braço, pega o copo de cerveja pela metade e toma o resto da bebida. Sorri e responde:

- Nascemos com predisposição psicológica para a fé.

- Hum?

- A fé em um Deus dá subsidio ao humano para lidar com as fantasias diante da realidade terrestre. Bem, de alguma forma, a religiosidade ajuda a sobreviver, preenche lacunas, alivia medos e dores da alma. Por isso mesmo que a religião jamais desaparecerá do planeta. É o ópio do povo. Amém!

- Isso é milagre.

- É o que os sábios chamam de mistério científico. Nada que um dia a ciência não possa desvendar. Sabem eles que essa doutrina que as pessoas sustentam ser a fé, não passa de uma exigência de profunda necessidade do íntimo do ser humano. E não de uma graça emanada de Deus.

 - Claro que é.

Pausa. Mathieu:

- O ser humano, de modo geral, prefere a ficção que acalma seu espírito e dá segurança para dormir em paz, do que encarar a realidade da vida de frente. Nada é mais certo.

- Acha?

- Como também fertiliza terreno para a crença divina prosperar, principalmente, entre povos menos esclarecidos. Isso responde pelas alucinações que a fé constrói.

- É?

- Em certos países as religiões são utilizadas para serenar populações que, de outra maneira, revoltariam com a forma relapsa e cruel com que são tratadas pelos seus governantes.

- Pode até ser, mas...

- Portanto, querida, a possibilidade de existir um Deus criador do universo, sempre vai gerar conflitos entre os seres humanos.

Pausa. Suzana:

- Quer dizer que a Bíblia Sagrada não representa nada para você?

- O livro que se diz santo não foi ditado por Deus coisa nenhuma. Mas, reconheço que é de grande importância histórica e, sobretudo, trata-se de uma obra interessante de autoajuda – ressalta Mathieu.

- Então não acredita?

- Não. Foi escrita pela imaginação dos homens.

Suzana com a mão no peito:

- Confio em Deus e, através das palavras do Texto Sagrado, o Nosso Senhor se faz presente no coração dos homens.

- Bobagens. Desde Gutenberg cresceu uma tremenda indústria atiçada pela publicação em massa da Bíblia. Tudo como se Deus tornasse sócio de um empreendimento para garantir lucros elevados aos executivos religiosos. Só para você ter uma ideia, o Vaticano representa uma das maiores fortunas da economia mundial, o que nos leva a deduzir que essa é a real multiplicação de pães e peixes na cúpula sagrada.

- Ai, que absurdo! – espanta-se Suzana.

- É a realidade, querida. Cada dia mais, as Igrejas elevam o amor à Santíssima Trindade pelas vantagens que se pode auferir em seu nome.

- Sei que ainda há pessoas que se aproveitam da fé religiosa para ganhar dinheiro de forma desonesta. Não está certo, não está. A energia mental é dádiva de Deus e apenas deve ser utilizada para os bons propósitos. É justo que o pobre melhore sua situação econômica, mas não é justo utilizar a força mental para prejudicar outras pessoas. Entende?

Depois de um fôlego, Mathieu:

- Suzana, se Deus é tão bom e generoso, então me diga por que o mundo é tão cruel?

- Ora, Math...

- Na esteira da exacerbação da fé em um ser superior, a religião aparece por trás, direta ou indiretamente, de diversas guerras e atrocidades. Lembra-se das Cruzadas? Da Inquisição? Época em que o cristianismo pregava a religião e praticava a barbárie, torturando e incinerando vivo qualquer um que pensava fora dos trilhos do catolicismo. Nada mais inquietante, um holocausto! Galileu Galilei foi um exemplo célebre desse barbarismo.

- Erro drástico, eu reconheço.

- Para a Igreja sempre foi muito fácil distorcer a realidade. Ainda recente, seu todo poderoso Deus deu outra cochilada ao permitir mais uma grande tragédia: a Segunda Guerra Mundial. Basta ler os ensaios do jornalista Christian Bernadac para ver como milhares e milhares de judeus foram assassinados pela cúpula da suástica nazista, com toda crueldade possível. Da mesma forma sucumbiram três milhões de prisioneiros de guerra, um milhão e meio de inimigos políticos, seiscentos mil sérvios, quinhentos mil ciganos, duzentos mil poloneses, duzentos mil maçons, quinze mil homossexuais, cinco mil testemunhas de Jeová e muitos outros mortos durante o mais sangrento conflito armado da história da humanidade.

- Ai, Math, isso também me assusta muito.

- Vai assustar mais ainda ao saber da verdadeira história da união soviética que, durante a Primeira Guerra Mundial, sob o comando da cúpula stalinista, confiscou grande parte da produção de grãos na Ucrânia, provocando extermínio de mais de sete milhões de pessoas no inverno de 1932 e 33 - a maioria morria, lentamente, vítima da fome dentro de sua própria casa. Tudo em nome de um ‘novo homem’.

- Sério?

- Tanto Lênin, Stalin e Hitler, por não concordarem com a natureza humana como ela é, promoveram ‘a guerra de classe’ para governar com pessoas saudáveis, bonitas e felizes. Quase um paraíso! Sociedade do futuro, sem deficientes ou pessoas de nível de inteligência inferior.

- Filhos da mãe!

- O comunismo tinha sua ideologia baseada numa falsa sociologia. E os nazistas numa falsa biologia. Ambos alimentavam a pretensão de serem científicos, apoiados em bases científicas. É isso aí.

- Curuis!

- Agora me fala, temos motivos para celebrar forças divinas?

- Ah, Math!

 - Não. Claro que não. A razão prática é a única chave para decifrar as faculdades do ser humano. Parafraseando Beckett, God does not exist --that bastard!

            Suzana leva a mão à testa. E, em tom crítico:

- Se é assim que raciocina, paciência. Tenho fé bem sólida. Sou Católica e respeito à doutrina que aprendi desde a infância, aceitando os desígnios de Deus. Saí à minha mãe, meus avós e bisavós que vero credidit semper que o nome de Deus, toda vez que invocado, abre novos canais para entrada de luz.

- Fé cega?

- Talvez.

- Não vejo nada de errado com os ritos religiosos, desde que o religioso não se espere deles a salvação ou o castigo. E, claro, que sirvam para trazer o bem-estar e para abrandar o medo, em vez de aumentá-lo aos fiéis.

- Math, eu acho um absurdo alguém não acreditar em Deus.

- Da mesma forma que não sabemos se existem fadas ou querubins, levar a sério a existência dos deuses é bastante complicado. Seja ele cristão, judeu, muçulmano ou outro qualquer. A ciência vai continuar investigando, e assim permanecerá até encontrar evidências de que algum deles existiu ou exista.  Por enquanto, fecho com Jacques Lacan, que afirmou com todas as letras que deus não existe, deus é o inconsciente.

- E eu fecho com o escritor búlgaro, Elias Canetti... Aquele que não crê em Deus toma para si toda a culpa pela existência do mundo.

- Putz!

Suzana faz um esforço para se dominar, controlar-se. E sorri com as faces ainda abrasadas.

- Está vendo esse escapulário com o rosto de Jesus?

- Símbolo para veneração?

 Sim. Ganhei de minha mãe. Deu-me quando sai de casa para estudar na Capital.

- Maravilha.

- Só tiro do pescoço à noite, para dormir. Acredito que me dá luz quando preciso, afaga a alma e me ajuda a manter viva a fé cristã. Também sou devota de Nossa Senhora Aparecida.  Peço a ela que traga claridade à minha família e amigos, especialmente, para você, viu?

- Ótimo.

Pausa. Depois de acender outro cigarro, Suzana:

- Pelo menos, Math, fez a primeira comunhão?

- Como todo garoto filho de pais católicos. Ainda me lembro do medo de mastigar a hóstia sagrada e ser denunciado pelo sangue de Jesus, escorrendo no canto da minha boca.

Risos. Suzana continua:

- Então nasceu e foi criado em um lar católico?

- Sim. Na juventude é que achei melhor viver sem religião, ao ver que teria que aceitar um código religioso bastante severo.

- Ora, Math, o povo precisa de um dogma, ter fé. Somente Deus para botar um breque nessa sociedade endiabrada de hoje, que só tem sexo na cabeça.

- Nem Deus vai interferir, posso afiançar. Se é que ele existe bobo não deve ser. Sabe que os hormônios falam mais alto do que os preceitos religiosos, principalmente, entre os jovens.

Suzana rebate:

- Não dessa forma desenfreada.

- Sexo é uma possibilidade divina. O melhor seria a Igreja fazer as pazes com a ciência, o que iria facilitar tudo e acabar com esse fingimento moral de milhares de religiosos que conclamam o povo para a fé, em troca do salvamento de almas pecaminosas.

- Dois polos diferentes.

Pausa. Mathieu:

- Então me explica essa história do celibato para os padres?

- Bem, no princípio, os padres abnegavam de sexo para dedicar o seu tempo e energias à oração e pregação da mesma forma que Jesus Cristo. A partir de 1139, no Concílio de Latrão, o matrimônio foi proibido aos membros da Igreja, em respeito à passagem bíblica prescrita na primeira carta aos Coríntios que assegura ser bom para o homem abster-se da mulher.

Mathieu solta uma sonora risada:

- Abster-se de mulher?

- Para se dedicar exclusivamente à fé, a Deus...

- Querida, os tempos são outros. E a igreja deve se abrir para a modernidade, claro.

- É.

- Hoje em dia existem religiosos, vistos como cidadãos acima de qualquer suspeita, que cometem adoidadamente atos inapropriados.

- Menos.

- Como cético que sou, estou seguro que devemos desconfiar de pessoas de bons sentimentos, envelopadas numa batina.

- Menos, Math.

- Histórias que não acabam mais. Namoram às escondidas por todo canto, promovendo verdadeiras orgias sexuais no maior ‘oba-oba’. Para eles até o confessionário é afrodisíaco – provoca o rapaz.

         - Sombras do mal.

           - Muitas vezes, nem se preocupam em tirar a cruz peitoral e a mantilha estampada com divina sigla: IHS – Jesus Hominium Salvatore.  Argh! Esses padrecos de meia-tigela não estão nem ai para as sagradas escrituras!

- Repugnante!

- Para seu governo, eles se revelam extremamente versados na matéria de fazer libertinagens sexuais.

           - Ora, Math, abusadores estão nas profissões mais respeitadas do mundo e, lamentavelmente, entre membros do clero e profissionais da Igreja. Melhor dizendo: desvio de conduta pode ocorrer em qualquer outro lugar. Dentro da Igreja existem pessoas do bem e do mal.

- Claro, claro.

- A beleza é realmente um dom de Deus, mas que os bons não pensem que ela é um grande bem, pois Deus a distribui mesmo para os maus, já dizia Santo Agostinho.

- Sim. Mas, o pior nesses casos é que, injetados de poder, as autoridades eclesiásticas nem se perturbam tanto com esse tipo de perturbação, causada por indivíduos de mau caráter que vestem uma batina para cometer atrocidades. Protecionistas, fazem vista grossa para evitar escândalos na organização.

- Ora, Math, o celibato não é um dogma de fé, é uma regra, um dom para a Igreja. Não sendo um dogma de fé, há sempre uma porta ou janela aberta.

- Claro. E, Deus, por sua vez, aproveita para tirar um cochilozinho, resguardando a generosidade da antropologia do cristianismo que sempre conviveu com escândalos sexuais.

Depois de um pequeno suspiro, Suzana:

- Na casa do Pai são muitas moradas. Aquele que pratica o mal é porque o espectro do mal está com ele. No julgamento final responderá pelo seu pecado.

- Sexo, querida, pode ser bem mais revigorante a um vigário do que ficar bocejando diante dos livros sagrados. Mãos que trabalham são mais valiosas do que lábios que rezam. Capisce?

- Ora, Math!

- Não censuro um prior que procura sexo para saciar seus desejos. A indústria da fé nunca foi lá muito santa e se impõe como opressora, machista, medieval... Sempre foi assim. Tanto que, até hoje, nenhum sacerdote teve coragem de desmentir a virgindade de Nossa Senhora, fato indispensável do nosso kit evangelístico.

- Que blasfêmia!

- Passa da hora de dar um fim, de uma vez por todas, à fabula acerca do caráter sagrado da vida humana.

- Maluco!

Depois de tomar um pouco de cerveja, Mathieu:

- Até gostaria de fazer algumas sugestões ao Papa.

- Hein?

- Em lugar da cruz que traduz a morte, o Vaticano deveria adotar como símbolo do rebanho de Cristo o coração que representa o amor. Nossa Senhora, em vez de usar véu na cabeça, deveria ter os cabelos enfeitados com uma coroa de murtas.

- Por que murtas?

- Planta consagrada pela deusa Vênus e, também, por São Príapo. Murta é o símbolo da fecundidade, da fertilidade.

Suzana arqueia a sobrancelha.

- Ah, Math, quer saber?

- O quê?

- Nunca deixei que essas coisinhas abalassem a minha fé. Doa a quem doer, faço parte da moda antiga. Costume não se discute, segue.

Nesse momento, Mathieu dá um pulo e fica de pé. Sorrindo arregaça as mangas da camisa, coloca as mãos atrás das costas, levanta a cabeça, dá três passos e senta-se na quina da mesinha de centro para ficar mais próximo dos olhos da amiga. E provoca numa voz mansa:

- Sou herege, sou?

Ela ergue a cabeça, aguça o olhar e faz o sinal da cruz:

- Ímpio. Mais, não diga.

Risos. Mathieu:

- Ao contrário de Hamlet, ando cada dia mais desconfiado de que existem menos coisas entre o céu e a terra.

- Prepotente!

- Então me fala o que Deus fazia antes de criar a Terra?

- Segundo Santo Agostinho, com sua infinita sabedoria, Deus não fazia nada. Mas isso não significa que ficava o tempo todo ocioso, porque Ele ainda não havia criado o tempo.

Mathieu, como riso miúdo no canto da boca, não discute a resposta à sua pergunta. Em silêncio, dá uma tragada no cigarro, toma um gole de cerveja e atenta:

- Vida além da morte, encarnação, ressurreição, morte expiatória na cruz, reencarnação, psicografia... Não acredito em nada disso. Para mim, a morte é simplesmente um fim de tudo.

- Cético convicto?

- Aliás, em reencarnação talvez. Estou com Henry Miller, quando disse que sexo é uma das nove razões para a reencarnação, as outras oito não tem importância. Portanto, goze sem impedimentos.

- Se raciocina desse jeito, paciência.

Pausa. Mathieu:

- Portando, acho bastante frágil a tese fundamental da etnologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. E eternamente protegido por ele.

- Foi e será sempre. É aí que você se engana, não tenho a menor dúvida da minha fé cristã– apressa Suzana.

- Das duas uma: se o homem foi criado à imagem de Deus, então ele tem lá suas entranhas. Ou então o Todo-Poderoso não tem intestinos e o ser humano está longe de se parecer com ele.

- Math, escuta aqui: o que contamina o homem não é o entra pela boca, mas o que sai da boca. São essas as palavras de Cristo aos escribas e fariseus, em Jerusalém.

- Cristo?

- A procura por Deus é sempre acompanhada por incertezas, você sabe disso. O caminho da verdade, Math, está em buscar Deus para encontrá-lo para procurá-lo sempre.

- Sempre?

- Sempre. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés e Jesus Cristo, sucessivamente deixaram espaço para a dúvida.

Dizendo isso, Suzana olha para o rapaz como se não quisesse prolongar o assunto. E observa com discrição:

- Acabou a cerveja, não é? Fica sentadinho aí no sofá aí que vou buscar mais uma garrafa.

- Bem-vindo seja o vosso líquido! Amém – brinca o rapaz com um sorriso atrevido.

Suzana levanta-se. Num giro rápido deixa a sala, fumando. Minutos depois, volta da cozinha com mais uma garrafa e outro pratinho cheio de azeitonas.

Enquanto se acomodava na poltrona, ressalta:

- O que me parece incrível, Math, é que o mundo sempre teve personagens com pensamentos agnósticos para apimentar o imaginário do povo. Mas a fé num Criador continua acesa e, por Ele os sinos da Igreja Católica vão dobrar eternamente.

- Sinergia bíblica.

Sem dizer mais uma só palavra, a mulher ri com ar devoto. Depois, coloca cerveja no copo do amigo e acaricia-lhe uma das suas mãos por um tempo demorado.

Mathieu, refestelado no sofá, saca do maço outro cigarro, acende e começa a fumar, imerso em sua própria fumaça.


* FBN© - 2012 – O Sagrado. Eis o Medo..., NUMA NOITE EM  68 - Categoria: Romance de Geração -  Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: SANTA CEIA, da pintora argentina Maria Nicola Constantino. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/22xxi-deus-existe.html?zx=9fe7beb24fb94119

 

 

 

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