Santa Ceia - óleo sobre tela.
Mathieu
retira um cigarro do maço. Deixa-o entre os dedos sem acender, rindo. Suzana:
- Pelo
que se vê, hoje em dia, o termo liberdade se constitui numa receita da
degradação do homem. Caminhamos a passos largos para um mundo de despudorados.
- Menos,
querida, menos – atalha o rapaz, fazendo um sinal com a mão espalmada para
baixo.
- Ora,
Math, essa história da rapaziada sair por aí, brincando de fazer todo
tipo de coisa, trinca a ideia da verdadeira definição da palavra
liberdade. Pode achar que não, mas é.
- Há
excessos, admito.
Suzana
insiste:
- Pelo
que se percebe, marchamos para outra ditadura, a do relativismo que não
reconhece coisa nenhuma como certa.
- Acha?
- O
planeta esquece que Deus, em sua onipotência, imprimiu na alma humana uma
hierarquia, onde a inteligência deve guiar a vontade do ser, sem desgovernar a
sensibilidade das pessoas.
O rapaz
abre um sorriso meio sarcástico:
- Tudo
bem. Tudo bem. Não quero interferir nem influenciar a cabeça de ninguém. Mas,
não acha que já é tempo de acabar com atitudes, excessivamente, conservadoras
desses fiéis alucinados que pregam o fim do mundo para quem não adota os
preceitos religiosos?
- Não exagera.
- Ora,
Suzana, a religião reprime, ameaça e amedronta. Só fala de pecado e de culpa.
Deus castiga. Você sabe que é assim. Difícil entender tamanha resistência de
sua parte.
- Eu,
resistente?!
-
Querida, uma mulher culta, observadora e atenta às sutilezas do mundo como
você, leitora de Nietzsche, tinha que ser mais flexível e mais aberta às
mudanças.
- Gosto
muito de Niet. Mas nem tudo que ele defendeu eu concordo.
- Só
porque era ele ateu?
Suzana,
muito segura, rechaça sem desviar os olhos do amigo:
-
Evidente. Como posso concordar com um ser humano que dizia ter matado
Deus. Não tem sentido. Ateu e louco, coisa-ruim. Por cima forneceu substrato
ideológico ao Nazismo.
- Epa!
Não foi bem assim.
- Avant la lettre do Nazismo!
- Nada
disso. Nada disso – contrapõe Mathieu. - Como poderia Niet ser nazista se
viveu e morreu na primeira metade do século XX, antes da criação do partido
alemão?
Pausa.
Suzana:
-
Influenciou com suas ideias malucas, bestiais... Ah, Math, eu achava Niet um
filósofo excepcional. Quando descobri isso perdi o encanto.
- Ninguém
contesta que Nietzsche foi considerado um individualista da ala radical. Mas,
daí a ser fonte de inspiração para Hitler não tem nada a ver. Hoje, todo mundo
sabe que a história é outra.
-
Possivelmente até admirador da Eugenia, do Transumanismo.
- Nada
disso.
- Não
ponho a mão no fogo. Para quem acha que matou Deus, oferecer fórmulas
evolucionais para acabar com Judeus seria apenas mais um passo.
- Ora,
Suzana!
- Ora o
quê?
- Essa
política de eliminação de castas foi adotada pelos soviéticos e pelos nazistas,
apadrinhada por teorias de Francis Galton. Defensor da barbárie para criar um
novo homem, ele pregava o fim dos ‘parasitas sociais’. Do mesmo jeito Karl Marx
fundamentou sua tese eugenista, defendendo que as classes e as raças muito fracas devem desaparecer no holocausto
revolucionário. Ou seja: harmonia definitiva só é alcançada quando se
eliminam certos grupos de pessoas. Nada. Nada a ver com Niet.
- Sei
não!
- Na
verdade, essa ideia de transumanismo é uma coisa ainda confinada às páginas dos
livros de ficção científica. Não passa de um surrealismo futurista!
Pausa.
Suzana admirada:
- Que
coisa, hein!
- Tudo
isso é fruto de uma desprezível manobra familiar. A irmã do filósofo, Elisabeth
Förster-Nietzsche, que cuidou dele enquanto doente, era simpatizante do
movimento nazifascista. Tanto que, num gesto simbólico, brindou a Hitler a
bengala que pertenceu a Niet, como se quisesse dizer que seu irmão, se
estivesse vivo, seria defensor do papel especial do povo alemão, admirador do
Fuhrer.
-
Deus-me-livre!
-
Devaneios, claro. Coisas da cabeça de Elisabeth, nada mais fantasioso.
-
Bem, bem...
- Para
esclarecer melhor seu raciocínio, leia A Gaia Ciência, um dos seus livros mais
profundos.
- Faço
questão.
- Não há
evidências de que Niet entrou na onda do antissemitismo. Se, de fato, foi um
dia simpático a alguma teoria da suposta superioridade racial, logo descartou
por achar absurda. Portanto, é errôneo dizer que Nietzsche tem alguma coisa a
ver com a psicose de pureza racial.
- Será?
- Também
não aprovo. Me causa repulsa, constrange.
- Ainda
bem.
Mathieu
sorri, enigmaticamente. Leva o cigarro à boca e puxa uma longa tragada. Depois
diz:
-
Suspeito que Friedrich Nietzsche, esse alucinado genial, não era tão descrente
assim. Basta saber que o título da sua autobiografia é Ecce Homo, termo que, na
iconografia cristã, costuma tratar das representações de Jesus Cristo em
sofrimento.
- Ah, Math, mesmo assim.
-
Então...
-
Religiosa de moldes antigos, não dispenso a proteção Dele em todos os sentidos.
Educada de acordo com a tradição católica, apostólica e romana estou certa de
que Deus existe e guardo a fé cristã dentro de mim.
- Nada
contra. Não sou religioso, mas respeito todas as crenças e me aborreço com qualquer
ateuzinho que incha o peito para desqualificar as religiões e a arte religiosa,
como se fosse prova de maior inteligência ou coragem intelectual.
- Ainda
bem.
- É um
flagrante desrespeito ao que de mais sagrado: a liberdade de culto religioso.
- Claro.
- Mal
sabe ele o histórico papel civilizador dessas filosofias seculares, ‘né?
-Ã-Hã.
- Mas,
não posso deixar de criticar a Igreja que investe na figura dos pais para
manter a família no caminho desejado por ela, principalmente, diante do
silogismo de que se lida com a vontade de Deus, um ser ubíquo que tudo governa
conforme sua vontade. Rege o Sol, a Terra e a Lua, o universo inteiro.
- Deus é
supremo.
- Tanto é
que, para os fiéis de carteirinha que seguem os preceitos de um livro sagrado,
quando alguém se livra de uma doença ou de um acidente fatal a vitória,
incontestavelmente, é atribuída ao milagre da providência divina. Não é
assim?
- Eu
creio em milagres.
Mathieu
solta uma gargalhada:
-
Milagres! Milagres não existem. Coisas assim não passam da prodigiosa habilidade
do acaso. Nada mais. Nada.
- Não impreque
– impacienta-se a mulher.
- Veritas odium parit.
- Hein?
- A verdade
gera o ódio entre os fiéis.
- Ora,
rapaz!
-
Acredito na racionalidade. Nada a ver com Deus. Nada. Acredito numa visão do
universo que possa ser provada pela ciência.
Pausa.
Suzana:
- Para
você, there’s probably no God?
- Deus é
um delírio.
- Morreu
acabou?
- Cessa
tudo. Fim da linha.
- Que
coisa, hein?
- A vida
do homem começa na Terra num momento de amor, se desenvolve no útero de uma
fêmea, passa pelo berço e termina no túmulo como ‘reles mortais’. Bye, bye... The end.
-
Caramba!
- Essa
história de céu lá em cima é outro desatino. Mistério que Hamlet chamou de
‘país desconhecido’, de onde jamais alguém voltou para contar alguma coisa do
lugar.
- Ora,
Math!
- Mas, se
de tudo eu estiver enganado, espero que Maat, a deusa da verdade, da ordem e da
justiça, que julgava os mortos no Egito antigo, me dê um espaço especial ao seu
lado.
- Bobo!
- Pela
imagem é uma belíssima deusa. Insinuante e fogosa como Vênus, June e Minerva.
Suzana,
depois de uma comprida tragada em seu mentolado:
- Eu sei
que a existência de Deus não pode ser medida pelos métodos científicos. Mas, a
ciência só evoluiu pela inteligência que Deus deu ao ser humano.
- Kkkkkk!
- Rindo
de quê, Math?
- Leu o
livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin?
- Ainda
não.
- Leia.
Foi escrito em 1859. O maior estudo sobre a evolução do ser humano, focado em
apartar a ciência da crença religiosa.
- Sim.
- Darwin
nos deu base segura para responder com verdades as mentiras dos místicos que
iludem a humanidade, desde que o mundo é mundo. Para o biólogo, fora da ciência
não há salvação.
A mulher
sobressalta-se:
- Mesmo?
- É
extremamente necessário ser um cientista de dignidade para infectar de dúvidas
todos os equívocos que os livros sagrados plantaram na cabeça dos religiosos. E
Darwin foi.
- Ainda
assim milhares de pessoas em todo o planeta continuam a questionar a ‘Teoria da
Evolução’. Por que, hein? Por quê?
- Pela
ausência de conhecimentos, óbvio. Geralmente essa gente não sabe nada, ou quase
nada, sobre a evolução dos seres vivos e, muito menos, admite boa convivência entre
a ciência e as religiões.
- Pois
então, qual a explicação dessa relação de grupos humanos isolados com as forças
sobrenaturais? Gente como os índios da Amazônia, da África, da Ásia!
Vamos, me explique?
Mathieu
estica o braço, pega o copo de cerveja pela metade e toma o resto da bebida.
Sorri e responde:
-
Nascemos com predisposição psicológica para a fé.
- Hum?
- A fé em
um Deus dá subsidio ao humano para lidar com as fantasias diante da realidade
terrestre. Bem, de alguma forma, a religiosidade ajuda a sobreviver, preenche
lacunas, alivia medos e dores da alma. Por isso mesmo que a religião jamais
desaparecerá do planeta. É o ópio do povo. Amém!
- Isso é
milagre.
- É o que
os sábios chamam de mistério científico. Nada que um dia a ciência não possa
desvendar. Sabem eles que essa doutrina que as pessoas sustentam ser a fé, não
passa de uma exigência de profunda necessidade do íntimo do ser humano. E não
de uma graça emanada de Deus.
-
Claro que é.
Pausa.
Mathieu:
- O ser
humano, de modo geral, prefere a ficção que acalma seu espírito e dá segurança
para dormir em paz, do que encarar a realidade da vida de frente. Nada é mais
certo.
- Acha?
- Como
também fertiliza terreno para a crença divina prosperar, principalmente, entre
povos menos esclarecidos. Isso responde pelas alucinações que a fé constrói.
- É?
- Em
certos países as religiões são utilizadas para serenar populações que, de outra
maneira, revoltariam com a forma relapsa e cruel com que são tratadas pelos
seus governantes.
- Pode
até ser, mas...
-
Portanto, querida, a possibilidade de existir um Deus criador do universo,
sempre vai gerar conflitos entre os seres humanos.
Pausa.
Suzana:
- Quer
dizer que a Bíblia Sagrada não representa nada para você?
- O livro
que se diz santo não foi ditado por Deus coisa nenhuma. Mas, reconheço que é de
grande importância histórica e, sobretudo, trata-se de uma obra interessante de
autoajuda – ressalta Mathieu.
- Então
não acredita?
- Não.
Foi escrita pela imaginação dos homens.
Suzana
com a mão no peito:
- Confio
em Deus e, através das palavras do Texto Sagrado, o Nosso Senhor se faz presente
no coração dos homens.
-
Bobagens. Desde Gutenberg cresceu uma tremenda indústria atiçada pela
publicação em massa da Bíblia. Tudo como se Deus tornasse sócio de um
empreendimento para garantir lucros elevados aos executivos religiosos. Só para
você ter uma ideia, o Vaticano representa uma das maiores fortunas da economia
mundial, o que nos leva a deduzir que essa é a real multiplicação de pães e
peixes na cúpula sagrada.
- Ai, que
absurdo! – espanta-se Suzana.
- É a
realidade, querida. Cada dia mais, as Igrejas elevam o amor à Santíssima
Trindade pelas vantagens que se pode auferir em seu nome.
- Sei que
ainda há pessoas que se aproveitam da fé religiosa para ganhar dinheiro de
forma desonesta. Não está certo, não está. A energia mental é dádiva de Deus e
apenas deve ser utilizada para os bons propósitos. É justo que o pobre melhore
sua situação econômica, mas não é justo utilizar a força mental para prejudicar
outras pessoas. Entende?
Depois de
um fôlego, Mathieu:
- Suzana,
se Deus é tão bom e generoso, então me diga por que o mundo é tão cruel?
- Ora,
Math...
- Na
esteira da exacerbação da fé em um ser superior, a religião aparece por trás,
direta ou indiretamente, de diversas guerras e atrocidades. Lembra-se das
Cruzadas? Da Inquisição? Época em que o cristianismo pregava a religião e
praticava a barbárie, torturando e incinerando vivo qualquer um que pensava
fora dos trilhos do catolicismo. Nada mais inquietante, um holocausto! Galileu
Galilei foi um exemplo célebre desse barbarismo.
- Erro
drástico, eu reconheço.
- Para a
Igreja sempre foi muito fácil distorcer a realidade. Ainda recente, seu todo
poderoso Deus deu outra cochilada ao permitir mais uma grande tragédia: a
Segunda Guerra Mundial. Basta ler os ensaios do jornalista Christian Bernadac
para ver como milhares e milhares de judeus foram assassinados pela cúpula da
suástica nazista, com toda crueldade possível. Da mesma forma sucumbiram três
milhões de prisioneiros de guerra, um milhão e meio de inimigos políticos,
seiscentos mil sérvios, quinhentos mil ciganos, duzentos mil poloneses,
duzentos mil maçons, quinze mil homossexuais, cinco mil testemunhas de Jeová e
muitos outros mortos durante o mais sangrento conflito armado da história da
humanidade.
- Ai, Math,
isso também me assusta muito.
- Vai
assustar mais ainda ao saber da verdadeira história da união soviética que,
durante a Primeira Guerra Mundial, sob o comando da cúpula stalinista,
confiscou grande parte da produção de grãos na Ucrânia, provocando extermínio
de mais de sete milhões de pessoas no inverno de 1932 e 33 - a maioria morria,
lentamente, vítima da fome dentro de sua própria casa. Tudo em nome de um ‘novo
homem’.
- Sério?
- Tanto
Lênin, Stalin e Hitler, por não concordarem com a natureza humana como ela é,
promoveram ‘a guerra de classe’ para governar com pessoas saudáveis, bonitas e
felizes. Quase um paraíso! Sociedade do futuro, sem deficientes ou pessoas de
nível de inteligência inferior.
- Filhos
da mãe!
- O
comunismo tinha sua ideologia baseada numa falsa sociologia. E os nazistas numa
falsa biologia. Ambos alimentavam a pretensão de serem científicos, apoiados em
bases científicas. É isso aí.
- Curuis!
- Agora
me fala, temos motivos para celebrar forças divinas?
- Ah,
Math!
-
Não. Claro que não. A razão prática é a única chave para decifrar as faculdades
do ser humano. Parafraseando Beckett, God
does not exist --that bastard!
Suzana leva a mão à testa. E, em
tom crítico:
- Se é
assim que raciocina, paciência. Tenho fé bem sólida. Sou Católica e respeito à
doutrina que aprendi desde a infância, aceitando os desígnios de Deus. Saí à
minha mãe, meus avós e bisavós que vero
credidit semper que o nome de Deus, toda vez que invocado, abre novos
canais para entrada de luz.
- Fé
cega?
- Talvez.
- Não
vejo nada de errado com os ritos religiosos, desde que o religioso não se
espere deles a salvação ou o castigo. E, claro, que sirvam para trazer o
bem-estar e para abrandar o medo, em vez de aumentá-lo aos fiéis.
- Math,
eu acho um absurdo alguém não acreditar em Deus.
- Da
mesma forma que não sabemos se existem fadas ou querubins, levar a sério a
existência dos deuses é bastante complicado. Seja ele cristão, judeu, muçulmano
ou outro qualquer. A ciência vai continuar investigando, e assim permanecerá
até encontrar evidências de que algum deles existiu ou exista. Por
enquanto, fecho com Jacques Lacan, que afirmou com todas as letras que deus não existe, deus é o inconsciente.
- E eu
fecho com o escritor búlgaro, Elias Canetti... Aquele que não crê em Deus toma para si toda a culpa pela existência do
mundo.
- Putz!
Suzana
faz um esforço para se dominar, controlar-se. E sorri com as faces ainda
abrasadas.
- Está
vendo esse escapulário com o rosto de Jesus?
- Símbolo
para veneração?
Sim. Ganhei de minha mãe. Deu-me quando sai de
casa para estudar na Capital.
-
Maravilha.
- Só tiro
do pescoço à noite, para dormir. Acredito que me dá luz quando preciso, afaga a
alma e me ajuda a manter viva a fé cristã. Também sou devota de Nossa Senhora
Aparecida. Peço a ela que traga claridade à minha família e amigos,
especialmente, para você, viu?
- Ótimo.
Pausa.
Depois de acender outro cigarro, Suzana:
- Pelo
menos, Math, fez a primeira comunhão?
- Como
todo garoto filho de pais católicos. Ainda me lembro do medo de mastigar a
hóstia sagrada e ser denunciado pelo sangue de Jesus, escorrendo no canto da minha
boca.
Risos.
Suzana continua:
- Então
nasceu e foi criado em um lar católico?
- Sim. Na
juventude é que achei melhor viver sem religião, ao ver que teria que aceitar
um código religioso bastante severo.
- Ora,
Math, o povo precisa de um dogma, ter fé. Somente Deus para botar um breque
nessa sociedade endiabrada de hoje, que só tem sexo na cabeça.
- Nem
Deus vai interferir, posso afiançar. Se é que ele existe bobo não deve ser.
Sabe que os hormônios falam mais alto do que os preceitos religiosos,
principalmente, entre os jovens.
Suzana
rebate:
- Não
dessa forma desenfreada.
- Sexo é
uma possibilidade divina. O melhor seria a Igreja fazer as pazes com a ciência,
o que iria facilitar tudo e acabar com esse fingimento moral de milhares de
religiosos que conclamam o povo para a fé, em troca do salvamento de almas
pecaminosas.
- Dois
polos diferentes.
Pausa.
Mathieu:
- Então
me explica essa história do celibato para os padres?
- Bem, no
princípio, os padres abnegavam de sexo para dedicar o seu tempo e energias à
oração e pregação da mesma forma que Jesus Cristo. A partir de 1139, no
Concílio de Latrão, o matrimônio foi proibido aos membros da Igreja, em
respeito à passagem bíblica prescrita na primeira carta aos Coríntios que
assegura ser bom para o homem abster-se da mulher.
Mathieu
solta uma sonora risada:
-
Abster-se de mulher?
- Para se
dedicar exclusivamente à fé, a Deus...
-
Querida, os tempos são outros. E a igreja deve se abrir para a modernidade,
claro.
- É.
- Hoje em
dia existem religiosos, vistos como cidadãos acima de qualquer suspeita, que
cometem adoidadamente atos inapropriados.
- Menos.
- Como cético que sou, estou seguro que devemos
desconfiar de pessoas de bons sentimentos, envelopadas numa batina.
- Menos,
Math.
- Histórias
que não acabam mais. Namoram às escondidas por todo canto, promovendo
verdadeiras orgias sexuais no maior ‘oba-oba’. Para eles até o confessionário é
afrodisíaco – provoca o rapaz.
- Sombras do mal.
- Muitas vezes, nem
se preocupam em tirar a cruz peitoral e a mantilha estampada com divina sigla:
IHS – Jesus Hominium Salvatore. Argh! Esses padrecos de meia-tigela não
estão nem ai para as sagradas escrituras!
-
Repugnante!
- Para
seu governo, eles se revelam extremamente versados na matéria de fazer
libertinagens sexuais.
- Ora, Math, abusadores estão nas
profissões mais respeitadas do mundo e, lamentavelmente, entre membros do clero
e profissionais da Igreja. Melhor dizendo: desvio de conduta pode ocorrer em qualquer
outro lugar. Dentro da Igreja existem pessoas do bem e do mal.
- Claro,
claro.
- A beleza é realmente um dom de Deus, mas que os bons não
pensem que ela é um grande bem, pois Deus a distribui mesmo para os maus, já dizia Santo Agostinho.
- Sim.
Mas, o pior nesses casos é que, injetados de poder, as autoridades
eclesiásticas nem se perturbam tanto com esse tipo de perturbação, causada por
indivíduos de mau caráter que vestem uma batina para cometer atrocidades.
Protecionistas, fazem vista grossa para evitar escândalos na organização.
- Ora,
Math, o celibato não é um dogma de fé, é uma regra, um dom para a Igreja. Não
sendo um dogma de fé, há sempre uma porta ou janela aberta.
- Claro.
E, Deus, por sua vez, aproveita para tirar um cochilozinho, resguardando a
generosidade da antropologia do cristianismo que sempre conviveu com escândalos
sexuais.
Depois de
um pequeno suspiro, Suzana:
- Na casa
do Pai são muitas moradas. Aquele que pratica o mal é porque o espectro do mal está
com ele. No julgamento final responderá pelo seu pecado.
- Sexo,
querida, pode ser bem mais revigorante a um vigário do que ficar bocejando
diante dos livros sagrados. Mãos que trabalham são mais valiosas do que lábios
que rezam. Capisce?
- Ora,
Math!
- Não
censuro um prior que procura sexo para saciar seus desejos. A indústria da fé
nunca foi lá muito santa e se impõe como opressora, machista, medieval...
Sempre foi assim. Tanto que, até hoje, nenhum sacerdote teve coragem de
desmentir a virgindade de Nossa Senhora, fato indispensável do
nosso kit evangelístico.
- Que
blasfêmia!
- Passa
da hora de dar um fim, de uma vez por todas, à fabula acerca do caráter sagrado
da vida humana.
- Maluco!
Depois de
tomar um pouco de cerveja, Mathieu:
- Até
gostaria de fazer algumas sugestões ao Papa.
- Hein?
- Em
lugar da cruz que traduz a morte, o Vaticano deveria adotar como símbolo do
rebanho de Cristo o coração que representa o amor. Nossa Senhora, em vez de
usar véu na cabeça, deveria ter os cabelos enfeitados com uma coroa de murtas.
- Por que
murtas?
- Planta
consagrada pela deusa Vênus e, também, por São Príapo. Murta é o símbolo da
fecundidade, da fertilidade.
Suzana
arqueia a sobrancelha.
- Ah,
Math, quer saber?
- O quê?
- Nunca
deixei que essas coisinhas abalassem a minha fé. Doa a quem doer, faço parte da
moda antiga. Costume não se discute, segue.
Nesse
momento, Mathieu dá um pulo e fica de pé. Sorrindo arregaça as mangas da
camisa, coloca as mãos atrás das costas, levanta a cabeça, dá três passos e
senta-se na quina da mesinha de centro para ficar mais próximo dos olhos da
amiga. E provoca numa voz mansa:
- Sou
herege, sou?
Ela ergue
a cabeça, aguça o olhar e faz o sinal da cruz:
- Ímpio.
Mais, não diga.
Risos.
Mathieu:
- Ao
contrário de Hamlet, ando cada dia mais desconfiado de que existem menos coisas
entre o céu e a terra.
-
Prepotente!
- Então
me fala o que Deus fazia antes de criar a Terra?
- Segundo
Santo Agostinho, com sua infinita sabedoria, Deus não fazia nada. Mas isso não
significa que ficava o tempo todo ocioso, porque Ele ainda não havia criado o
tempo.
Mathieu,
como riso miúdo no canto da boca, não discute a resposta à sua pergunta. Em
silêncio, dá uma tragada no cigarro, toma um gole de cerveja e atenta:
- Vida
além da morte, encarnação, ressurreição, morte expiatória na cruz,
reencarnação, psicografia... Não acredito em nada disso. Para mim, a morte é
simplesmente um fim de tudo.
- Cético
convicto?
- Aliás,
em reencarnação talvez. Estou com Henry Miller, quando disse que sexo é uma das nove razões para a
reencarnação, as outras oito não tem importância. Portanto, goze sem
impedimentos.
- Se
raciocina desse jeito, paciência.
Pausa.
Mathieu:
-
Portando, acho bastante frágil a tese fundamental da etnologia cristã, segundo
a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. E eternamente
protegido por ele.
- Foi e
será sempre. É aí que você se engana, não tenho a menor dúvida da minha fé cristã–
apressa Suzana.
- Das
duas uma: se o homem foi criado à imagem de Deus, então ele tem lá suas entranhas.
Ou então o Todo-Poderoso não tem intestinos e o ser humano está longe de se
parecer com ele.
- Math,
escuta aqui: o que contamina o homem não
é o entra pela boca, mas o que sai da boca. São essas as palavras de Cristo
aos escribas e fariseus, em Jerusalém.
- Cristo?
- A
procura por Deus é sempre acompanhada por incertezas, você sabe disso. O
caminho da verdade, Math, está em buscar Deus para encontrá-lo para procurá-lo
sempre.
- Sempre?
- Sempre.
Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés e Jesus Cristo, sucessivamente
deixaram espaço para a dúvida.
Dizendo
isso, Suzana olha para o rapaz como se não quisesse prolongar o assunto. E
observa com discrição:
- Acabou
a cerveja, não é? Fica sentadinho aí no sofá aí que vou buscar mais uma
garrafa.
-
Bem-vindo seja o vosso líquido! Amém – brinca o rapaz com um sorriso atrevido.
Suzana
levanta-se. Num giro rápido deixa a sala, fumando. Minutos depois, volta da
cozinha com mais uma garrafa e outro pratinho cheio de azeitonas.
Enquanto
se acomodava na poltrona, ressalta:
- O que
me parece incrível, Math, é que o mundo sempre teve personagens com pensamentos
agnósticos para apimentar o imaginário do povo. Mas a fé num Criador continua
acesa e, por Ele os sinos da Igreja Católica vão dobrar eternamente.
-
Sinergia bíblica.
Sem dizer
mais uma só palavra, a mulher ri com ar devoto. Depois, coloca cerveja no copo
do amigo e acaricia-lhe uma das suas mãos por um tempo demorado.
Mathieu,
refestelado no sofá, saca do maço outro cigarro, acende e começa a fumar,
imerso em sua própria fumaça.
* FBN© - 2012 – O Sagrado. Eis o
Medo..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração -
Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: SANTA CEIA, da pintora argentina
Maria Nicola Constantino. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/22xxi-deus-existe.html?zx=9fe7beb24fb94119
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