*
A alegria é o vento que nos levanta do piso e nos deixa em outra parte, um lugar em desaviso,
escreveu. Emily Dickinson
MEN MADE OF WORDS
Charles Dickens, autor do clássico Oliver Twist em meio a uma plêiade de boêmios que
pregavam a revolução pelas letras . O escritor lia parte de seus ensaios para seus amigos, reunidos em sua casa,
apurando a arte de criar diálogos com homens feitos de palavras.
Mathieu,
depois de espetar uma azeitona, pergunta:
- Quem
mais gosta de ler, Suzana?
- Hummm...,
são tantos! Posso afirmar que Fernando Pessoa me faz muito bem, incorpora. É o
silêncio que preciso para respirar. Faz-me refletir, viver melhor comigo mesma.
- Sério?
- Como é
um autor atento à complexidade da condição humana, não há quem ele não acerte o
espírito pela simplicidade, aparentemente, fácil de seus poemas. Concorda?
- De
fato.
- Por
isso mesmo, que consegue manter diálogo com nosso emocional o tempo todo. Tudo
como se cada verso fosse um organismo vivo, oferecendo ao leitor lentes
diferentes para ver o mundo de forma mais suave e doce.
-
Incrível, ‘ne?
- Como
são incríveis os seus heterônimos. Cada um com identidade física e
características psicológicas próprias. Cada um com sua biografia e estilo
próprio, trabalhando a seu jeito, os substantivos, os adjetivos e os verbos
como ninguém até hoje conseguiu.
-
Genial! Genial! – aplaude o rapaz.
- De um
crítico português, certa vez, li que os versos de Fernando constituem numa solitária multidão de uma só pessoa, dando corpo ao seu
extraordinário teatro de ‘eus’ com sua criação pomposa e elegante de autores
personagens. Não tem igual.
- Por aí.
- São
tantos heterônimos, que vez ou outra, eu compro um lançamento de trabalhos
inéditos de Fernando. Isso quer dizer que, mesmo morto em 1935, continua
publicando livros até hoje e, pelo que vejo, continuará por muito tempo ainda
em plena atividade literária. Se bem me lembro, eles são 72. O primeiro criado
foi contista e chargista de A Palavra, Pancrácio, passando por Pantaleão, poeta
e prosador e, no final da lista, Vadooisf, poeta revelado em comunicação
mediúnica.
- Sem
dúvida, é o mais universal dos poetas portugueses.
A mulher
enternecida, conclui:
- A
poesia é um êxtase que não se esgota. Serve de bálsamo, serve para a construção
de alicerces, não é mesmo?
- Sim,
claro. Para Mário Quintana quem faz um
poema abre uma janela/ quem faz um poema salva um afogado.
-
Drummond é outro poeta que também me diz muito. Infindável, me fascina. Volta e
meia tenho vontade revisitá-lo, motivada pela universalidade de seu
conhecimento da alma humana.
- Outro
mestre do tempo. Admirável!
- Como
Pessoa seus olhos respiram poesia. Eles proporcionam toques delicados em nosso
interior. Curto muito.
Pausa.
Mathieu.
- E em
prosa?
-
Guimarães Rosa. Esse eu leio com atenção especial. Sou de Cordisburgo, Minas
Gerais.
- Legal.
- Como a
narrativa dele transforma leitor em sonhador, vida em viagem posso dizer que Rosa
foi quem mais me ajudou a ser uma pessoa apaixonada pela literatura. Ensinou-me,
com todas as letras, a focar o rio da minha aldeia com mais intimidade.
O rapaz
abre mais o sorriso.
- Boas
escolhas, menina. Guimarães Rosa, que também exercitou sua fantasia no formato
da poesia, Fernando Pessoa e Carlos Drummond são autores iluminados,
inesgotáveis. Com mente e visões universais, oferecem ao leitor, de forma
aberta, livros que mexem com a nossa imaginação. Deles a gente lê duas, três
páginas e tem no que pensar durante um mês inteiro. Ou mais.
- Claro.
Math, você sabe que Grande Sertão: Veredas, com todo o seu malabarismo verbal e
acessibilidade universal, foi escrito em Paris?
- Não.
Não sabia.
- Foi ali,
cerca de nove mil quilômetros de Cordisburgo, Rosa pôs à vista dos leitores
avaliação crítica do próprio tema na literatura brasileira. Com sabedoria
extraiu de seus cadernos de anotações o que viu e ouviu ao longo da célebre
viagem que realizou com um grupo de boiadeiros pelo sertão de Minas Gerais, em
1952. O sertão nem parece ser tão longe assim, não é mesmo?
- Parece
não.
- Como
grande observador de tudo à sua volta, Rosa tentou traduzir, ao seu modo, a
exuberância da natureza brasileira, mesmo que a do sertão de Minas Gerais. Outro
sertão. Em um diálogo direto com a população do interior mineiro, ele colocou
essa carga de gente simples em cada personagem, numa tentativa de captar o
sertão real que viu e sentiu na pele. Enfim, deu vida ao lugar com seu vazio
tão preenchido para mostrar que, talvez a riqueza do homem de lá seja a
heterogeneidade. Produziu um livro que explora todos os limites da literatura.
Pausa.
Mathieu:
- Cidade
Luz! Truque de mineiro?
- Rosa
foi um grande mestre, Math. Sentado numa poltrona na sala do seu apartamento,
onde a luz natural entrava por uma janela aberta para a Torre Eiffel, Rosa
concluiu seu best-seller,
cerimoniosamente – elucida Suzana.
- Ave,
Rosa!
- É o que
justifica a grandiosidade de Grande Sertão, Veredas. O escritor, com
arquitetura literária delirante, revela em cada capítulo seu jeito de contar e
criar ‘estórias’ para mostrar que o Sertão é o continente mais chegado da alma
brasileira. Também o mais afastado de nossa consciência.
- Ã-Hã.
- Guimarães
Rosa é o mais importante romancista brasileiro da geração de 1950, candidato ao
pódio da língua portuguesa em qualquer época. De relevância internacional, marcou
o apogeu do regionalismo brasileiro ao lado de Graciliano Ramos, com Vidas
Secas. Wrote for everyone!
Mathieu
retém o sorriso. Bate a mão na testa, protestando:
- Até
hoje, Suzana, não entendi porque Ferreira Gullar não agradou nem um pouco do
romance de Rosa. Num través de rusgas, o poeta achou uma história de cangaço
contada para linguistas num catatau de mais de quinhentas páginas. Um
despautério! Vê se pode?
-
Tolices, tem gente que adora criticar os outros. Grande Sertão: Veredas não é
um livro escrito para ser entretenimento fácil, embora seja divertido. Ou de
utilidade relativa a carências do leitor, seja ela qual for. É uma obra com
tamanha precisão vocabular, robusta, que logo conquistou prestígio
internacional.
- Sim.
- O que
você não pode é ser impaciente ao ler Guimarães Rosa.
- Tem
razão. Apregoar a decadência de um escritor desse tamanho de não passa de um
estratagema de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de provocação. A Rosa
o que de Rosa.
Suzana
ri.
- Faz
parte do jogo. Mas, posso afirmar com todas as letras que a fama de ‘obra
difícil’, explica a relutância de alguns leitores em embarcar com profundezas
em Guimarães Rosa. Um dos motivos vem do fato de ele ter escrito períodos
longos, recheados de neologismo, embora a fama nem sempre seja justificada. Em
síntese, o autor é muito comentado e pouco lido.
- Tem
razão.
Suzana
depois de uma tragada no cigarro:
- Posso
dizer, como pedagoga, que uma crítica feroz assim, partindo de um autor de
certo alcance, é um desserviço à literatura.
- Pior
que é. Desde o seu lançamento, parte da crítica tem se dedicado mais a
achincalhar Guimarães Rosa do que cumprir seu papel de entender o objeto.
Atira-se para todos os lados – acentua o rapaz.
- Háháhá!
Toma ares de disputa renhida, não?
-
Evidente. Muitos escrevem sobre Guimarães Rosa, mas poucos têm noção da
grandeza do seu conjunto de obras. Abeira-se de tudo, rico demais. Nosso
escritor apresenta tamanha afinidade com as palavras que, certamente, teria
nascido livro se não tivesse nascido gente.
Risos.
Suzana conclui:
- Merecia
ter ganhado o Nobel de Literatura.
- Falha
da Academia de Alfred Nobel. Lucraria muito com o prestígio de Rosa, que deixou
um acervo digno para competir com o há de melhor na literatura universal. Focado
na realidade do interior brasileiro, cada trabalho seu é uma obra-prima que se
faz ouvir pelo mundo.
- Ã-Hã!
- Aposto
que seus livros serão vistos no futuro como uma das maiores e mais intensas
contribuições da literatura brasileira às bibliotecas internacionais. Pode
anotar. De fato, ele escreveu para todos.
Suzana
balança a cabeça, concordando. Acende um cigarro e assegura:
- Como
Rosa é romancista que se dirige a um leitor com conhecimento de história,
geografia e linguística, falo com meus alunos que o melhor caminho de
introdução ao pensamento sertanista de Guimarães Rosa é ler suas ‘estórias’,
degustando palavra por palavra.
-
Certamente.
-
Há sempre o que descobrir nesse autor. Mesmo quando trechos de sua narrativa
são cifrados ou difíceis de entender, ele abusa de metáforas não para ocultar
ou embaraçar, mas para revelar imagens mais profundas do conteúdo. Isso é bom.
Permite que o conhecimento do escritor incorpore ao do leitor. Por isso mesmo
que seus livros devem ser lidos em close
reading..., slow reading, conforme aconselha o professor Moacyr Laterza, em
suas aulas de filosofia.
- Traduz.
-
Expressão que pode ser interpretada como leitura atenta ou leitura sem pressa,
mais propícia à meditação e reflexão.
- Sim.
- Lendo
com calma o texto de Rosa, o leitor caminha com o autor pelo serrado
brasileiro, nutrindo um pouquinho de cada bioma do sertão. Muitos invisíveis
aos olhares comuns. Em close reading,
facilita curtir a narrativa do princípio ao fim num lugar onde o bem é de todos
os homens humanos. Ao contrário da speed
reading.
- Esnobe.
Precisa inglesar?
-
Desculpe-me. Vez ou outra eu gosto de um sotaque inglês na língua portuguesa.
-
Entendo. No momento, Suzana, o que está lendo?
- Primo
Basílio.
- Eça!
- Não foi
o Eça de Queiroz que disse que se lê para viver?
- Não
sei, foi?
- Acho
que sim. Gosto da ficção portuguesa, como da inglesa, da russa, da francesa –
suspira a mulher.
Mathieu,
após um gole de cerveja, diz:
- Não
faço aquele tipo de leitor que endeusa escritores. Mas posso dizer que quase
tudo já foi dito pela grandeza de alguns autores que, mortos há anos, ainda
instigam a imaginação de milhares de apreciadores da boa escrita em diferentes
gerações. Entre eles, centrados em fios distintos, claro, eu incluiria Fernando
Pessoa, Eça, Machado, Drummond, Rosa, Lorca, Ilde, Shakespeare, Voltaire,
Balzac, Flaubert, Roth, Pascal, Cioran, Tchekhov, Marcel Proust, Dostoievsky,
James Joyce, Tolstoi... Cada um com seus temas mais recorrentes, como as
relações humanas e dramas existenciais, abrangeram com as suas obras todas as
faces do conhecimento humano e do pensamento original.
-
Certíssimo. São livros que ficam.
- A
genialidade de autores como esses está na capacidade de encantar pelo fluxo,
pelo truque, pela armadilha da escrita. Por isso mesmo eles estão aí nas
livrarias para provar que contar histórias é uma forma de arte com várias
dimensões, e que toda história bem contada tem fôlego, independentemente, de
modismo.
- Claro.
- O mais
incrível é que o poder narrativo de seus personagens cresce à medida que a
massa textual toma conta de todos os sentidos do leitor, até a absoluta
apropriação. Por isso mesmo, são lidos e compreendidos em qualquer lugar do
mundo, porque se adaptam aos dilemas, às alegrias e às tristezas que só chegam
mais tarde às vidas das pessoas.
Pausa.
Suzana depois de tomar um pouco de cerveja:
- Falo
com os meus alunos que são pensadores de grandes causas e grandes temas. São
clássicos e permanecem contemporâneos. Tanto é assim que seus personagens
circulam com muita familiaridade nos quatro cantos do planeta. Concorda comigo?
- Isso
mesmo, Suzana. Mestres em desvendar a vida secreta das palavras, eles nos
ajudam a entender os pontos mais delicados da nossa existência. Escritores que,
além de oferecer caminhos para ampliarmos a visão do mundo, abrem aos pobres
mortais a oportunidade de dialogar com as sociedades a que sucedemos. Por isso
mesmo, os clássicos são clássicos porque, sendo lidos, relidos ou vistos na
telona, sempre dão o que pensar.
- Men made of worlds! – exclama com
entusiasmo a professora.
-
Inteiramente. Autores que não perderam a faculdade de entreter, muito menos
despertar meditações através de suas obras com uma rica visão do universo
humano, e absoluta concentração criativa. Por isso mesmo, eles continuam
garantindo ao livro a melhor tecnologia idealizada para o desenvolvimento
humano. Por isso mesmo, eles permanecem nas estantes das livrarias de todo o
planeta, provando que uma história bem contada faz sucesso em qualquer tempo e
lugar.
Depois
uma tragada no cigarro, Mathieu acrescenta:
- Segundo
alguns críticos, as obras de Leon Tolstoi e Willian Shakespeare são melhores do
que quase tudo o que a humanidade já produziu em termos de literatura.
Verdadeiros gênios, disputados pelo fascínio de mais um bilhão de leitores pelo
mundo. Enfim, criadores que fizeram da existência uma obra-prima para a
humanidade.
- Sem
dúvida.
-
Quando William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon, há
pouco mais de 400 anos, o planeta era outro. Mas, não é exagero dizer que,
hoje, muito do que a humanidade apresenta de melhor tem raiz na trajetória do
Bardo do Avon, ou melhor, no poeta nacional da Inglaterra. Em 52 anos de vida,
o dramaturgo mudou a história da literatura mundial, escrevendo de tudo para
todos.
- Não há
como discordar.
- Ricardo
III leva ao palco a ambição descomedida do personagem central, algo que a gente
encontra em qualquer lugar do mundo, até mesmo dentro da família. Hamlet se
identifica com qualquer jovem contra o sistema nos dias atuais. Não tem mocinha
de 15 anos que não sabe porque Julieta acabou se matando com um punhal no
peito.
- Ã-Hã.
-
Querida, desde o século XVI, esses e outros personagens percorrem livrarias e
palcos do mundo todo, revelando páginas de uma obra literária que atravessou
quatro séculos. Fenômenos de vendas até hoje.
Suzana,
dando palmadinhas nos ombros do amigo, diz sorridente:
- Math,
voltando à literatura brasileira, me fala um pouco de Machado de Assis.
- Ô,
criatura, o que mais poderia dizer a uma professora de Letras?
- Quero
sua apreciação. Posso?
Risos.
Após outra golada de cerveja, Mathieu:
-
Machado, sem dúvida, é o nosso representante histórico que nos mostrou e
ensinou a magia do realismo literário. Dominou todos os gêneros. Posso dizer
que no cenário da literatura brasileira não existe outro escritor que abriu sua
criação para o timbre de tantas vozes, para se expressar, e muito nitidamente,
suas inquietações. Não deixou passar nada, mergulhou nos conflitos, gostava
mesmo de criar polêmicas. Tanto na área da política como na literatura. Cronista
do mundo palpável, de sua liberdade dos sentidos, dos prazeres e das dores
carnais, o autor abordou todos os temas com conhecimento. Tão abrangente que é
considerado no meio intelectual brasileiro o gênio da raça brasileira, só
comparável em criatividade e circunstâncias a Aleijadinho, que também dedicou
toda sua vida à arte.
-
Aleijadinho?
- Duas
lendas. Eles se tornaram expoentes de uma liberdade criativa nutrida por
misterioso e delicado entrelaçamento da arte entre o particular e o universal.
Coube a Machado, como poeta, romancista, dramaturgo, contista, folhetinista,
jornalista e crítico literário transformar o português brasileiro em um idioma
literário.
- É
mesmo.
Pausa.
Depois de uma longa tragada no cigarro, o rapaz continua:
- Além do
mais, Machado tornou-se importante memorialista dos eventos
político-sociais de seu tempo. Entre eles, o movimento abolicionista que
denunciava os efeitos perniciosos da escravidão para a sociedade e o progresso
do Brasil, abrindo espaço na mídia para publicar discursos de José do
Patrocínio, Joaquim Nabuco, Aluízio de Azevedo e outros. Em sua maturidade,
reunido a colegas próximos, fundou e foi o primeiro presidente por unanimidade
da Academia Brasileira de Letras. Casa que, até hoje, é marcada pela diversidade
intelectual de seus membros.
- Quando
ele publicou seu primeiro trabalho literário?
-
Exatamente há 110 anos, na revista Marmota Fluminense. Foi o poema Ela, que
teve grande repercussão na época. A partir daí, fez da paixão pelas letras
centro inarredável de uma vida inteira, escrevendo um dos capítulos mais
importantes da história literária brasileira.
-
Incontestavelmente.
-
Discípulo declarado de Almeida Garret e admirador da obra de Luciano de
Samósata, Machado ainda é o ponto mais alto e equilibrado da prosa brasileira.
Arrisco a dizer que, como nenhum outro escritor, marcou com sucesso a
trajetória de um pensador da realidade urbana do Rio de Janeiro do século
passado. Intelectual completo. Seu baú, que guarda incontáveis histórias
publicadas, não tem fundo.
- Ã-Hã.
-
Ainda permanece no topo das obras mais vendidas no Brasil. Certamente, vai
atravessar, sem rugas, muitos e muitos séculos. Machado é incrível como é
incrível Guimarães Rosa.
- Hein?
-
Explico. Na alma de cada brasileiro mora um ‘Dândi’, o Bentinho, e um Riobaldo,
o jagunço de Rosa. Dois escritores que deram de presente ao planeta nova forma
de fazer literatura sul-americana. Nos dois transpira o lirismo de autores
apaixonados pelas surpresas do dia a dia.
Pausa.
Suzana:
- Capitu
traiu ou não traiu Bentinho?
- Machado
não faz relatos explícitos do episódio. Mas, pisca o olho malicioso para o
leitor, como se oferecesse todas as dicas através de uma personagem ambiciosa e
desembaraçada para ele próprio decidir. Deixa tudo para a imaginação de cada
um.
- Pode
ser. Desde cedo Capitu só pensava em futilidades, grandeza, luxo...
- Certo
crítico comparou Capitu a aranha que devora o macho depois de fecundada. Basta
recordar o olhar e o choro de Capitu diante do túmulo de Escobar. Tudo passa a
ser relevante.
- Nenhuma
ressalva?
- Nada
que mereça comentários, Suzana. Realmente, nosso Bruxo do Cosme Velho tinha
cabeça privilegiada. Mulato de origem humilde, Machado viveu 69 anos a mil.
Nunca frequentou uma universidade, mas encarou a literatura como destino, se
revelando verdadeiro aristocrata das letras. Seus livros falam por si,
exercendo influência irrefutável às gerações mais novas de escritores. Até numa
mesa de bar, discutir as obras de Machado de Assis, é papo garantido para todas
as opiniões. Suzana, somos de Machado eternos aprendizes.
- E como
crítico literário?
- Vinte
anos antes de se tornar um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis
era crítico respeitado entre os círculos intelectuais dos anos 1850 e 1860. Era
duro, contestador, destemido, atento. Demonstrando descontente com os
rumos da literatura da época, a lâmina machadiana não poupou críticas
constantes ao trabalho de dois grandes da literatura mundial, Eça de Queirós e
Émile Zola.
A
professora aprova com um aceno de cabeça, erguendo o copo de cerveja.
- Um
brinde ao Bruxo do Cosme Velho?
De
imediato o rapaz reitera o gesto.
- Ao
mestre de todos nós, Machado essencial... Tim-Tim!
-
Tim-Tim!
- Enfim,
Mário de Andrade dizia que quando leu Drummond sentiu um certo ‘desanimozinho’.
E eu digo que quando leio Machado sinto um ‘animozinho’ fabuloso.
Suzana ri
de Mathieu por ter falado assim. Muda de posição na poltrona, pega o copo de
cerveja e toma mais um pouco da bebida.
- Bela
aula sobre literatura, Math. Obrigada.
- Uma
troca, claro.
- Saí
ganhando, pode crer.
- Ah, só
mais um detalhe: Como muita gente diz por aí, eu não acho que a principal
característica de Joaquim Maria Machado de Assis fosse a de um homem
deprimido, introvertido, de espírito angustiado, que renunciava à vida em prol
da literatura. Nada disso, mesmo com a saúde frágil e gago, sua esposa, a
portuguesa Maria Leopoldina, tinha
outra opinião, mostrando que ele era paternal e gostava muito de crianças. Como
ia frequentemente passear no Parque da Tijuca, certa vez encontrou uma criança
que chorava e parecia estar desesperada. Condoído, perguntou à menina o motivo
de sua aflição e ela contou que seu Totó tinha desaparecido. Em pouco tempo o
escritor inventou uma história para explicar o desaparecimento do cachorro,
dizendo que o cãozinho fora apenas dar uma voltinha por aí, afinal todos os
animais dessa espécie têm vontade sair, andar pelas redondezas, de ser um
vira-latas por um momento. Eu sei – disse ele - porque converso e tenho um bom
diálogo com os animais. Não precisa se preocupar, minha filha, mais tardar,
antes do sol se pôr, o bichinho estará de volta todo contente.
Risos.
Suzana com alegria nos olhos:
- Está
vendo, aprendi mais uma coisa importante sobre Machado?
- Também
gostei de saber mais essa face dele. Ganhou um retrato mais colorido e
ensolarado em minha percepção, como suas obras.
- Muito
bem, Math! Agora, me fala o que você está lendo?
-
Encontro Marcado pela terceira vez. O livro está na ordem do dia, novo de novo.
Ele é diferente de tudo que já li.
- Beleza.
- Doze
anos depois de seu lançamento o romance ainda provoca e surpreende,
evidenciando a inventividade literária e visual de Fernando Sabino. Narra uma
trama cheia de movimentação humana, sem esconder a motivação política e o tom
otimista e bem-humorado de uma geração muito cativante.
Após um
pequeno suspiro, Suzana pergunta com toque de humor:
-
Continua em busca do lugar do encontro?
- Ainda
faço minhas conjecturas. Só lendo outra vez Encontro Marcado para perceber, em
mais detalhes, que o autor licenciado em propor diálogos com rica dicção
urbana, privilegia a simplicidade da linguagem - o que me atraiu foi ser
coloquial o tempo todo e fazer o tempo todo esse jogo de intimidade entre a
gênese da década de 1940. Enfim, o livro revela as diferentes facetas de um
autor em perfeita sintonia com o seu tempo, também à frente dele. É romance de
uma geração.
- Ou
melhor: de todos os tempos. Um convite aos jovens de hoje à reflexão mais
profunda.
- Claro.
Sabino flagra transformações culturais de uma geração pós-modernista, que vivia
as turbulências da vida juvenil da primeira metade do século XX. Enfim, o livro
nos leva a vagar pelas ruas de Belo Horizonte, apreciando um pouco das pessoas
que por elas circularam na década de quarenta em sintonia com sua felicidade
cotidiana. Parte da popularidade de Sabino se explica pela sua escrita direta,
apolítica, sem abraçar partidos ou posições. Para boa parte dos novos
escritores brasileiros, ele é um norte, um artista sofisticado sem ser artificial.
Concorda?
-
Considero Fernando Sabino um escritor completo, contagia o leitor com seus
relatos bem temperados – afiança Suzana. – O escritor mineiro revela no
contexto da obra uma explosão alegre e incontida da juventude na primeira
metade do nosso século. Meus alunos também gostaram ler seu livro Encontro
Marcado.
- É como
se Eça de Queiróz, em épocas diferentes e lados distantes do oceano, tivesse um
backup no Brasil, produzindo com sua
insuperável sabedoria sobre a natureza humana. Guardadas suas proporções e os
estilos de cada um, claro. Sabino também procura fugir do corriqueirismo, da
caricatura, do bom e do mau. Isso dá profundidade, humanidade para seus
personagens e confunde o público de certa forma.
- Ave fernandus quia ressurexit Eça!
- Surpreendente,
como ele. Com literatura de qualidade fazem das coisas de todos os dias
inesgotáveis fontes de material literário, oferecendo contribuição de vital
importância para o pensamento contemporâneo. Acho ótimo que eles possuem essa
característica, porque proporcionar uma surpresa é sempre bom. Prende o leitor.
Pausa.
Suzana curiosa:
- Math,
você lê muito, não é?
- Me
amarro em bons livros. Tenho sempre um na mão, ou debaixo do braço, para fazer
a leitura quando possível. Sinto com isso grande prazer.
- Eu
também.
- Certa
vez, o professor Aires me disse que cada livro tem seu charme, seu estilo e sua
vocação. Só pegar, ler e sentir. Com uma caneta na mão, melhor. Se o livro
resistir é bom.
- Augusto
Aires da Mata Machado? – exalta-se Suzana.
- O próprio.
O Mestre que foi louvado por Drummond com os versos: O Aires dos ares bons/Aires da mata
da linguagem/e do machado que não mata/mas desbasta e aparelha...
da linguagem/e do machado que não mata/mas desbasta e aparelha...
- Legal.
- Quando
estou me sentindo meio burro, vou até sua casa para dialogar sobre o mundo e as
coisas que existem nele. Nada melhor para ampliar meus horizontes, porque quem
tem o privilégio de falar com um dos maiores estudiosos de nosso idioma, sabe o
quanto ele é bom de papo. Aires cultiva um interesse genuíno por tudo que é
humano, possui luz própria e vive influenciando os jovens a uma maior
participação na vida cultural e política, em plena época de ditadura no Brasil.
- Sem
dúvida, com sua memória implacável, Aires constitui uma das mais fortes
presenças intelectuais do mundo contemporâneo em Belo Horizonte. Sabe tudo. E
um pouco mais.
- Ninguém
conhece mais a verdadeira história do alfabeto e de todos os verbetes de um
dicionário da língua portuguesa falada no Brasil. Ninguém – afiança Mathieu.
- Foi meu
professor.
- Professor
e tanto! Desses que não pintam por ai todos os dias, mostrando a segurança de
um grande mestre.
Pausa.
Suzana, depois de um leve suspiro:
- Sem
falar que é um homem de tremendo afeto e doçura, amabilíssimo com todos, não é
mesmo? Aquele mar de generosidade! Admiro seu jeito de se aproximar e dialogar
com as pessoas comuns, as mais diversas que o procuram no dia a dia.
- É o que
faz dele um professor muito querido e competente, dentro e fora da escola, que
acredita no poder transformador da educação.
- Claro.
- Ih, gente,
bateu saudades! Um dia visito Aires com você, posso?
- Quando
quiser. Ali mora ali na Professor
Magalhães Drumond, Santo Antônio, pertinho da Fafich.
- Ótimo.
Eu acho até bom fazer uma visita ao passado, porque também tenho paixão pelo
nível de conhecimento dos mais velhos.
Mathieu
acende outro cigarro e acrescenta:
- Sim,
senhora, Aires é um exemplo de sabedoria. Certa vez, ele teclou em sua máquina
de escrever em braile um bilhete, dobrou e botou no bolso de minha camisa.
Emocionou-me tanto que guardo a folha de papel até hoje.
- O que
ele escreveu?
- Uma
citação de Isaac Barrow, do século XVII: - Quem
ama os livros nunca vai sentir falta de um amigo fiel, de um conselheiro
íntegro ou de uma companhia divertida. O leitor assíduo basta a si mesmo em qualquer
lugar, em qualquer tempo, seja qual for a sorte da sua vida.
-
Emocionante! – expressa a professora admirada.
-
Extraordinária e marcante, sem dúvida.
- Ã-Hã!
- Suzana,
sempre convivi com pessoas mais velhas do que eu, e sempre me apeguei a elas.
Tenho paixão pela sabedoria da idade, pela história das pessoas. É uma
provocação inteligente. Salve, salve Aires!
- Também
gosto desse encontro entre gerações. Uma troca. Vou adorar ir com você. O resto
é emoção, homenagem, história.
- Como
também deve adorar ler a nova revista de literatura que está nas bancas.
- Outra?
-
Inéditos, ouviu falar?
- Li
qualquer coisa.
- Veio
para ocupar o lugar da Estória, que não circula mais desde junho, mesmo
considerada por um jornal da Califórnia como a melhor publicação literária do
continente sul americano.
- Pena.
Interpretar os textos dessa revista era dever de casa para meus educandos –
lamenta a professora.
-
Sucumbiu na sexta edição, sem chance voltar.
- Ô,
dó!
-
Inéditos surge também como tributo de Minas ao poeta Manuel Bandeira, que
faleceu em outubro, deixando amargurados incontáveis admiradores espalhados por
todo o Brasil.
- Dia 13,
não foi?
- Aos 82
anos. Ainda cheio de projetos.
-
Imagino.
- Um
bardo do nordeste que conseguiu simplificar a poesia e, mesmo velho, soube
imprimir juventude a tudo que escreveu.
- ...O sol tão claro lá fora, o sol tão claro,
Esmeralda, e em minhalma — anoitecendo – recita Suzana versos do poeta,
concentrada.
Mathieu
se ajeita na poltrona, estica o braço e pega o copo de cerveja, propondo:
- Suzana,
eu queria sugerir um brinde. Vamos beber à memória de Bandeira?
Ela sorri
e clica o seu copo no dele. Em seguida, o rapaz toma um pouco da bebida e o
coloca de novo na mesinha de centro, relembrando:
- Meses
atrás fiz uma matéria sobre a vida e a morte de periódicos culturais em Minas
Gerais. Mostrei, literalmente, que o autor mineiro sempre teve raça, produziu
demasiado e, muitas vezes, tirava dinheiro do bolso para ver seus ensaios
difundidos numa revista literária. Leu?
- Não. Não
li.
-
Falo de escritores e jornalistas que deixaram marcas nas artes literárias entre
1900 a 1960. Ou melhor, intelectuais que fizeram histórias em suas cidades,
revelando ideias e imagens em cada época, produzindo boa literatura.
-
Ah, eu quero xerox. Arruma?
-
Sem problemas.
-
Obrigada.
-
De nada.
Logo
Suzana esvazia seu copo e conclui:
-
Ah, Math, não gostei nem um pouco de saber que a ‘Estória’ fechou.
- Não se
preocupe. ‘Inéditos’ promete linha semelhante.
-
Compro uma segunda-feira.
-
Não precisa. Sou amigo do Vladimir, um dos editores. Trago-lhe um exemplar de
cortesia.
-
Tudo bem. Vou cobrar, viu?
-
Viu – responde Mathieu com os olhos acesos de contentamento,
enquanto chupava o cigarro
altivamente.
* FBN© - 2012 - Os Imortais..., NUMA NOITE EM 68 -
Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto.
Iustr.: desenho de Charles Dickens. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com/2011/01/32xxxii-o-sabor-do-texto-em-veredas.html
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