2011-01-03

31/XXXI – OS IMORTAIS. MEN MADE OF WORDS.


*   
  
A alegria é o vento que nos levanta do piso e nos deixa em outra parte, um lugar em desaviso,
escreveu. Emily Dickinson
                     
                 

MEN MADE OF WORDS    
Charles Dickens, autor do clássico Oliver Twist em meio a uma plêiade de boêmios que
pregavam a revolução pelas letras . O escritor lia parte de seus ensaios para seus amigos, reunidos em sua casa,
apurando a arte de criar diálogos com homens feitos de palavras.




 

Mathieu, depois de espetar uma azeitona, pergunta:
- Quem mais gosta de ler, Suzana?
- Hummm..., são tantos! Posso afirmar que Fernando Pessoa me faz muito bem, incorpora. É o silêncio que preciso para respirar. Faz-me refletir, viver melhor comigo mesma.
- Sério?
- Como é um autor atento à complexidade da condição humana, não há quem ele não acerte o espírito pela simplicidade, aparentemente, fácil de seus poemas. Concorda?
- De fato.
- Por isso mesmo, que consegue manter diálogo com nosso emocional o tempo todo. Tudo como se cada verso fosse um organismo vivo, oferecendo ao leitor lentes diferentes para ver o mundo de forma mais suave e doce.
- Incrível, ‘ne?
- Como são incríveis os seus heterônimos. Cada um com identidade física e características psicológicas próprias. Cada um com sua biografia e estilo próprio, trabalhando a seu jeito, os substantivos, os adjetivos e os verbos como ninguém até hoje conseguiu.
- Genial!  Genial! – aplaude o rapaz.
- De um crítico português, certa vez, li que os versos de Fernando constituem numa solitária multidão de uma só pessoa, dando corpo ao seu extraordinário teatro de ‘eus’ com sua criação pomposa e elegante de autores personagens. Não tem igual.
- Por aí.
- São tantos heterônimos, que vez ou outra, eu compro um lançamento de trabalhos inéditos de Fernando. Isso quer dizer que, mesmo morto em 1935, continua publicando livros até hoje e, pelo que vejo, continuará por muito tempo ainda em plena atividade literária. Se bem me lembro, eles são 72. O primeiro criado foi contista e chargista de A Palavra, Pancrácio, passando por Pantaleão, poeta e prosador e, no final da lista, Vadooisf, poeta revelado em comunicação mediúnica.
- Sem dúvida, é o mais universal dos poetas portugueses.
A mulher enternecida, conclui:
- A poesia é um êxtase que não se esgota. Serve de bálsamo, serve para a construção de alicerces, não é mesmo?
- Sim, claro. Para Mário Quintana quem faz um poema abre uma janela/ quem faz um poema salva um afogado.
- Drummond é outro poeta que também me diz muito. Infindável, me fascina. Volta e meia tenho vontade revisitá-lo, motivada pela universalidade de seu conhecimento da alma humana.
- Outro mestre do tempo. Admirável!
- Como Pessoa seus olhos respiram poesia. Eles proporcionam toques delicados em nosso interior. Curto muito.
Pausa. Mathieu.
- E em prosa?
- Guimarães Rosa. Esse eu leio com atenção especial. Sou de Cordisburgo, Minas Gerais.
- Legal.
- Como a narrativa dele transforma leitor em sonhador, vida em viagem posso dizer que Rosa foi quem mais me ajudou a ser uma pessoa apaixonada pela literatura. Ensinou-me, com todas as letras, a focar o rio da minha aldeia com mais intimidade.
O rapaz abre mais o sorriso.
- Boas escolhas, menina. Guimarães Rosa, que também exercitou sua fantasia no formato da poesia, Fernando Pessoa e Carlos Drummond são autores iluminados, inesgotáveis. Com mente e visões universais, oferecem ao leitor, de forma aberta, livros que mexem com a nossa imaginação. Deles a gente lê duas, três páginas e tem no que pensar durante um mês inteiro. Ou mais.
- Claro. Math, você sabe que Grande Sertão: Veredas, com todo o seu malabarismo verbal e acessibilidade universal, foi escrito em Paris?
- Não. Não sabia.
- Foi ali, cerca de nove mil quilômetros de Cordisburgo, Rosa pôs à vista dos leitores avaliação crítica do próprio tema na literatura brasileira. Com sabedoria extraiu de seus cadernos de anotações o que viu e ouviu ao longo da célebre viagem que realizou com um grupo de boiadeiros pelo sertão de Minas Gerais, em 1952. O sertão nem parece ser tão longe assim, não é mesmo?
- Parece não.
- Como grande observador de tudo à sua volta, Rosa tentou traduzir, ao seu modo, a exuberância da natureza brasileira, mesmo que a do sertão de Minas Gerais. Outro sertão. Em um diálogo direto com a população do interior mineiro, ele colocou essa carga de gente simples em cada personagem, numa tentativa de captar o sertão real que viu e sentiu na pele. Enfim, deu vida ao lugar com seu vazio tão preenchido para mostrar que, talvez a riqueza do homem de lá seja a heterogeneidade. Produziu um livro que explora todos os limites da literatura.
Pausa. Mathieu:
- Cidade Luz! Truque de mineiro?
- Rosa foi um grande mestre, Math. Sentado numa poltrona na sala do seu apartamento, onde a luz natural entrava por uma janela aberta para a Torre Eiffel, Rosa concluiu seu best-seller, cerimoniosamente – elucida Suzana.
- Ave, Rosa!
- É o que justifica a grandiosidade de Grande Sertão, Veredas. O escritor, com arquitetura literária delirante, revela em cada capítulo seu jeito de contar e criar ‘estórias’ para mostrar que o Sertão é o continente mais chegado da alma brasileira. Também o mais afastado de nossa consciência.
- Ã-Hã.
- Guimarães Rosa é o mais importante romancista brasileiro da geração de 1950, candidato ao pódio da língua portuguesa em qualquer época. De relevância internacional, marcou o apogeu do regionalismo brasileiro ao lado de Graciliano Ramos, com Vidas Secas. Wrote for everyone!
Mathieu retém o sorriso. Bate a mão na testa, protestando:
- Até hoje, Suzana, não entendi porque Ferreira Gullar não agradou nem um pouco do romance de Rosa. Num través de rusgas, o poeta achou uma história de cangaço contada para linguistas num catatau de mais de quinhentas páginas. Um despautério! Vê se pode?
- Tolices, tem gente que adora criticar os outros. Grande Sertão: Veredas não é um livro escrito para ser entretenimento fácil, embora seja divertido. Ou de utilidade relativa a carências do leitor, seja ela qual for. É uma obra com tamanha precisão vocabular, robusta, que logo conquistou prestígio internacional.
- Sim.
- O que você não pode é ser impaciente ao ler Guimarães Rosa.
- Tem razão. Apregoar a decadência de um escritor desse tamanho de não passa de um estratagema de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de provocação. A Rosa o que de Rosa.
Suzana ri.
- Faz parte do jogo. Mas, posso afirmar com todas as letras que a fama de ‘obra difícil’, explica a relutância de alguns leitores em embarcar com profundezas em Guimarães Rosa. Um dos motivos vem do fato de ele ter escrito períodos longos, recheados de neologismo, embora a fama nem sempre seja justificada. Em síntese, o autor é muito comentado e pouco lido.
- Tem razão.
Suzana depois de uma tragada no cigarro:
- Posso dizer, como pedagoga, que uma crítica feroz assim, partindo de um autor de certo alcance, é um desserviço à literatura.
- Pior que é. Desde o seu lançamento, parte da crítica tem se dedicado mais a achincalhar Guimarães Rosa do que cumprir seu papel de entender o objeto. Atira-se para todos os lados – acentua o rapaz.
- Háháhá! Toma ares de disputa renhida, não?
- Evidente. Muitos escrevem sobre Guimarães Rosa, mas poucos têm noção da grandeza do seu conjunto de obras. Abeira-se de tudo, rico demais. Nosso escritor apresenta tamanha afinidade com as palavras que, certamente, teria nascido livro se não tivesse nascido gente.
Risos. Suzana conclui:
- Merecia ter ganhado o Nobel de Literatura.
- Falha da Academia de Alfred Nobel. Lucraria muito com o prestígio de Rosa, que deixou um acervo digno para competir com o há de melhor na literatura universal. Focado na realidade do interior brasileiro, cada trabalho seu é uma obra-prima que se faz ouvir pelo mundo.
- Ã-Hã!
- Aposto que seus livros serão vistos no futuro como uma das maiores e mais intensas contribuições da literatura brasileira às bibliotecas internacionais. Pode anotar. De fato, ele escreveu para todos.
Suzana balança a cabeça, concordando. Acende um cigarro e assegura:
- Como Rosa é romancista que se dirige a um leitor com conhecimento de história, geografia e linguística, falo com meus alunos que o melhor caminho de introdução ao pensamento sertanista de Guimarães Rosa é ler suas ‘estórias’, degustando palavra por palavra.
- Certamente.
         - Há sempre o que descobrir nesse autor. Mesmo quando trechos de sua narrativa são cifrados ou difíceis de entender, ele abusa de metáforas não para ocultar ou embaraçar, mas para revelar imagens mais profundas do conteúdo. Isso é bom. Permite que o conhecimento do escritor incorpore ao do leitor. Por isso mesmo que seus livros devem ser lidos em close reading..., slow reading, conforme aconselha o professor Moacyr Laterza, em suas aulas de filosofia.
- Traduz.
- Expressão que pode ser interpretada como leitura atenta ou leitura sem pressa, mais propícia à meditação e reflexão.
- Sim.
- Lendo com calma o texto de Rosa, o leitor caminha com o autor pelo serrado brasileiro, nutrindo um pouquinho de cada bioma do sertão. Muitos invisíveis aos olhares comuns. Em close reading, facilita curtir a narrativa do princípio ao fim num lugar onde o bem é de todos os homens humanos. Ao contrário da speed reading.
- Esnobe. Precisa inglesar?
- Desculpe-me. Vez ou outra eu gosto de um sotaque inglês na língua portuguesa.
- Entendo. No momento, Suzana, o que está lendo?
- Primo Basílio.
- Eça!
- Não foi o Eça de Queiroz que disse que se lê para viver?
- Não sei, foi?
- Acho que sim. Gosto da ficção portuguesa, como da inglesa, da russa, da francesa – suspira a mulher.
Mathieu, após um gole de cerveja, diz:
- Não faço aquele tipo de leitor que endeusa escritores. Mas posso dizer que quase tudo já foi dito pela grandeza de alguns autores que, mortos há anos, ainda instigam a imaginação de milhares de apreciadores da boa escrita em diferentes gerações. Entre eles, centrados em fios distintos, claro, eu incluiria Fernando Pessoa, Eça, Machado, Drummond, Rosa, Lorca, Ilde, Shakespeare, Voltaire, Balzac, Flaubert, Roth, Pascal, Cioran, Tchekhov, Marcel Proust, Dostoievsky, James Joyce, Tolstoi... Cada um com seus temas mais recorrentes, como as relações humanas e dramas existenciais, abrangeram com as suas obras todas as faces do conhecimento humano e do pensamento original.
- Certíssimo. São livros que ficam.
- A genialidade de autores como esses está na capacidade de encantar pelo fluxo, pelo truque, pela armadilha da escrita. Por isso mesmo eles estão aí nas livrarias para provar que contar histórias é uma forma de arte com várias dimensões, e que toda história bem contada tem fôlego, independentemente, de modismo. 
- Claro.
- O mais incrível é que o poder narrativo de seus personagens cresce à medida que a massa textual toma conta de todos os sentidos do leitor, até a absoluta apropriação. Por isso mesmo, são lidos e compreendidos em qualquer lugar do mundo, porque se adaptam aos dilemas, às alegrias e às tristezas que só chegam mais tarde às vidas das pessoas.
Pausa. Suzana depois de tomar um pouco de cerveja:
- Falo com os meus alunos que são pensadores de grandes causas e grandes temas. São clássicos e permanecem contemporâneos. Tanto é assim que seus personagens circulam com muita familiaridade nos quatro cantos do planeta. Concorda comigo?
- Isso mesmo, Suzana. Mestres em desvendar a vida secreta das palavras, eles nos ajudam a entender os pontos mais delicados da nossa existência. Escritores que, além de oferecer caminhos para ampliarmos a visão do mundo, abrem aos pobres mortais a oportunidade de dialogar com as sociedades a que sucedemos. Por isso mesmo, os clássicos são clássicos porque, sendo lidos, relidos ou vistos na telona, sempre dão o que pensar.
- Men made of worlds! – exclama com entusiasmo a professora.
- Inteiramente. Autores que não perderam a faculdade de entreter, muito menos despertar meditações através de suas obras com uma rica visão do universo humano, e absoluta concentração criativa. Por isso mesmo, eles continuam garantindo ao livro a melhor tecnologia idealizada para o desenvolvimento humano. Por isso mesmo, eles permanecem nas estantes das livrarias de todo o planeta, provando que uma história bem contada faz sucesso em qualquer tempo e lugar.
Depois uma tragada no cigarro, Mathieu acrescenta:
- Segundo alguns críticos, as obras de Leon Tolstoi e Willian Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade já produziu em termos de literatura. Verdadeiros gênios, disputados pelo fascínio de mais um bilhão de leitores pelo mundo. Enfim, criadores que fizeram da existência uma obra-prima para a humanidade.
- Sem dúvida.
 - Quando William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon, há pouco mais de 400 anos, o planeta era outro. Mas, não é exagero dizer que, hoje, muito do que a humanidade apresenta de melhor tem raiz na trajetória do Bardo do Avon, ou melhor, no poeta nacional da Inglaterra. Em 52 anos de vida, o dramaturgo mudou a história da literatura mundial, escrevendo de tudo para todos.
 
 
- Não há como discordar.
- Ricardo III leva ao palco a ambição descomedida do personagem central, algo que a gente encontra em qualquer lugar do mundo, até mesmo dentro da família. Hamlet se identifica com qualquer jovem contra o sistema nos dias atuais. Não tem mocinha de 15 anos que não sabe porque Julieta acabou se matando com um punhal no peito.
- Ã-Hã.
- Querida, desde o século XVI, esses e outros personagens percorrem livrarias e palcos do mundo todo, revelando páginas de uma obra literária que atravessou quatro séculos. Fenômenos de vendas até hoje.
Suzana, dando palmadinhas nos ombros do amigo, diz sorridente:
- Math, voltando à literatura brasileira, me fala um pouco de Machado de Assis.   
- Ô, criatura, o que mais poderia dizer a uma professora de Letras?
- Quero sua apreciação. Posso?
Risos. Após outra golada de cerveja, Mathieu:
- Machado, sem dúvida, é o nosso representante histórico que nos mostrou e ensinou a magia do realismo literário. Dominou todos os gêneros. Posso dizer que no cenário da literatura brasileira não existe outro escritor que abriu sua criação para o timbre de tantas vozes, para se expressar, e muito nitidamente, suas inquietações. Não deixou passar nada, mergulhou nos conflitos, gostava mesmo de criar polêmicas. Tanto na área da política como na literatura. Cronista do mundo palpável, de sua liberdade dos sentidos, dos prazeres e das dores carnais, o autor abordou todos os temas com conhecimento. Tão abrangente que é considerado no meio intelectual brasileiro o gênio da raça brasileira, só comparável em criatividade e circunstâncias a Aleijadinho, que também dedicou toda sua vida à arte.
- Aleijadinho?
- Duas lendas. Eles se tornaram expoentes de uma liberdade criativa nutrida por misterioso e delicado entrelaçamento da arte entre o particular e o universal. Coube a Machado, como poeta, romancista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário transformar o português brasileiro em um idioma literário.
- É mesmo.
Pausa. Depois de uma longa tragada no cigarro, o rapaz continua:
- Além do mais, Machado tornou-se importante memorialista dos eventos político-sociais de seu tempo. Entre eles, o movimento abolicionista que denunciava os efeitos perniciosos da escravidão para a sociedade e o progresso do Brasil, abrindo espaço na mídia para publicar discursos de José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Aluízio de Azevedo e outros. Em sua maturidade, reunido a colegas próximos, fundou e foi o primeiro presidente por unanimidade da Academia Brasileira de Letras. Casa que, até hoje, é marcada pela diversidade intelectual de seus membros.
- Quando ele publicou seu primeiro trabalho literário?
- Exatamente há 110 anos, na revista Marmota Fluminense. Foi o poema Ela, que teve grande repercussão na época. A partir daí, fez da paixão pelas letras centro inarredável de uma vida inteira, escrevendo um dos capítulos mais importantes da história literária brasileira.
- Incontestavelmente.
- Discípulo declarado de Almeida Garret e admirador da obra de Luciano de Samósata, Machado ainda é o ponto mais alto e equilibrado da prosa brasileira. Arrisco a dizer que, como nenhum outro escritor, marcou com sucesso a trajetória de um pensador da realidade urbana do Rio de Janeiro do século passado. Intelectual completo. Seu baú, que guarda incontáveis histórias publicadas, não tem fundo.
- Ã-Hã.
         - Ainda permanece no topo das obras mais vendidas no Brasil. Certamente, vai atravessar, sem rugas, muitos e muitos séculos. Machado é incrível como é incrível Guimarães Rosa.
- Hein?
- Explico. Na alma de cada brasileiro mora um ‘Dândi’, o Bentinho, e um Riobaldo, o jagunço de Rosa. Dois escritores que deram de presente ao planeta nova forma de fazer literatura sul-americana. Nos dois transpira o lirismo de autores apaixonados pelas surpresas do dia a dia.
Pausa. Suzana:
- Capitu traiu ou não traiu Bentinho?
- Machado não faz relatos explícitos do episódio. Mas, pisca o olho malicioso para o leitor, como se oferecesse todas as dicas através de uma personagem ambiciosa e desembaraçada para ele próprio decidir. Deixa tudo para a imaginação de cada um.
- Pode ser. Desde cedo Capitu só pensava em futilidades, grandeza, luxo...
- Certo crítico comparou Capitu a aranha que devora o macho depois de fecundada. Basta recordar o olhar e o choro de Capitu diante do túmulo de Escobar. Tudo passa a ser relevante.
- Nenhuma ressalva?
- Nada que mereça comentários, Suzana. Realmente, nosso Bruxo do Cosme Velho tinha cabeça privilegiada. Mulato de origem humilde, Machado viveu 69 anos a mil. Nunca frequentou uma universidade, mas encarou a literatura como destino, se revelando verdadeiro aristocrata das letras. Seus livros falam por si, exercendo influência irrefutável às gerações mais novas de escritores. Até numa mesa de bar, discutir as obras de Machado de Assis, é papo garantido para todas as opiniões. Suzana, somos de Machado eternos aprendizes.
- E como crítico literário?
- Vinte anos antes de se tornar um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis era crítico respeitado entre os círculos intelectuais dos anos 1850 e 1860. Era duro, contestador, destemido, atento.  Demonstrando descontente com os rumos da literatura da época, a lâmina machadiana não poupou críticas constantes ao trabalho de dois grandes da literatura mundial, Eça de Queirós e Émile Zola.
A professora aprova com um aceno de cabeça, erguendo o copo de cerveja.
- Um brinde ao Bruxo do Cosme Velho?
De imediato o rapaz reitera o gesto.
- Ao mestre de todos nós, Machado essencial... Tim-Tim!
- Tim-Tim!
- Enfim, Mário de Andrade dizia que quando leu Drummond sentiu um certo ‘desanimozinho’. E eu digo que quando leio Machado sinto um ‘animozinho’ fabuloso.
Suzana ri de Mathieu por ter falado assim. Muda de posição na poltrona, pega o copo de cerveja e toma mais um pouco da bebida.
- Bela aula sobre literatura, Math. Obrigada.
- Uma troca, claro.
- Saí ganhando, pode crer.
- Ah, só mais um detalhe: Como muita gente diz por aí, eu não acho que a principal característica de Joaquim Maria Machado de Assis fosse a de um homem deprimido, introvertido, de espírito angustiado, que renunciava à vida em prol da literatura. Nada disso, mesmo com a saúde frágil e gago, sua esposa, a portuguesa Maria Leopoldina, tinha outra opinião, mostrando que ele era paternal e gostava muito de crianças. Como ia frequentemente passear no Parque da Tijuca, certa vez encontrou uma criança que chorava e parecia estar desesperada. Condoído, perguntou à menina o motivo de sua aflição e ela contou que seu Totó tinha desaparecido. Em pouco tempo o escritor inventou uma história para explicar o desaparecimento do cachorro, dizendo que o cãozinho fora apenas dar uma voltinha por aí, afinal todos os animais dessa espécie têm vontade sair, andar pelas redondezas, de ser um vira-latas por um momento. Eu sei – disse ele - porque converso e tenho um bom diálogo com os animais. Não precisa se preocupar, minha filha, mais tardar, antes do sol se pôr, o bichinho estará de volta todo contente.
Risos. Suzana com alegria nos olhos:
- Está vendo, aprendi mais uma coisa importante sobre Machado?
- Também gostei de saber mais essa face dele. Ganhou um retrato mais colorido e ensolarado em minha percepção, como suas obras.
- Muito bem, Math! Agora, me fala o que você está lendo?
- Encontro Marcado pela terceira vez. O livro está na ordem do dia, novo de novo. Ele é diferente de tudo que já li.
- Beleza.
- Doze anos depois de seu lançamento o romance ainda provoca e surpreende, evidenciando a inventividade literária e visual de Fernando Sabino. Narra uma trama cheia de movimentação humana, sem esconder a motivação política e o tom otimista e bem-humorado de uma geração muito cativante.
Após um pequeno suspiro, Suzana pergunta com toque de humor:
- Continua em busca do lugar do encontro?
- Ainda faço minhas conjecturas. Só lendo outra vez Encontro Marcado para perceber, em mais detalhes, que o autor licenciado em propor diálogos com rica dicção urbana, privilegia a simplicidade da linguagem - o que me atraiu foi ser coloquial o tempo todo e fazer o tempo todo esse jogo de intimidade entre a gênese da década de 1940. Enfim, o livro revela as diferentes facetas de um autor em perfeita sintonia com o seu tempo, também à frente dele. É romance de uma geração.
- Ou melhor: de todos os tempos. Um convite aos jovens de hoje à reflexão mais profunda.
- Claro. Sabino flagra transformações culturais de uma geração pós-modernista, que vivia as turbulências da vida juvenil da primeira metade do século XX. Enfim, o livro nos leva a vagar pelas ruas de Belo Horizonte, apreciando um pouco das pessoas que por elas circularam na década de quarenta em sintonia com sua felicidade cotidiana. Parte da popularidade de Sabino se explica pela sua escrita direta, apolítica, sem abraçar partidos ou posições. Para boa parte dos novos escritores brasileiros, ele é um norte, um artista sofisticado sem ser artificial. Concorda?
- Considero Fernando Sabino um escritor completo, contagia o leitor com seus relatos bem temperados – afiança Suzana. – O escritor mineiro revela no contexto da obra uma explosão alegre e incontida da juventude na primeira metade do nosso século. Meus alunos também gostaram ler seu livro Encontro Marcado.
- É como se Eça de Queiróz, em épocas diferentes e lados distantes do oceano, tivesse um backup no Brasil, produzindo com sua insuperável sabedoria sobre a natureza humana. Guardadas suas proporções e os estilos de cada um, claro. Sabino também procura fugir do corriqueirismo, da caricatura, do bom e do mau. Isso dá profundidade, humanidade para seus personagens e confunde o público de certa forma.
- Ave fernandus quia ressurexit Eça!
- Surpreendente, como ele. Com literatura de qualidade fazem das coisas de todos os dias inesgotáveis fontes de material literário, oferecendo contribuição de vital importância para o pensamento contemporâneo. Acho ótimo que eles possuem essa característica, porque proporcionar uma surpresa é sempre bom. Prende o leitor.
Pausa. Suzana curiosa:
- Math, você lê muito, não é?
- Me amarro em bons livros. Tenho sempre um na mão, ou debaixo do braço, para fazer a leitura quando possível. Sinto com isso grande prazer.
- Eu também.
- Certa vez, o professor Aires me disse que cada livro tem seu charme, seu estilo e sua vocação. Só pegar, ler e sentir. Com uma caneta na mão, melhor. Se o livro resistir é bom.
- Augusto Aires da Mata Machado? – exalta-se Suzana.
- O próprio. O Mestre que foi louvado por Drummond com os versos: O Aires dos ares bons/Aires da mata
da linguagem/e do machado que não mata/mas desbasta e aparelha...
- Legal.
- Quando estou me sentindo meio burro, vou até sua casa para dialogar sobre o mundo e as coisas que existem nele. Nada melhor para ampliar meus horizontes, porque quem tem o privilégio de falar com um dos maiores estudiosos de nosso idioma, sabe o quanto ele é bom de papo. Aires cultiva um interesse genuíno por tudo que é humano, possui luz própria e vive influenciando os jovens a uma maior participação na vida cultural e política, em plena época de ditadura no Brasil.
- Sem dúvida, com sua memória implacável, Aires constitui uma das mais fortes presenças intelectuais do mundo contemporâneo em Belo Horizonte. Sabe tudo. E um pouco mais.
- Ninguém conhece mais a verdadeira história do alfabeto e de todos os verbetes de um dicionário da língua portuguesa falada no Brasil. Ninguém – afiança Mathieu.
- Foi meu professor.
- Professor e tanto! Desses que não pintam por ai todos os dias, mostrando a segurança de um grande mestre.
Pausa. Suzana, depois de um leve suspiro:
- Sem falar que é um homem de tremendo afeto e doçura, amabilíssimo com todos, não é mesmo? Aquele mar de generosidade! Admiro seu jeito de se aproximar e dialogar com as pessoas comuns, as mais diversas que o procuram no dia a dia.
- É o que faz dele um professor muito querido e competente, dentro e fora da escola, que acredita no poder transformador da educação. 
- Claro.
- Ih, gente, bateu saudades! Um dia visito Aires com você, posso?
- Quando quiser. Ali mora ali na Professor Magalhães Drumond, Santo Antônio, pertinho da Fafich.
- Ótimo. Eu acho até bom fazer uma visita ao passado, porque também tenho paixão pelo nível de conhecimento dos mais velhos.
Mathieu acende outro cigarro e acrescenta:
- Sim, senhora, Aires é um exemplo de sabedoria. Certa vez, ele teclou em sua máquina de escrever em braile um bilhete, dobrou e botou no bolso de minha camisa. Emocionou-me tanto que guardo a folha de papel até hoje.
- O que ele escreveu?
- Uma citação de Isaac Barrow, do século XVII: - Quem ama os livros nunca vai sentir falta de um amigo fiel, de um conselheiro íntegro ou de uma companhia divertida. O leitor assíduo basta a si mesmo em qualquer lugar, em qualquer tempo, seja qual for a sorte da sua vida.
- Emocionante!  – expressa a professora admirada.
- Extraordinária e marcante, sem dúvida. 
- Ã-Hã!
- Suzana, sempre convivi com pessoas mais velhas do que eu, e sempre me apeguei a elas. Tenho paixão pela sabedoria da idade, pela história das pessoas. É uma provocação inteligente. Salve, salve Aires!
- Também gosto desse encontro entre gerações. Uma troca. Vou adorar ir com você. O resto é emoção, homenagem, história.
- Como também deve adorar ler a nova revista de literatura que está nas bancas.
- Outra?
- Inéditos, ouviu falar?
- Li qualquer coisa.
- Veio para ocupar o lugar da Estória, que não circula mais desde junho, mesmo considerada por um jornal da Califórnia como a melhor publicação literária do continente sul americano.
- Pena. Interpretar os textos dessa revista era dever de casa para meus educandos – lamenta a professora.
- Sucumbiu na sexta edição, sem chance voltar.
- Ô, dó! 
- Inéditos surge também como tributo de Minas ao poeta Manuel Bandeira, que faleceu em outubro, deixando amargurados incontáveis admiradores espalhados por todo o Brasil.
- Dia 13, não foi?
- Aos 82 anos. Ainda cheio de projetos.
- Imagino.
- Um bardo do nordeste que conseguiu simplificar a poesia e, mesmo velho, soube imprimir juventude a tudo que escreveu.
- ...O sol tão claro lá fora, o sol tão claro, Esmeralda, e em minhalma — anoitecendo – recita Suzana versos do poeta, concentrada.
Mathieu se ajeita na poltrona, estica o braço e pega o copo de cerveja, propondo:
- Suzana, eu queria sugerir um brinde. Vamos beber à memória de Bandeira?
Ela sorri e clica o seu copo no dele. Em seguida, o rapaz toma um pouco da bebida e o coloca de novo na mesinha de centro, relembrando:
- Meses atrás fiz uma matéria sobre a vida e a morte de periódicos culturais em Minas Gerais. Mostrei, literalmente, que o autor mineiro sempre teve raça, produziu demasiado e, muitas vezes, tirava dinheiro do bolso para ver seus ensaios difundidos numa revista literária. Leu?
- Não. Não li.
         - Falo de escritores e jornalistas que deixaram marcas nas artes literárias entre 1900 a 1960. Ou melhor, intelectuais que fizeram histórias em suas cidades, revelando ideias e imagens em cada época, produzindo boa literatura.
         - Ah, eu quero xerox. Arruma?
         - Sem problemas.
         - Obrigada.
         - De nada.
         Logo Suzana esvazia seu copo e conclui:
         - Ah, Math, não gostei nem um pouco de saber que a ‘Estória’ fechou.
- Não se preocupe. ‘Inéditos’ promete linha semelhante.
         - Compro uma segunda-feira.
         - Não precisa. Sou amigo do Vladimir, um dos editores. Trago-lhe um exemplar de cortesia.
         - Tudo bem. Vou cobrar, viu?
         - Viu – responde Mathieu com os olhos acesos de contentamento,
enquanto chupava o cigarro altivamente.


 

* FBN© - 2012 - Os Imortais..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração -  Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  desenho de Charles Dickens.  Link: http://numanoiteem68.blogspot.com/2011/01/32xxxii-o-sabor-do-texto-em-veredas.html

 

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