2011-01-03

02/II - ESQUERDA, VOLVER!...


*
Carlos Marighella
 
 
Considerado um dos principais organizadores da resistência contra o regime militar a partir de 1964.
 
 
 
Capitã Nancy Wake
A roupa é de soldado,
mas a sensibilidade é feminina.


 Heroína mais condecorada, pelos aliados,
por sua atuação nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, tornando-se a mulher mais procurada pela Gestapo. 1912/2011
 
.
 Oficial Lyudmila Pavlichenko

 Revolucionária  soviética.
Mulher Sniper mais bem sucedida -1916/1974



 
II

ESQUERDA, VOLVER!



Suzana permanece imóvel. Fita por um momento o seu retrato dependurado na parede, recompõe-se na poltrona e procura saber:

- E aí, rapaz, o que há de novo?

- Tudo velho. Apesar de uma notícia desagradável que recebi lá no pensionato.

- O quê?

- Corre rumor de que o Brito foi preso.

- Meu Deus, parente seu?

- Não. Não. Mora lá com a gente.

- Ainda bem.

- Ele participa do MR8.

Suzana pensa um pouco para ver se tinha entendido. Logo pergunta:

- Que banda é essa?

- Não é rock não. Grupo de esquerda.

- My God! Um lapso... Onde é que estou com a cabeça?

- Bobagem!

- Ih, gente, confundi as bolas, que bobeira! Socorro!!!

- Movimento Revolucionário Oito de Outubro.

- Ouvi falar. Por que essa data agregada ao nome?

- Dia em que a CIA capturou e matou, na Bolívia, o guerrilheiro argentino Che Guevara no dia 8 de outubro de 1967. Antes, chamava-se DI-RJ. Rebatizada em homenagem ao revolucionário.

- Olha!

- Na verdade, o movimento de ideologia socialista foi criado por universitários em 1964, com o nome de Dissidência do Rio de Janeiro. Como era uma célula trotskista, pregava a luta armada contra a ditadura militar para implantar um Estado Socialista no Brasil.

- Vixe! - expressa a mulher, espantada.

- Agora, com a união do ex-deputado Federal Carlos Marighella ao MR8, surgiu o grupo ALN - Ação Liberadora Nacional - organização subversiva que assumiu a responsabilidade por vários assaltos a bancos no Brasil.

- Meu Deus!

- Não à toa que é o terrorista mais procurado do país. Ele é considerado o inimigo número um do Brasil. Conhece sua história de luta?

- Pouco. Mas sei que é uma voz contra a Ditadura.

- Ícone irredutível da resistência aos militares no poder. Ganha projeção como estridente voz contrariando o regime político brasileiro, que endurece cada dia mais. De peito aberto, ele grita quando a ordem é calar e resiste quando a força manda ceder. Esse é o tom do seu discurso. Por isso mesmo Marighella é celebrado na Europa como o principal comandante da guerrilha na América do Sul.

- Puxa vida!

- Influenciado pelas ideias dos 3 Ms: Mao, Marx e Marcuse, lançou o mini manual do Guerrilheiro Urbano que propaga os mandamentos dos militantes. Ao sabor de Marselhesa, o livreto é também conhecido pelo título: Às armas, Companheiro.

- Já leu?

- Dei uma folheada. O que mais me chamou atenção foi o quesito que manda o militante ser andarilho, resistir ao cansaço, à fome, à chuva, ao calor. Saber esconder-se e saber vigiar. Ter sangue frio, anarquista, romper fronteiras. Tudo como Trotsky manda, ao dizer que a única virtude moral que temos de ter é a luta pelo Comunismo.

- Oh, céus!

- Com esse livreto Marighella tornou-se espécie de superego de uma geração de teóricos marxistas, principalmente, universitários que não pensavam duas vezes, mesmo sabendo que estavam dando a cara para bater, para se apresentarem como voluntários para vencer ou morrer pela causa comunista.

Suzana, meio angustiada:

- Falta de juízo, não é?

- Total. O risco, querida, está na essência desse esporte! Muitos deles perdem a vida por nada, enfrentando a selvajaria do Estado que armam para eles verdadeiras arapucas da morte.

- Fico triste.

- Debruçados sobre uma panela fervendo, ainda assim, um batalhão de jovens que vive pelas ideias de liberdade e justiça social, não desiste de brigar pelo fim da ditadura no Brasil. Convicção inabalável! Essa é a expressão que se lê no rosto de cada um deles, obcecados pela luta armada, num país que está sendo massacrado pela Ditadura Militar.

- Deus me livre e guarde!

- Para esses incansáveis subversivos e envolvidos ativamente com a resistência, o idealismo e a ilusão da glória podem durar pouco.  Quando não são abatidos por inimigos em ação, mofam nas prisões com todo tipo de crueldades por longo tempo, passando do sonho ao pesadelo.

- Difícil até de acreditar!

- Mesmo assim, tem a rapaziada da esquerda festiva, que imagina casar com a filha de um herói da revolução cubana, pensando em viver na mítica ilha para o resto da vida, mesmo que seja apenas um fantasma por trás das cortinas – afirma Mathieu.

- Háháhá!

- Suzana, nada é mais romântico para os jovens socialistas que cultuam esse sonho! São eles que enchem as paredes de seus quartos com pôsteres de Guevara, queimam neurônios pensando como é que vão crescer sem ter com quem se revoltar, ou amadurecer sem ter como se rebelar. É isso. Tendo Guevara como uma espécie de best of, querem ser combatentes como ele, que já arrastou uma multidão de moços para o inferno das guerrilhas, com a mesma leveza de alma de quem sai para uma simples caminhada pelas montanhas.

- Vixe!

- Isso mesmo. É assim que as novas gerações vão sendo iludidas para lutar pela implantação do comunismo, principalmente, na América Latina. É dessa maneira que a farsa ainda resiste.

- Eu sei.

- São pessoas que engordam os postes da cidade com panfletos de mensagens cifradas de todas as formas, principalmente, para convocar militantes às reuniões clandestinas, sem levantar suspeitas. Outra maneira de panfletar, é umedecer e colar milhares de folhetos no alto dos edifícios. Na medida que vão secando, um a um, inicia seu voo pela cidade levando mensagens dos revolucionários, longe de denunciar a origem do procedimento. Para essa gente, o regime comunista seduz como religião.

Pausa. A mulher desolada:

- Ingênuos!

- Os heróis barbados, empunhando metralhadoras, são considerados santos para adoração com sua farsa moral esquerdista. Repare na imagem de Che: domina a linguagem guerrilheira típica do sistema latino-americano. Percebe?

- Sim.

- Por outro lado, Suzana, terrorismo é também vaidade. Hoje em dia falar que é da esquerda provoca admiração, principalmente, dentro das universidades. Deixar a barba crescer, ser preso valoriza o currículo, sabia disso? Significa que o cara é da ‘pesada’.

- Poxa!

Pausa. Mathieu, depois de uma tragada no cigarro, confessa:

- Esse argentino nunca me convenceu com esse discurso de igualdade social! Fidel Castro, muito menos.

- Nem a mim – fortalece a mulher.

- Em dezembro de 1964, como participante da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, Che Guevara ocupou a tribuna e confessou sem titubear: ... Nosotros tenemos que decir aquí lo que es una verdad conocida: fusilamientos, sí, hemos fusilado; fusilamos y seguiremos fusilando mientras sea necesario.

- Porco fedorento! - expressa a mulher, assombrada.

- Ainda hoje, seu legado está em plena operação, como forma de reestruturar o tecido social. Continua no país a máquina de assassinatos políticos na prisão de La Cabana com execuções sumárias de vítimas que, exauridas, já chegam ao paredão em estado crítico. Delas retiram boa parte do sangue para transfusões.

- Quadro horrível!

Mathieu balança a cabeça, admitindo:

- Mesmo assim, Fidel Castro prega o ideal comunista como o máximo. Quer paradoxo maior?

- Não.

- Para Fidel é um paraíso, sim. O cara mora numa pequena ilha, cercada de fausto. Dono de iate e avião particulares, come do bom e do melhor e se dá ao luxo de mandar fazer, sob medida, suas botas de couro na Itália. Ostentação que contrasta com a miséria em que vive a população de Cuba. Nada diferente da vida luxuosa, em que revela despudorável excentricidade, que seria aberrante até mesmo para um bilionário capitalista.

- Não sabia.

- Segredo de Estado. Quem falar, morre.

- Pior que é assim mesmo.

- Toda sociedade totalitária é movida pela convicção de que as pessoas não são iguais, não podem nem devem ser tratadas como iguais. Portanto, o ser humano visto como inferior é logo eliminado.

- Estou chocada!

- Arre! Se algum dia eu tive algum namoro com as teorias marxistas durou pouco, porque logo descobri que essa filosofia de repartir pobreza é tapeação. Nunca vi beleza no infortúnio!

- Nem eu.

Depois de tomar um demorado gole de cerveja, Mathieu franze o cenho, dizendo:

- Voltando ao Brasil, tenho muita pena dos que caem na desgraça de serem presos pela nossa polícia repressora. Nos porões do DEOPS, apanham feito cavalo.

- Imagino.

- Numa sessão de suplícios, diante de torturadores extremamente covardes, absolutos e impiedosos, as vítimas são dependuradas em pau de arara, onde confessam o que fizeram e o que não fizeram.

- Santo Deus!

- O negócio dos milicos é ver o desgraçado reduzido a lixo – compara Mathieu.  - Um inferno que o tempo jamais apagará da memória da vítima, nem da nação. 

- Sofrem para caramba, eu sei.

- Qualquer cidadão, submetido a uma seção de martírio, é diminuído a tal ponto que, quando posto na rua por ser inocente, por bom tempo mal pode se expressar direito de tão judiado. Arrancam-lhe as unhas, os dentes. Ferem-lhe a honra, a dignidade. Tudo como a gente nunca viu.

- Triste.

- Existem relatos de que reprimem com choques elétricos, e outras sevícias, até filhos lactentes, encarcerados com as mães.

- Meu Deus, difícil de acreditar!

Pausa. Mathieu:

- O pior que, em termos de mortificação, o inimaginável não se esgota nos porões de tortura, que emprega sofisticadas técnicas de martírio contra a vida humana ao som dos acordes do Hino Nacional. E mais, muitas vezes, depois de levar tapas, socos e choques, a vítima do terror é levada a um ‘passeiozinho’ para nunca mais voltar para casa. Some de uma hora para a outra.

- Desaparecimento forçado?

- Nesse trajeto, o infeliz é silenciado para sempre. Cada dia, cresce o número de vidas interrompidas, traídas pela própria ideologia política.

- Miseráveis!

- Pior ainda quando prendem uma militante. A barbaridade é maior. Além da interrogatória, tortura no pau-de-arara, choques elétricos com a ‘pimentinha’, afogamentos, palmatórias e coroa de cristo, a infeliz deixa as seções de martírio com inúmeras mordidas pelo corpo.

- Como assim, Math?

- Resultado impiedoso das sevícias que uma mulher atura nas mãos desses agentes, imersos em tudo, o que do poder procede. Um mar de excessos! Elas sofrem estupros diários, satisfazendo o insaciável e doentio apetite sexual de alguns torturadores, que não escondem o que a repressão do regime totalitário é capaz de fazer contra o cidadão brasileiro.

- Meu Deus, precisa de tanta selvageria? Quanta dor, quanto estrago pode provocar um bandido na vida de uma mulher? Como será que essas imagens vão marcar sua vida na sociedade.

- A tortura sempre existiu. Houve em arenas romanas, nas masmorras da idade Média, nos castelos e pelourinhos. Foi patrocinada pelos senhores de escravos, imperadores, reis e papas, ditadores de direita e de esquerda. Consecutivamente em pauta, quando um estado precisava subjugar seus inimigos.

- Não me conformo.

- Difícil até de imaginar. Mas, posso dizer que essa história é antiga. Barbara do Crato, avó de José de Alencar, republicana declarada, foi a primeira presa política na biografia do Brasil. Como o governo da época também era leniente com a tortura a inimigos políticos, ela também sofreu seu martírio físico e, principalmente, psicológico na cadeia.

- Não sabia.

O rapaz, depois de acender um cigarro, conta:

- De acordo com a imprensa internacional, o Brasil é considerado o maior caldeirão de tortura da América do Sul do século XX. Acredita?

- Inconcebível.

- A perseguição pelo Exército, principalmente, aos intelectuais é ferrenha. Certa vez, um grupo de escritores e jornalistas, portando faixas que pediam liberdade e o fim da tortura no Brasil, vaiou o presidente Castelo Branco na saída do Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Não deu outra, todos foram presos.

- Quando foi isso?

- Em novembro de 1965. Entre eles, Carlos Heitor Cony e Flávio Rangel.

- Puxa vida!

- Depois desse fato, o jornalista Paulo Francis, indignado com a situação, liderou um movimento de protesto na Europa contra as prisões arbitrárias no Brasil. Lembra?

- Lembro.

- A resposta foi rápida e preciosa. Jean-Luc Godard, que estava rodando Masculino e Feminino, fez uma denúncia no contexto do filme. Pasolini, Renais, Ives Montand e dezenas de outras figuras do cenário da cultura mundial também se manifestaram, apontando o retrato agudo do totalitarismo no Brasil e, principalmente, o arroubo de grandeza de nossos governantes.

Pausa. Suzana:

- Você conhece outros na militância?

- Não. Não. Maioria dos meus amigos se espalha mais pela ‘direita’ do que por essa ‘esquerda’, mergulhada na brisa marxista. Na verdade, não tenho simpatia por líderes socialistas que consideram os outros como burgueses, porcos do capitalismo selvagem. Vejo que muitas questões são justificadas por mentiras ideológicas, uma sem-vergonhice! Creio que, uma vez no poder, esses caras vão se comportar como os seus antecessores capitalistas. Olho para essa gente e tenho vontade de meter o dedo na garganta de tanto asco.

- Entendo.

Pausa. Mathieu:

- Longe de convicções radicais, me sinto meio hippie que adota o slogan mais abençoado do mundo: Paz &Amor.

- Ã-Hã.

- Ser reacionário nunca foi meu esporte. Se não há liberdade, há meu escracho, pode crer – conclui o rapaz, rindo.

- Nem das passeatas você participa?

- Observo de longe. Ver a consciência política se exacerbar na alma do brasileiro me dá muita esperança. Mas...

- Jurava que tomava parte das manifestações de rua. Até mesmo para ganhar a simpatia de alguma ovelhinha stalinista em protesto contra a Ditadura Militar.

Risos. Mathieu:

- Nem por isso. Mas sei que o protesto político é um dever intelectual de todo cidadão. Platão ensinou que o preço a pagar pela sua não participação na política é o ser governado por quem é inferior. Portanto, é perigoso silenciar.

- Isso mesmo.

- Diante dessa reflexão, às vezes, eu me pergunto: até que ponto o não envolvimento em atos públicos dessa natureza pode ser traduzido numa covardia, enquanto assistimos milhares de pessoas enfrentando a polícia nas ruas?

- Ora, Math, você oferece participação de outra forma: escrevendo.

- Claro. Eu até gosto de discutir a política, mas eu não curto paixão irracional por ela. Radical, nunca. Racional, sempre.

- Melhor assim.

- Posso dizer que tenho repulsa por qualquer tipo de partido, tanto de direito como de esquerda. Sou libertário. Mas isso não quer dizer que não devemos prestar mais atenção no dia a dia dos políticos do Brasil. Não ficar indiferente, claro.

- Entendo.

- Creio em Tchekhov. Você em Jesus Cristo. Outros em intelectuais socialistas, submergidos em seus feudos teóricos. Da minha parte, do meu jeito torço pela liberdade ampla e irrestrita de expressão em meu país.

- Mostra que é um jovem consciente, cauteloso e sensato. Faz muito bem - balanceia os cabelos Suzana. 

- Entusiasta da democracia que sou, eu sonho com um regime moldado nos princípios de Abraham Lincoln, que dizia que a Democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo. Isso é: regime baseado em regras que asseguram méritos e virtudes que valem para todos.

- Rezo por isso também. Defendo que o exercício da democracia precisa começar dentro de casa, da escola, no uso dos logradouros públicos, dentro dos clubes recreativos que se frequenta.

- Claro, claro. Em todo lugar cabem lições de cidadania.

Pausa. Suzana, com um olhar preocupado:

- Math, até quando vamos continuar suportando tanto abuso e o desrespeito aos nossos direitos fundamentais?

O jornalista leva a mão ao peito e enfatiza:

- Um dia, querida... Um dia reabilitaremos o democratismo, totalmente, abandonado por aqui. Talvez não se consiga já, mas sempre há aquela última esperança. Um dia...

- Será?

- Assim como a vida e a arte, a política também é feita de ciclos, de períodos. Com os ditadores de hoje não seria diferente.

- Tomara.

E com visível exaltação interior, Mathieu:

- Mesmo em uma nação bárbara como a nossa, com a inteligência vivendo longe do poder, vai chegar o dia em que esses milicos cairão fora, dando lugar a um governo ancorado na democracia. Nada é para sempre! Vai chegar o dia de virar essa partida, de botar esses torturadores na cadeia e acabar com essa alienação. Vai chegar o dia de redigir uma Nova Constituição com direitos plenos para todos. Ah, vai! Tempus edax rerum.

- Você está sendo realista ou otimista?

- Um pouco dos dois. Mesmo sabendo que a queda de braços entre governo e oposição ainda vai demorar, posso dizer que nenhuma regra, nenhuma decisão, nenhum sentimento dura eternamente. 

- Ai, nem acredito! Confio no Senhor que uma luz divina há de pôr fim nesse conflito entre irmãos o quanto antes, restaurando a paz. Somos ramos e folhas de uma mesma árvore, não pode ser diferente.

Depois de uma pausa, o rapaz:

- Querida, John Steinbeck inspirou em um antigo poema escocês para escrever Ratos e Homens, colocando de maneira incisiva que, por mais cuidadosos que sejam os planos desse mundo, feitos por ratos ou por homens, são coisas frágeis: podem ser desfeitos pelo rodo do acaso, que é indiferente aos projetos mais humildes quanto aos mais ambiciosos.

- Sim.

- Esse rodo vai passar por aqui, ainda que tardia, e acabar com essa lambança que virou a política brasileira. O que a gente vê é que nossas casas do poder legislativo abrigam, cada vez mais, pessoas que apenas querem saber de si, dos seus interesses políticos e de suas contas bancárias.

- Pior impossível.

- E Ditadura no Brasil, outra vez, nunca mais. Nunca. Você entendeu?

A mulher gira o dedo na cabeça:

- De volta ao começo, fale mais do Brito.

- Ninguém sabe onde ele se encontra. Todos nós, lá no pensionato, tememos por sua vida.

- Por quê?

- Pelo que se sabe, ele participou do assassinato do capitão do exército americano Charles Rodney Chandler, paramilitar morto pelo grupo de Marighella.

- Chandler! Chandler... Aquele tal..., o agente da CIA?

- Em carne e osso.

- Valha-me Cristo! – lastima Suzana com as mãos no rosto.

- Dizem por aí que o cara era instrutor de tortura dos nossos milicos. Veio ao Brasil, especialmente, para ensinar aos nossos militares o uso de técnicas eficientes de interrogatório, elaboradas pelo movimento Brother Sam. Mais brutais, claro.

- Verdade?

- Quem é que sabe? Como há rumores de que o golpe de 1964 teve forte apoio dos Estados Unidos nada é impossível. Não podemos esquecer que esse foi o primeiro país do mundo a reconhecer o novo governo brasileiro, engalanado por militares com sorrisos agradecidos pela esmola estrangeira.

- Não sabia, juro.

- Tudo a ver com a versão da operação Thomas Mann.

- Hein?

- Especula-se a participação do Governo Lyndon Johnson, entre aspas, na revolução de 31 de março de 1964. Parceria em surdina com a ‘direita’ e os milicos, que juntos encarnaram os cavalheiros de nosso apocalipse.

- Absolutos!

- Dizem que essa intervenção começou a ser cogitada após um encontro do embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon com o Presidente John Kennedy, que viam o Governo de Jango Goulart como ameaça à democracia brasileira.

- Será mesmo?

- Essa conversa, pelos anais da Casa Branca, ocorreu dia 20 de julho de 1962.

Pausa. Suzana:

- Bem informado, hein, rapaz?

- Notícias assim, não sei direito como, são diariamente vazadas do serviço de inteligência do FBI. Nada oficial, claro. Mas, todo jornalista atento aos fatos no Brasil sabe que os Estados Unidos agiram de forma ativa para derrubar João Goulart da Presidência, cogitando até mesmo invadir nosso país caso o golpe fracassasse. Como Jango não ofereceu resistência, os norte-americanos recolheram o imenso porta-aviões ancorado na costa brasileira, pronto para intervir, caso a tomada enfrentasse resistência.

- Estou surpresa, Math!

- Ã-Hã! – aquiesce o rapaz meneando a cabeça, repetidamente.

Pausa. Suzana:

- E agora, o que vai ser do Brito?

- Difícil dizer. Tudo leva a crer que, depois de submetido aos escabrosos métodos de tortura, é provável que ele será mais uma vítima do sumiço misterioso nesse oceano de abusos nos porões da Ditadura.

- Coisa mais deprimente, Math! – protesta Suzana com a voz enrouquecida.

- O pouco que a gente sabe é que o Brito foi capturado por milicos da unidade do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, conhecido como o mais carniceiro. Sua função básica é manter vigilância absoluta do cotidiano de todos os cidadãos brasileiros.

- Math, não é a mesmo pelotão que invadiu o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, durante a apresentação de Roda Viva, de Chico Buarque, e agrediu seus integrantes?

- Sim. Peça dirigida por José Celso Martinez.

- Em julho, não foi?

- Justamente. Agentes tão arbitrários que, para piorar o serviço sujo, obrigaram as atrizes do elenco a desfilar nuas num corredor polonês, formado pelos meganhas.

A mulher muda de posição na poltrona. Com o olhar pálido de cólera contida, expõe sua revolta:

- Que nojo, embrulha o estômago!

- Não é para menos.

- Isso, sim, é que é teatro do absurdo. Uma barbárie!

- Concordo.

- É um artifício do Exército para tirar de cena os inimigos políticos, principalmente, as trupes de ‘artivistas’ com suas atuações de protesto e embate no palco.

- Execrável!

- Não viu a ‘cana’ em massa de estudantes que participavam do XXX Congresso da UNE naquele sitio em Ibiúna?

- Fiquei pasma.

- Soldados da Força Pública não quiseram nem saber, enquadraram como subversivos cerca de mil participantes da mobilização estudantil.

- Ai, nem sei o que dizer.

- Ditadura é ditadura, querida. Ditadores, de todos os matizes ideológicos - tanto de esquerda como de direita - são autocratas, absolutistas e, sobretudo, fazem prevalecer a mordaça sobre a liberdade de expressão.

- Tem razão.

- Na verdade, não há ditadura em que o povo não seja subjugado pelo abuso de seus governantes. Toda ditadura é regida pela sujeira dos maus costumes e, principalmente, pela força dos canhões que esmagam pessoas e ideias que não se alinham ao sistema.

- Ã-Hã.

- Norberto Bobbio acertou na mosca quando disse que se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia. Penso assim também.

- Sim, senhor.

O rapaz em tom crítico:

- Boa noite para nós todos que vivemos nesse país chamado Brasil. Antes do golpe militar, folcloricamente, era chamado de ‘república dos papagaios’. Depois, virou república do ‘pau-de-arara’.

- Ah, essa é boa!

Sorrindo, o rapaz pega uma das mãos de Suzana e prende-a com firmeza entre as suas. Olha-a enternecido. E admite:

- Você tem uma cabeça-boa, menina.

- Você também, menino.

 



 
* FBN© - 2012 – Esquerda, Volver!.. NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: revolucionárias Lyudmila Pavlichenko  e Capitã Nancy Wake.  Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/3iii-esquerda-volver.html?zx=b897d903e3ce3d76
 
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