*
Carlos Marighella
Foi um político,
guerrilheiro
e poeta
brasileiro.
Considerado um dos principais organizadores da resistência
contra o regime militar a partir de 1964.
Capitã Nancy Wake
A roupa é de soldado,
mas a sensibilidade é feminina.
Heroína mais condecorada, pelos aliados,
por sua atuação nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, tornando-se a mulher mais procurada pela Gestapo. 1912/2011
.
Oficial Lyudmila Pavlichenko
Revolucionária soviética.
Mulher Sniper mais bem sucedida -1916/1974
II
ESQUERDA, VOLVER!
Suzana
permanece imóvel. Fita por um momento o seu retrato dependurado na parede,
recompõe-se na poltrona e procura saber:
- E aí,
rapaz, o que há de novo?
- Tudo
velho. Apesar de uma notícia desagradável que recebi lá no pensionato.
- O quê?
- Corre
rumor de que o Brito foi preso.
- Meu
Deus, parente seu?
- Não.
Não. Mora lá com a gente.
- Ainda
bem.
- Ele participa
do MR8.
Suzana
pensa um pouco para ver se tinha entendido. Logo pergunta:
- Que
banda é essa?
- Não é
rock não. Grupo de esquerda.
- My God! Um lapso... Onde é
que estou com a cabeça?
-
Bobagem!
- Ih,
gente, confundi as bolas, que bobeira! Socorro!!!
-
Movimento Revolucionário Oito de Outubro.
- Ouvi
falar. Por que essa data agregada ao nome?
- Dia em
que a CIA capturou e matou, na Bolívia, o guerrilheiro argentino Che Guevara no
dia 8 de outubro de 1967. Antes, chamava-se DI-RJ. Rebatizada em homenagem ao
revolucionário.
- Olha!
- Na
verdade, o movimento de ideologia socialista foi criado por universitários em
1964, com o nome de Dissidência do Rio de Janeiro. Como era uma célula
trotskista, pregava a luta armada contra a ditadura militar para implantar um
Estado Socialista no Brasil.
- Vixe! -
expressa a mulher, espantada.
- Agora,
com a união do ex-deputado Federal Carlos Marighella ao MR8, surgiu o grupo ALN
- Ação Liberadora Nacional - organização subversiva que assumiu a
responsabilidade por vários assaltos a bancos no Brasil.
- Meu
Deus!
- Não à
toa que é o terrorista mais procurado do país. Ele é considerado o inimigo
número um do Brasil. Conhece sua história de luta?
- Pouco.
Mas sei que é uma voz contra a Ditadura.
- Ícone
irredutível da resistência aos militares no poder. Ganha projeção como
estridente voz contrariando o regime político brasileiro, que endurece cada dia
mais. De peito aberto, ele grita quando a ordem é calar e resiste quando a
força manda ceder. Esse é o tom do seu discurso. Por isso mesmo Marighella é
celebrado na Europa como o principal comandante da guerrilha na América do Sul.
- Puxa
vida!
-
Influenciado pelas ideias dos 3 Ms: Mao, Marx e Marcuse, lançou o mini manual
do Guerrilheiro Urbano que propaga os mandamentos dos militantes. Ao sabor de
Marselhesa, o livreto é também conhecido pelo título: Às armas, Companheiro.
- Já leu?
- Dei uma
folheada. O que mais me chamou atenção foi o quesito que manda o militante ser
andarilho, resistir ao cansaço, à fome, à chuva, ao calor. Saber esconder-se e
saber vigiar. Ter sangue frio, anarquista, romper fronteiras. Tudo como Trotsky
manda, ao dizer que a única virtude moral que temos de ter é a luta pelo
Comunismo.
- Oh,
céus!
- Com
esse livreto Marighella tornou-se espécie de superego de uma geração de
teóricos marxistas, principalmente, universitários que não pensavam duas vezes,
mesmo sabendo que estavam dando a cara para bater, para se apresentarem como
voluntários para vencer ou morrer pela causa comunista.
Suzana,
meio angustiada:
- Falta
de juízo, não é?
- Total.
O risco, querida, está na essência desse esporte! Muitos deles perdem a vida
por nada, enfrentando a selvajaria do Estado que armam para eles verdadeiras
arapucas da morte.
- Fico
triste.
-
Debruçados sobre uma panela fervendo, ainda assim, um batalhão de jovens que
vive pelas ideias de liberdade e justiça social, não desiste de brigar pelo fim
da ditadura no Brasil. Convicção inabalável! Essa é a expressão que se lê no
rosto de cada um deles, obcecados pela luta armada, num país que está sendo
massacrado pela Ditadura Militar.
- Deus me
livre e guarde!
- Para
esses incansáveis subversivos e envolvidos ativamente com a resistência, o
idealismo e a ilusão da glória podem durar pouco. Quando não são abatidos
por inimigos em ação, mofam nas prisões com todo tipo de crueldades por longo
tempo, passando do sonho ao pesadelo.
-
Difícil até de acreditar!
- Mesmo
assim, tem a rapaziada da esquerda festiva, que imagina casar com a filha de um
herói da revolução cubana, pensando em viver na mítica ilha para o resto da
vida, mesmo que seja apenas um fantasma por trás das cortinas – afirma Mathieu.
- Háháhá!
- Suzana,
nada é mais romântico para os jovens socialistas que cultuam esse sonho! São
eles que enchem as paredes de seus quartos com pôsteres de Guevara, queimam
neurônios pensando como é que vão crescer sem ter com quem se revoltar, ou amadurecer
sem ter como se rebelar. É isso. Tendo Guevara como uma espécie de best of, querem ser combatentes como ele,
que já arrastou uma multidão de moços para o inferno das guerrilhas, com a mesma
leveza de alma de quem sai para uma simples caminhada pelas montanhas.
- Vixe!
- Isso
mesmo. É assim que as novas gerações vão sendo iludidas para lutar pela
implantação do comunismo, principalmente, na América Latina. É dessa maneira
que a farsa ainda resiste.
- Eu sei.
- São
pessoas que engordam os postes da cidade com panfletos de mensagens cifradas de
todas as formas, principalmente, para convocar militantes às reuniões
clandestinas, sem levantar suspeitas. Outra maneira de panfletar, é umedecer e
colar milhares de folhetos no alto dos edifícios. Na medida que vão secando, um
a um, inicia seu voo pela cidade levando mensagens dos revolucionários, longe
de denunciar a origem do procedimento. Para essa gente, o regime comunista
seduz como religião.
Pausa. A
mulher desolada:
-
Ingênuos!
- Os
heróis barbados, empunhando metralhadoras, são considerados santos para
adoração com sua farsa moral esquerdista. Repare na imagem de Che: domina a
linguagem guerrilheira típica do sistema latino-americano. Percebe?
- Sim.
- Por
outro lado, Suzana, terrorismo é também vaidade. Hoje em dia falar que é da
esquerda provoca admiração, principalmente, dentro das universidades. Deixar a
barba crescer, ser preso valoriza o currículo, sabia disso? Significa que o
cara é da ‘pesada’.
- Poxa!
Pausa.
Mathieu, depois de uma tragada no cigarro, confessa:
- Esse
argentino nunca me convenceu com esse discurso de igualdade social! Fidel
Castro, muito menos.
- Nem a
mim – fortalece a mulher.
- Em
dezembro de 1964, como participante da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, Che Guevara ocupou a tribuna e confessou sem
titubear: ... Nosotros tenemos que decir aquí lo que es una verdad conocida:
fusilamientos, sí, hemos fusilado; fusilamos y seguiremos fusilando mientras
sea necesario.
- Porco
fedorento! - expressa a mulher,
assombrada.
- Ainda hoje, seu legado
está em plena operação, como forma de reestruturar o tecido social. Continua no
país a máquina de assassinatos políticos na prisão de La Cabana com execuções
sumárias de vítimas que, exauridas, já chegam ao paredão em estado crítico. Delas
retiram boa parte do sangue para transfusões.
- Quadro
horrível!
Mathieu
balança a cabeça, admitindo:
- Mesmo assim, Fidel Castro
prega o ideal comunista como o máximo. Quer paradoxo maior?
- Não.
- Para
Fidel é um paraíso, sim. O cara mora numa pequena ilha, cercada de fausto. Dono
de iate e avião particulares, come do bom e do melhor e se dá ao luxo de mandar
fazer, sob medida, suas botas de couro na Itália. Ostentação que contrasta com
a miséria em que vive a população de Cuba. Nada diferente da vida luxuosa, em
que revela despudorável excentricidade, que seria aberrante até mesmo para um
bilionário capitalista.
- Não
sabia.
- Segredo
de Estado. Quem falar, morre.
- Pior
que é assim mesmo.
- Toda
sociedade totalitária é movida pela convicção de que as pessoas não são iguais,
não podem nem devem ser tratadas como iguais. Portanto, o ser humano visto como
inferior é logo eliminado.
- Estou
chocada!
- Arre!
Se algum dia eu tive algum namoro com as teorias marxistas durou pouco, porque
logo descobri que essa filosofia de repartir pobreza é tapeação. Nunca vi beleza
no infortúnio!
- Nem eu.
Depois de
tomar um demorado gole de cerveja, Mathieu franze o cenho, dizendo:
-
Voltando ao Brasil, tenho muita pena dos que caem na desgraça de serem presos pela
nossa polícia repressora. Nos porões do DEOPS, apanham feito cavalo.
-
Imagino.
- Numa
sessão de suplícios, diante de torturadores extremamente covardes, absolutos e
impiedosos, as vítimas são dependuradas em pau de arara, onde confessam o que
fizeram e o que não fizeram.
- Santo
Deus!
- O
negócio dos milicos é ver o desgraçado reduzido a lixo – compara Mathieu. - Um inferno que o tempo jamais apagará da
memória da vítima, nem da nação.
- Sofrem
para caramba, eu sei.
- Qualquer
cidadão, submetido a uma seção de martírio, é diminuído a tal ponto que, quando
posto na rua por ser inocente, por bom tempo mal pode se expressar direito de
tão judiado. Arrancam-lhe as unhas, os dentes. Ferem-lhe a honra, a dignidade.
Tudo como a gente nunca viu.
- Triste.
- Existem
relatos de que reprimem com choques elétricos, e outras sevícias, até filhos
lactentes, encarcerados com as mães.
- Meu
Deus, difícil de acreditar!
Pausa.
Mathieu:
- O pior
que, em termos de mortificação, o inimaginável não se esgota nos porões de
tortura, que emprega sofisticadas técnicas de martírio contra a vida humana ao
som dos acordes do Hino Nacional. E mais, muitas vezes, depois de levar tapas,
socos e choques, a vítima do terror é levada a um ‘passeiozinho’ para nunca mais
voltar para casa. Some de uma hora para a outra.
-
Desaparecimento forçado?
- Nesse
trajeto, o infeliz é silenciado para sempre. Cada dia, cresce o número de vidas
interrompidas, traídas pela própria ideologia política.
-
Miseráveis!
- Pior
ainda quando prendem uma militante. A barbaridade é maior. Além da
interrogatória, tortura no pau-de-arara, choques elétricos com a ‘pimentinha’,
afogamentos, palmatórias e coroa de cristo, a infeliz deixa as seções de
martírio com inúmeras mordidas pelo corpo.
- Como
assim, Math?
-
Resultado impiedoso das sevícias que uma mulher atura nas mãos desses agentes,
imersos em tudo, o que do poder procede. Um mar de excessos! Elas sofrem
estupros diários, satisfazendo o insaciável e doentio apetite sexual de alguns
torturadores, que não escondem o que a repressão do regime totalitário é capaz
de fazer contra o cidadão brasileiro.
- Meu
Deus, precisa de tanta selvageria? Quanta dor, quanto estrago pode provocar um
bandido na vida de uma mulher? Como será que essas imagens vão marcar sua vida na
sociedade.
- A
tortura sempre existiu. Houve em arenas romanas, nas masmorras da idade Média,
nos castelos e pelourinhos. Foi patrocinada pelos senhores de escravos,
imperadores, reis e papas, ditadores de direita e de esquerda. Consecutivamente
em pauta, quando um estado precisava subjugar seus inimigos.
- Não me
conformo.
- Difícil
até de imaginar. Mas, posso dizer que essa história é antiga. Barbara do Crato,
avó de José de Alencar, republicana declarada, foi a primeira presa política na
biografia do Brasil. Como o governo da época também era leniente com a tortura
a inimigos políticos, ela também sofreu seu martírio físico e, principalmente,
psicológico na cadeia.
- Não
sabia.
O rapaz,
depois de acender um cigarro, conta:
- De
acordo com a imprensa internacional, o Brasil é considerado o maior caldeirão
de tortura da América do Sul do século XX. Acredita?
-
Inconcebível.
- A
perseguição pelo Exército, principalmente, aos intelectuais é ferrenha. Certa
vez, um grupo de escritores e jornalistas, portando faixas que pediam liberdade
e o fim da tortura no Brasil, vaiou o presidente Castelo Branco na saída do
Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Não deu outra, todos foram presos.
- Quando
foi isso?
- Em
novembro de 1965. Entre eles, Carlos Heitor Cony e Flávio Rangel.
- Puxa
vida!
- Depois
desse fato, o jornalista Paulo Francis, indignado com a situação, liderou um
movimento de protesto na Europa contra as prisões arbitrárias no Brasil.
Lembra?
- Lembro.
- A
resposta foi rápida e preciosa. Jean-Luc Godard, que estava rodando Masculino e
Feminino, fez uma denúncia no contexto do filme. Pasolini, Renais, Ives Montand
e dezenas de outras figuras do cenário da cultura mundial também se
manifestaram, apontando o retrato agudo do totalitarismo no Brasil e,
principalmente, o arroubo de grandeza de nossos governantes.
Pausa.
Suzana:
- Você
conhece outros na militância?
- Não.
Não. Maioria dos meus amigos se espalha mais pela ‘direita’ do que por essa
‘esquerda’, mergulhada na brisa marxista. Na verdade, não tenho simpatia por
líderes socialistas que consideram os outros como burgueses, porcos do
capitalismo selvagem. Vejo que muitas questões são justificadas por mentiras
ideológicas, uma sem-vergonhice! Creio que, uma vez no poder, esses caras vão
se comportar como os seus antecessores capitalistas. Olho para essa gente e
tenho vontade de meter o dedo na garganta de tanto asco.
- Entendo.
Pausa.
Mathieu:
- Longe
de convicções radicais, me sinto meio hippie que adota o slogan mais abençoado do mundo: Paz &Amor.
- Ã-Hã.
- Ser
reacionário nunca foi meu esporte. Se não há liberdade, há meu escracho, pode
crer – conclui o rapaz, rindo.
- Nem das
passeatas você participa?
- Observo
de longe. Ver a consciência política se exacerbar na alma do brasileiro me dá
muita esperança. Mas...
- Jurava
que tomava parte das manifestações de rua. Até mesmo para ganhar a simpatia de
alguma ovelhinha stalinista em protesto contra a Ditadura Militar.
Risos.
Mathieu:
- Nem por
isso. Mas sei que o protesto político é um dever intelectual de todo cidadão.
Platão ensinou que o preço a pagar pela
sua não participação na política é o ser governado por quem é inferior.
Portanto, é perigoso silenciar.
- Isso
mesmo.
- Diante
dessa reflexão, às vezes, eu me pergunto: até que ponto o não envolvimento em
atos públicos dessa natureza pode ser traduzido numa covardia, enquanto
assistimos milhares de pessoas enfrentando a polícia nas ruas?
- Ora,
Math, você oferece participação de outra forma: escrevendo.
- Claro.
Eu até gosto de discutir a política, mas eu não curto paixão irracional por
ela. Radical, nunca. Racional, sempre.
- Melhor
assim.
- Posso
dizer que tenho repulsa por qualquer tipo de partido, tanto de direito como de
esquerda. Sou libertário. Mas isso não quer dizer que não devemos prestar mais
atenção no dia a dia dos políticos do Brasil. Não ficar indiferente, claro.
-
Entendo.
- Creio
em Tchekhov. Você em Jesus Cristo. Outros em intelectuais socialistas,
submergidos em seus feudos teóricos. Da minha parte, do meu jeito torço pela
liberdade ampla e irrestrita de expressão em meu país.
- Mostra
que é um jovem consciente, cauteloso e sensato. Faz muito bem - balanceia os
cabelos Suzana.
-
Entusiasta da democracia que sou, eu sonho com um regime moldado nos princípios
de Abraham Lincoln, que dizia que a Democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo. Isso é: regime
baseado em regras que asseguram méritos e virtudes que valem para todos.
- Rezo
por isso também. Defendo que o exercício da democracia precisa começar dentro
de casa, da escola, no uso dos logradouros públicos, dentro dos clubes
recreativos que se frequenta.
- Claro,
claro. Em todo lugar cabem lições de cidadania.
Pausa.
Suzana, com um olhar preocupado:
- Math,
até quando vamos continuar suportando tanto abuso e o desrespeito aos nossos
direitos fundamentais?
O
jornalista leva a mão ao peito e enfatiza:
- Um dia,
querida... Um dia reabilitaremos o democratismo, totalmente, abandonado por
aqui. Talvez não se consiga já, mas sempre há aquela última esperança. Um
dia...
- Será?
- Assim
como a vida e a arte, a política também é feita de ciclos, de períodos. Com os
ditadores de hoje não seria diferente.
- Tomara.
E com
visível exaltação interior, Mathieu:
- Mesmo
em uma nação bárbara como a nossa, com a inteligência vivendo longe do poder,
vai chegar o dia em que esses milicos cairão fora, dando lugar a um governo
ancorado na democracia. Nada é para sempre! Vai chegar o dia de virar essa
partida, de botar esses torturadores na cadeia e acabar com essa alienação. Vai
chegar o dia de redigir uma Nova Constituição com direitos plenos para todos.
Ah, vai! Tempus edax rerum.
- Você
está sendo realista ou otimista?
- Um
pouco dos dois. Mesmo sabendo que a queda de braços entre governo e oposição
ainda vai demorar, posso dizer que nenhuma regra, nenhuma decisão, nenhum
sentimento dura eternamente.
- Ai, nem
acredito! Confio no Senhor que uma luz divina há de pôr fim nesse conflito
entre irmãos o quanto antes, restaurando a paz. Somos ramos e folhas de uma
mesma árvore, não pode ser diferente.
Depois de
uma pausa, o rapaz:
-
Querida, John Steinbeck inspirou em um antigo poema escocês para escrever Ratos
e Homens, colocando de maneira incisiva que, por mais cuidadosos que sejam os
planos desse mundo, feitos por ratos ou por homens, são coisas frágeis: podem ser desfeitos pelo rodo do acaso, que
é indiferente aos projetos mais humildes quanto aos mais ambiciosos.
- Sim.
- Esse
rodo vai passar por aqui, ainda que tardia, e acabar com essa lambança que
virou a política brasileira. O que a gente vê é que nossas casas do poder legislativo
abrigam, cada vez mais, pessoas que apenas querem saber de si, dos seus
interesses políticos e de suas contas bancárias.
- Pior
impossível.
- E Ditadura
no Brasil, outra vez, nunca mais. Nunca. Você entendeu?
A mulher
gira o dedo na cabeça:
- De
volta ao começo, fale mais do Brito.
- Ninguém
sabe onde ele se encontra. Todos nós, lá no pensionato, tememos por sua vida.
- Por
quê?
- Pelo
que se sabe, ele participou do assassinato do capitão do exército americano
Charles Rodney Chandler, paramilitar morto pelo grupo de Marighella.
-
Chandler! Chandler... Aquele tal..., o agente da CIA?
- Em
carne e osso.
-
Valha-me Cristo! – lastima Suzana com as mãos no rosto.
- Dizem
por aí que o cara era instrutor de tortura dos nossos milicos. Veio ao Brasil,
especialmente, para ensinar aos nossos militares o uso de técnicas eficientes
de interrogatório, elaboradas pelo movimento Brother Sam. Mais brutais, claro.
-
Verdade?
- Quem é
que sabe? Como há rumores de que o golpe de 1964 teve forte apoio dos Estados
Unidos nada é impossível. Não podemos esquecer que esse foi o primeiro país do
mundo a reconhecer o novo governo brasileiro, engalanado por militares com sorrisos
agradecidos pela esmola estrangeira.
- Não
sabia, juro.
- Tudo a
ver com a versão da operação Thomas Mann.
- Hein?
-
Especula-se a participação do Governo Lyndon Johnson, entre aspas, na revolução
de 31 de março de 1964. Parceria em surdina com a ‘direita’ e os milicos, que
juntos encarnaram os cavalheiros de nosso apocalipse.
- Absolutos!
- Dizem
que essa intervenção começou a ser cogitada após um encontro do embaixador
norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon com o Presidente John Kennedy, que
viam o Governo de Jango Goulart como ameaça à democracia brasileira.
- Será
mesmo?
- Essa
conversa, pelos anais da Casa Branca, ocorreu dia 20 de julho de 1962.
Pausa.
Suzana:
- Bem
informado, hein, rapaz?
- Notícias
assim, não sei direito como, são diariamente vazadas do serviço de inteligência
do FBI. Nada oficial, claro. Mas, todo jornalista atento aos fatos no Brasil
sabe que os Estados Unidos agiram de forma ativa para derrubar João Goulart da
Presidência, cogitando até mesmo invadir nosso país caso o golpe fracassasse. Como
Jango não ofereceu resistência, os norte-americanos recolheram o imenso
porta-aviões ancorado na costa brasileira, pronto para intervir, caso a tomada enfrentasse
resistência.
- Estou
surpresa, Math!
- Ã-Hã! –
aquiesce o rapaz meneando a cabeça, repetidamente.
Pausa.
Suzana:
- E
agora, o que vai ser do Brito?
- Difícil
dizer. Tudo leva a crer que, depois de submetido aos escabrosos métodos de
tortura, é provável que ele será mais uma vítima do sumiço misterioso nesse
oceano de abusos nos porões da Ditadura.
- Coisa
mais deprimente, Math! – protesta Suzana com a voz enrouquecida.
- O pouco
que a gente sabe é que o Brito foi capturado por milicos da unidade do Comando
de Caça aos Comunistas, o CCC, conhecido como o mais carniceiro. Sua função
básica é manter vigilância absoluta do cotidiano de todos os cidadãos
brasileiros.
- Math,
não é a mesmo pelotão que invadiu o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, durante
a apresentação de Roda Viva, de Chico Buarque, e agrediu seus integrantes?
- Sim.
Peça dirigida por José Celso Martinez.
- Em
julho, não foi?
-
Justamente. Agentes tão arbitrários que, para piorar o serviço sujo, obrigaram
as atrizes do elenco a desfilar nuas num corredor polonês, formado pelos
meganhas.
A mulher
muda de posição na poltrona. Com o olhar pálido de cólera contida, expõe sua
revolta:
- Que
nojo, embrulha o estômago!
- Não é
para menos.
- Isso,
sim, é que é teatro do absurdo. Uma barbárie!
-
Concordo.
- É um artifício
do Exército para tirar de cena os inimigos políticos, principalmente, as trupes
de ‘artivistas’ com suas atuações de protesto e embate no palco.
-
Execrável!
- Não viu
a ‘cana’ em massa de estudantes que participavam do XXX Congresso da UNE
naquele sitio em Ibiúna?
- Fiquei
pasma.
-
Soldados da Força Pública não quiseram nem saber, enquadraram como subversivos
cerca de mil participantes da mobilização estudantil.
- Ai, nem
sei o que dizer.
-
Ditadura é ditadura, querida. Ditadores, de todos os matizes ideológicos - tanto
de esquerda como de direita - são autocratas, absolutistas e, sobretudo, fazem
prevalecer a mordaça sobre a liberdade de expressão.
- Tem
razão.
- Na
verdade, não há ditadura em que o povo não seja subjugado pelo abuso de seus
governantes. Toda ditadura é regida pela sujeira dos maus costumes e,
principalmente, pela força dos canhões que esmagam pessoas e ideias que não se
alinham ao sistema.
- Ã-Hã.
-
Norberto Bobbio acertou na mosca quando disse que se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia.
Penso assim também.
- Sim,
senhor.
O rapaz
em tom crítico:
- Boa
noite para nós todos que vivemos nesse país chamado Brasil. Antes do golpe militar,
folcloricamente, era chamado de ‘república dos papagaios’. Depois, virou
república do ‘pau-de-arara’.
- Ah,
essa é boa!
Sorrindo,
o rapaz pega uma das mãos de Suzana e prende-a com firmeza entre as suas.
Olha-a enternecido. E admite:
- Você
tem uma cabeça-boa, menina.
- Você
também, menino.
* FBN© - 2012 – Esquerda, Volver!.. NUMA NOITE EM 68 -
Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:
revolucionárias Lyudmila Pavlichenko e Capitã Nancy Wake. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/3iii-esquerda-volver.html?zx=b897d903e3ce3d76
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