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Anita Mafalti
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Chanson de Montmartre, óleo sobre tela.
Reclinando-se
na poltrona, Suzana observa em tom divertido:
-
Háháhá... Vou morrer de tanto rir quando você encontrar uma mulher que ponha
fim nessa sua vida de boemia.
- Putz
grila!!!
- Depois
não vai dizer que não lhe avisei. No afã de querer pegar todas que aparecem na
sua frente, um dia, vai se estrepar, viu?
Mathieu
franze a testa.
- Isola.
- Pelo
que se vê por aí, aqueles que fogem do casamento, feito o diabo da cruz, se
amarram mais cedo, traídos pelo próprio destino. Um descuidozinho bumba..., é
um laço só!
- Nem
pense.
- Math,
existe mulher que, quando encarna, é como o capeta. Planeja detalhes, pensa lá
na frente e dá a volta ao mundo para alcançar o que deseja.
- Eu sei.
- Um
carinha como você que se assanha com todas, se bobear, morde a isca com
qualquer uma – avisa Suzana com um risinho de escárnio.
- Morde?
- Depois,
diga que não avisei.
Pausa.
Mathieu:
- Não
caio nessa. Sou gato escaldado, e vacinado.
- Sei
não. Pessoas farristas, como você, passam a vida divertindo e não se dão conta
de que a vida pede mais. Bem mais, viu?
- Bem!
Bem! Não é melhor virar o disco?
A mulher
insiste:
- Viver
só de test-drive com essas fulaninhas
por aí não é garantia de futuro, cara. Não acha que passa da hora de deixar de
rodar às tontas pela noite, tomar juízo e procurar uma moça séria para se casar?
Mathieu
responde com um sorriso maroto no rosto:
- Ainda é
muito cedo, querida. Solteiro, vou me divertindo com as garotas erradas até o
dia em que encontrar a certa para preencher esse vazio.
-
Alpinista! Só ‘pegação’, não é mesmo?
- Tenho
espírito anarquista, não nego.
- Háháhá!
- Nesse
estágio ganho experiência, mantenho a forma física e açodo os estímulos
cerebrais. Falo sério.
- Quer me
convencer de que a rotatividade de parceiras permite ao homem conhecer novas
técnicas para aperfeiçoar o seu desempenho?
- É um
aprendizado.
-
Cuidado, hein? A ciência aponta que gente que se torna
compulsiva por sexo, normalmente, tem grande dificuldade em manter-se em uma
relação estável.
- Papo furado.
- Não
sei.
- O homem nasceu para aprender, aprender tanto
quanto a vida lhe permita, ensina Guimarães Rosa.
- E alma,
como é que fica?
- Como
não creio no mito cristão da vida eterna, só me resta viver da forma que me
satisfaça, desfrutando cada momento presente. Ontem, já foi. O amanhã, ainda
não chegou. Portanto, vamos consagrar a existência, aqui e agora, como a coisa
maior.
Pausa.
Depois de tomar um pouco de cerveja, ela:
-
Mocinho, pelo andar da carruagem tudo indica que vai postergar, ao máximo, o
momento de encarar um relacionamento para valer. Quer mesmo é continuar
curtindo a vida adoidado!
- Iche!
- Tudo
indica. Tudo.
-
Háháhá...
-
Cuidado, hein! O tempo passa, viu?
O rapaz,
após longa sorvida no cigarro:
-
Engraçado que sempre perguntei aos deuses quando vou encontrar minha outra
metade. Sem me levar muito a sério, eles ainda não me responderam. Nesse
ínterim, cada hora fico com uma e estou feliz.
- Olha,
só!
- Não se
preocupe, eu não engano ninguém. No primeiro encontro procuro deixar claro
minha opção pelo amor sem compromisso. Assim, ninguém sofre à toa.
Suzana
com um sorriso contido.
- Pelo
que estou vendo, você não leva nada a sério mesmo!
- Acha?
- Além da
conta.
- Ora,
Suzana, casar não é apenas querer. Depende de muitas coisas.
- Ã-Hã.
- Para
quem é novo na carreira torna-se quase impossível fazer um bom jornalismo e ter
uma vida familiar normal. O salário é pouco, mixaria, apesar de muita ‘ralação’.
- Ô,
Math!
- No
Brasil, poucos jornalistas vivem somente do ofício de escrever. Isso leva a grande
maioria a fazer um ‘bico’ aqui, outro ali para complementar a renda,
principalmente, numa Agência de Propaganda com a triste missão de criar imagens
para enaltecer um determinado produto comercial para induzir o consumidor a
comprá-lo.
- As
agências pagam bem, não?
- Nada
que dê estabilidade. Ainda sou um cara ‘duro’, Suzana.
- Tudo
bem. Mas, isso não o impede de arrumar uma boa mulher para se casar e viver um
grande amor.
- Acha
que não?
- Hoje em
dia quase toda moça trabalha fora.
Mathieu
toma um gole de cerveja. Depois de outra sugada no cigarro, volta os olhos para
ela e brinca:
- Tudo
bem, loira, a hora que você quiser.
- Bobo!
- Ideia
bem surreal, mas excitante. Não?
- Olha
aqui: falo sério.
- Eu
também.
- Arre!
- Sabia
que na Itália o Fascismo, desejoso de braços para ampliar e fortalecer a nação instituiu
um imposto sobre o celibato.
A mulher
surpreende-se:
- Nunca
ouvi falar.
-
Mussolini comparava a humanidade a um pássaro - uma asa representava o homem, a
outra a mulher. Para o ditador, mais do que tudo, o casamento era uma garantia
de reprodução de braços para defender a Itália.
- Tá, tá, tá... Não desvia o assunto.
-
Caracas!
- Seu
xará, em Idade da Razão, de acordo com Sartre, amou a liberdade que tinha até o
momento de decidir pela escolha de uma vida a dois.
- Ah,
sim. Sim. Depois veio todos aqueles dramas internos, a mente baralhada e
indecisa. Lembra?
- É.
- Penso
eu, pensa Sartre. Homens de letras, normalmente, têm por destino o
solteirismo, nutrido por um coração independente. Amar toma mais tempo do que
podemos dispor.
- Ah, é?
- Para criar,
qualquer artista precisa de sossego e certo isolamento. Quando casa, costuma
arrumar problemas para si e para a família.
-
Háháhá...
Depois de
esvaziar o copo de cerveja, Mathieu:
-
Brincadeira, viu?
- Hein?
- Claro
que vou casar um dia e construir uma história de vida familiar. Por isso que,
às vezes, não dispenso um romance com princípio, meio e fim, mesmo sabendo que,
depois, se não der certo, costuma dar uma mão de obra hidrófoba para
desmanchar.
- Conheço
a história.
- Fique
tranquila. Tenho talento para desfazer a fantasia sem deixar traumas. Pode
crer.
- Rei da
embromação!?...
- Menos.
- É pegar
no pé que você dá um jeito de escapulir, não é assim?
- Ando
com curativos coloridos no bolso para consertar um eventual coração partido,
sem deixar sequela – brinca o rapaz, rindo.
- Ó, meu
Deus, olha como ele fala!
- Onde não puderes amar não te demores...
Não é assim que Frida Kahlo aconselha os paqueradores espalhados pelo mundo?
Suzana
lança um olhar irônico ao amigo. E não responde.
-
Querida, olha aqui: como todo cidadão, quero ser feliz ao lado de um grande
amor, curtir afeto pela companheira e muito desejo pela fêmea.
- Difícil de acreditar que você está dizendo
isso.
- A hora do sim é um descuido do não. A
benção, Poetinha, saravá!
- Hummm!
- De
braços dados com alguém a vida adquire outro tom, outro sabor, não é assim?
- Ã-Hã!
- Desejo
casar de papel passado com toda pompa. No Cartório, na Igreja e tudo mais que a
gente tem direito. Trocar votos de fidelidades, jogar pétalas de rosas ou grãos
de arroz para os convidados... Celebração da alegria, uma festa!
- Casamento pode ser uma coisa boa, Math. Mas, para dar certo, terá que brecar
seus instintos de garanhão e encarar a coisa com seriedade, parar de
cafajestagem, entende?
- Evidente.
Essa ideia de colocar um novo habitante no planeta, educado por mim, dando
opiniões e dirigindo automóveis é mesmo muito legal. Coisa que, com certeza,
vai me encher de orgulho.
Suzana
reabre o sorriso.
- Alguma
pretendente em vista?
- Preciso
dizer?
- Não,
claro que não. Perguntei só por perguntar. Desculpe-me.
- Sem
pressa... Sem pressa. Até porque ainda não sou hábil o bastante para escolher
uma pessoa que seja especial para, juntos, criarmos uma história de amor que dê
sentido aos nossos anseios. Portanto, ainda não estou com as malas prontas para
casar.
-
Maravilha.
- Penso
numa jovem adulta que cumpra o protótipo de uma esmerada dona de casa e boa
mãe. Excelente parceira intelectual, obviamente. Acredito que um dia minha
princesinha, pura como Iracema, acaba vindo para gente casar e formar uma
família bacana. Não é mesmo?
Suzana se
mexe na poltrona, rindo alto:
- Está
vendo! Está vendo, cara!
- Vendo o
quê?
- Te peguei!
- Hein?
-
Machista como qualquer outro homem que condena!
Mathieu
arregala os olhos. Ela:
- Na hora
de casar você também deseja correr atrás das mais santinhas. Sei como é. Quer
uma esposa que chega em casa, mesmo cansada do trabalho, com boa disposição
para enfrentar as tarefas domésticas. E ainda se desdobrar em preocupações com
o maridão. Quem diria?
- Ora,
Suzana, falei isso de gozação, não percebeu?
A mulher
leva o dedo indicador da mão direita ao olho esquerdo, dizendo:
- Esse é
irmão desse. Ah, cara, corta essa.
- Juro.
-
Desculpa esfarrapada! Ora, Math, não minta para você mesmo.
- Já
disse: falei de gozação.
- Vem
não, assombração! No amor idealizamos a outra pessoa e nela projetamos a imagem
que possuímos internamente. Isso é vero – ilustra Suzana em tom de deboche.
O rapaz
tenta consertar:
- Há
homens e há homens... Eu não tenho nada preconcebido ou predestinado quanto a
um amor verdadeiro.
- Affe!
- Posso
dizer que serei um esposo para o que der e vier. Olhos nos olhos, companheiro
para viver um amor de verdade, juntos para sempre. No maior grude. E mais:
prontinho para colaborar em tudo, principalmente, dividir as obrigações do lar.
Pausa.
Suzana:
- Ai,
homens, ô raça! Homens são todos iguais: uns folgados.
- Putz!
-
Cuidado, hein! A vida é cheia de surpresas. Te
cuida, rapaz, para não se ferrar amanhã.
- Por isso
mesmo, nessa hora, devo ter a cartilha de Shakespeare sempre ao alcance de
minhas emoções. Nela está escrito, com letras garrafais, que a sabedoria e a
ignorância se transmitem como doenças. Daí a necessidade de saber escolher as
companhias para encontrar uma mulher que vale a pena dividir a vida, levar a
sério. A partir daí a vida encontra um meio para que o amor exista.
- Vixe!
Mathieu
ri, sorrateiramente.
-
Preocupe não. Jogo é jogo, treino é treino. O dia em que topar minha alma
gêmea, serei leal e fiel a ela, ciente de que viver apaixonadamente faz toda a
diferença. E que nosso amor seja infinito enquanto dure. Sonhos de adolescente
que ainda fazem parte de meu imaginário romântico.
- É bom
lembrar que o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções, viu?
- Falo
sério.
- Quero
ver.
-
Brincadeira à parte, mas um dia vou pensar sério nisso. Prometo. Nada de uma
parceira submissa. Pelo contrário. Quero uma mulher com projeto de vida
parecido com o meu para tocarmos uma relação amorosa também assinalada por boa
barganha intelectual. Unidos pela literatura, capisce?
-
Entendo.
- Nunca
me apaixonei de verdade. Acho que tudo tem seu tempo, ‘né?
- Saúde!
– brinca Suzana, oferecendo um brinde.
O rapaz,
ainda sorrindo, estende o braço fazendo tilintar o seu copo, discretamente, no
copo da amiga.
* FBN© - 2012 – Almas Avessas..., NUMA NOITE EM
68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:
Chanson de Montmartre, óleo de Anita Mafalti. Link:
http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/26xxvi-almas-avessas.html?zx=6bc4a451967f521e
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