2011-01-03

24/XXIV – O SOL NAS PAREDES DE UMA BIBLIOTECA.


*

 LOUIS DAGUERRE


Duas Mulheres em Pé, Paris, 1839.
 Primeiro Nu registrado no mundo da fotografia
 
 

SALVADOR DALI
 
 
Playmate after Rokeby Venus, 1966.
Imagem publicada na revista Playboy.



 

Suzana com um sorriso indiscreto:
         - Sabe de uma coisa, Math, confesso que tenho curiosidade de folhear uma revista masculina.
- Sério?
- Quem disse que mulher não gosta de falar de sexo?
- Eu não fui, posso garantir – brinca Mathieu.
- Nunca reuni coragem para tal, acredita?
- ‘Quadrinhos’ ou revistas?
- Qual a diferença?
- Os ‘quadrinhos’ são conhecidos como revistinhas de sacanagem que se ajustam ao erotismo esquizofrênico. Gibis que não são gibis! Aquela baboseira que pinga sexo a cada virada de página. Nem sempre bem desenhados, mas chegam a ser divertidos. Vendem adoidados.
- É?
- Apreciadíssimas por adolescentes na faixa dos 14,15 anos que, no banheiro, estão sempre com uma delas nas mãos. Sabe como é?
- Imagino.
- As revistas, pelo contrário, dentro e fora da Europa adotam uma postura menos agressiva, mas sem perder o foco do estímulo sexual. Além de boas fotos, costumam trazer matéria jornalística de qualidade.
 - Alguma produzida aqui?           
- Revistas somente as importadas. ‘Quadrinhos’ têm edição nacional, em preto e branco, desde os anos 50. Nas Bancas, escondidinhas encontramos também os exemplares desenhados pelo Zéfiro, artista responsável pelo pornô Made in Brazil.
- Legal.
- Historicamente, os primeiros ‘quadrinhos’ chegaram ao Brasil no início do século 18, com a família real. Mais tarde apareceram os ‘dirty comics’, criados por desenhistas norte-americanos e impressos no México, também conhecidos por ‘tijuana bibles’. Depois, foi vez das fotonovelas eróticas suecas, fomentando a explosão da indústria do sexo explícito no planeta. Enfim, diferentes culturas celebrando o sexo cru como grande paixão nos quatro cantos do mundo!
- Entendido do assunto, hein?
- Curto todo tipo de publicação. Meu ofício, esqueceu?
Suzana abaixa a cabeça, em silêncio. O rapaz:
- Ôiiii! O que está pensando aí?
- Nada. É que..., bem..., só por curiosidade tenho mesmo vontade de folhear uma dessas revistas. ‘Quadrinhos’ nem pensar.
- Sim, senhora.
- Ou é perigoso querer?
- Lógico que não.
- Então?
- Vale a pena, rendem bons momentos de entretimento. Impressas em papel nobre, as revistas nos levam ao prazer tátil de abrir suas páginas e se perder nelas. A gente passa de uma folha à outra com os dedos tinindo de prazer.
- Posso imaginar.
- Quer ver Playboy ou Men Only?
- Qualquer uma.
- Estou lendo a Playboy de setembro, pode ser?
Suzana delira com a proposta. Solta um grito de alegria.
- Claro, claro.
- De longe, a mais badalada. Sem falar que é a melhor que traduz as miragens masculinistas do corpo feminino. Domina como nenhuma outra a arte de editar revistas para homens!
- Háháhá!
- Desde seu lançamento com um ensaio de Marilyn Monroe, a presença das divas da telona nas suas páginas, eroticamente, bem fotografadas, é uma constante. Cumpre direitinho seu objetivo editorial de abrir as portas do desejo dos homens com o maior vigor. Por aí.
- Vixe!
- Além de uma jovem beldade em cada número, Playboy traz conteúdo que atrai as mulheres também. Publica contos e matérias sobre os mais variados temas de interesse geral.
- Legal.
- Esse número que vou te passar, por exemplo, traz ensaios fotografados Helmut Newton.
- Helmut Newton?
- Documentarista por excelência. Mostra o corpo exuberante das modelos em atitudes rebeldes, filtrando qualquer lance de pieguice no olhar crítico para a nudez feminina. Fabuloso!
- Top das tops?
Para ele, a base de uma boa fotografia de nu é mais do que um simples registro das qualidades visuais. É, sobre tudo, o poder de transmitir a natureza indefinível, e muitas vezes, ilusória da beleza e da atração sexual da mulher.
- Imagino.
- Vai gostar. Em vez de estúdios, Newton contextualiza a nudez em cenários impactantes. Por exemplo, em ruas marcadas por composições extravagantes, o que torna suas imagens bem mais provocativas, insinuantes. É a sua marca.
Pausa. Suzana admirada:
- Deve rolar muita intimidade entre fotógrafos e modelos, não?
- Não. Não. Profissional de verdade fotografa mulheres de perto, mas nunca se envolve com elas. Nada de amadorismo.
- Santíssima! Imagino que não deve ser fácil arrancar a roupa para um fotógrafo e, depois, ficar dependurada numa banca de revistas.
- Não se preocupe. Diante de um profissional sério, qualquer modelo tira o assunto de letra. Marylin Monroe tinha na arte um dom divino. Com sua deslumbrante beleza distribuída em 1,67 metros de altura, 94 centímetros de busto, 61 de cintura e 89 de quadris, foi a primeira a ser fotografada nua para o Calendário Golden Dreams, em 1952.  Um ano depois, posou para edição número 1 de Playboy, como disse.
- Admiro a coragem e o desprendimento dessas mulheres.
- Eu também.
Suzana, envolvida por uma leve expressão de curiosidade, quis saber quem primeiro registrou uma mulher pelada na história da fotografia.
- Daguerre. O francês Louis Daguerre, inventor do novo processo de reprodução da realidade, o Daguerreotipo – responde o rapaz.
- Não imaginava.
- Ele era pintor. Pensando em substituir o pincel e a tela num cavalete por um processo mecânico, em que empregaria técnicas a partir do uso da luz para gravar no papel a beleza do corpo feminino, Daguerre apresentou em Paris, no ano de 1839, a foto Duas Mulheres em Pé, como nova tendência das artes plásticas.
- Prostitutas?
- Não, modelos profissionais. Marie e Louise posavam para pintores famosos da Belle Époque Francesa; em seus ateliers ou em academias de arte.
Depois tomar um gole de cerveja, Mathieu pergunta:
- E você, Suzana, não mostraria a geometria de suas curvas num ensaio fotográfico?
- Sou um pouco tímida. Jamais conseguiria posar nua.
- De jeito nenhum?
- Nem pensar. Depois, nem altura tenho para tanto – responde a mulher sem titubear.
Risos. O rapaz com malícia:
- Ora, menina, quem disse que precisa ser grande para ser um mulherão?
- Nem pensar. Nem pensar
- A beleza e o sex appeal são qualidades difíceis de definir, mas uma imagem espontânea e descontraída pode ser muito evocativa. Concorda?
- Nunca.
- Pois bem, quer mesmo passar os olhos por uma Playboy?
- Pode trazer.
Mathieu não hesita em se comprometer a emprestar a publicação:
- Claro.
E num tom camarada, pergunta:
- Querida, já ouviu falar em L’ Enfer de la Biliothèque Nationalle, Eros au Secret?
- Nunca.
- Coleção de obras imorais guardada, a sete chaves, na Biblioteca Nacional da França, desde o século 19.
- Nunca ouvi falar.
- Implantada por Napoleão Bonaparte. A intenção foi romper com os limites e divisões das ciências humanas e sociais, dentro de uma das mais importantes bibliotecas do mundo.
- Fala sério?
- Trata-se de uma herança preciosa, que sai do anonimato para ganhar fama de arte do amor sensual, ou a ele relativo. Nada melhor para preservação da memória na França do ‘não sério’, que contempla a história da sexualidade a partir da libidinagem e do riso, tudo aquilo que os discursos hegemônicos deixam de lado.
- Ah, essa é boa! Uma anarcopédia?
- Ã-Hã. Acho até que muitas pessoas se sentem ofendidas. Mas é um trabalho muito fiel ao espírito popular da época. Verdadeiro tesouro da arqueologia pornográfica, tendo o ciúme e o desejo como motor das narrativas. Estão lá publicações que nos contam como viviam moradores da zona periférica de Paris, onde vigorava alegórica depravação como forma de divertimento, maneira de matar o tempo e aliviar o tédio. Uma comédia, talvez.
- Deus me livre! – expressa a professora, atônita.
- Existe de tudo. Pepitas em livros entre as prateleiras, onde até o silêncio exibe cheiro de sexo, abrindo apetite para o leitor degustar parte da libidinagem de um passado histórico. É como se o Marquês de Sade e outros escritores pornôs estivessem dentro de uma loja de bricabraques sexuais a mostrar que o sexo também fica cada vez melhor aos olhos dos viciados nesse empreendimento.
- Vindo de Sade, então...
- Por que diz isso?
- Ele era terrível, perverso. Incontrolável em suas paixões, mantinha um trato erótico senil até com as criadas. Às mais graciosas, o cara pagava para lhes mostrar partes do corpo, como os pés, trechos das coxas, as curvas de um seio e coisas mais.
- Mesmo racionalmente, querida, o desejo muitas vezes se impõe à razão. Freud, Jung e Lacan sempre souberam disso. Niet e Shopenhauer também. Devoramos tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.
- Arre!
Risos. Mathieu faz um gesto teatral.
- Ora, Suzana, cai no real! Todo mundo sabe que um cinquentão venderia a alma pelo amor de uma mulher jovem. Portanto, em meio à convivência com moçoilas que o serviam como empregadas no seu Castelo era tudo que se podia esperar de um homem que pregou, aos quatro cantos, que a medida do amor é amar sem medidas. Agita o coreto!
- Ridículo!
- Hoje, se analisado no divã de um analista, o diagnóstico seria de um homem com a confiança minada pela autoconfiança da deformação, que nunca escondeu uma necessidade obsessiva por mulheres. Por aí.
- Ridículo! – repete Suzana, enervada.
- Bem, o que Sade fazia nas horas livres não é de minha conta, nem da conta de ninguém. Diante da ausência de provas, e de vítimas, esses vacilos podem não passar de boatos.
- Duvido.
- O importante é que Sade produziu textos como se fossem seu diário íntimo, tão recheados de fantasias ultrarrealistas que o leitor enfrenta dificuldades para distinguir a fantasia da realidade. Tão apreciado pelo povão, que o levou a ser reconhecido como escritor de maior expressividade erótica da Europa.
- Grande coisa!
- Mas ele, mesmo sendo um dos maiores escritores do gênero que exploraram com força as quatro letrinhas de sexo, amante dos excessos, também se enraizava no cotidiano. Sade publicou alguns trabalhos que distanciavam um pouco de só fazer apologia à perversidade sexual ou, simplesmente, contar histórias alucinantes.
- Não conheço.
- No livro Justine ou os Infortúnios da Virtude, o escritor espelha o mundo para provocar identificação de sentidos. Trata a concupiscência a partir da reflexão, unindo seus princípios depravados ao universo da Filosofia, onde bem reflete sonhos e anseios da alma feminina. Você já leu?
- Justine ou les Malheurs de la Vertu?! Não, não li.
- Bem mais do que um livro pornô. O texto é brilhante, sofisticado. Como bom e criterioso cínico, Donatien Alphonse François não usou o sexo apenas para diversão. Sua intenção, por mais incrível que pareça, também foi moralizadora no contexto dessa obra.
- Exceção à regra?
- Talvez. Certamente, deu peso extra à produção libertina ao mostrar que desejar o impossível pode ser outro capítulo da beleza feminina.
- Háháhá!
- É a bola da vez, querida. Muitas livrarias no mundo têm colocado Justine em posição de destaque nas vitrines, lugar incomum para obras consideradas obscenas. Alçado à categoria dos bons romances, o livro está entre os, com temática erótica, que ganharam ares de leitura descolada entre o público feminino.
- Abomino. Aposto que sua alma pena no inferno.
Risos. Mathieu:
- Aposto que, se lá está, Sade jaze adorando!
- Argh!
- O Marquês era tão sádico, Suzana, que vivia com um prendedor de gravata, especialmente, moldado para ele. Design brilhante! A peça, produzida por um renomado ourives de Paris, imitava um ramo de ‘hera’ subindo pelo tronco de uma planta.
- Uai, essa planta por quê?
- Menção à sua característica de trepadeira, que cresce abraçada ao caule das árvores.
- Ave Maria!
- Então?
- Ah, Math, mesmo assim, Sade não me faz a cabeça.
- Isso é outra história.
- Pode até ser, mas...
Risos. Mathieu:
- Querida, o importante é que chegou a vez das publicações, voltadas para a pornografia, hospedarem-se na mais célebre casa de livros do planeta. Obras editadas em meados do século 17 e princípio do século 18, imprimindo num ritmo vigoroso, peripécias sexuais de personagens do submundo francês.
- Deus me livre!
- Desde os gregos, romanos e culturas mais remotas ainda, existe no mundo apreciadores da literatura erótica. As pessoas buscam isso para enriquecer suas fantasias, que prometem prazeres sem fim.
- Háháhá!
- Dés à vu na história dessa história. Boa ideia, não?
Depois de um pequeno silêncio, Suzana:
- Devem ser livros do baixo clero das letras, sem eira nem beira. Escritos por autores de quinta categoria, que inventavam historíolas para difamar a sociedade francesa.
- Ô, menina, se tivesse dito isso a Oscar Wilde ele puxaria suas orelhas, dizendo que assim como cada pessoa apresenta um timbre de voz, cada autor é capaz de ser bom ou idiota à sua maneira, porque todo escritor é um grande provocador de sonhos. E completaria: não há livros morais nem imorais. O que há são livros bem escritos ou mal escritos.
- Desculpe-me a arrogância.
Mathieu contrai a testa. E assegura:
- Bons livros levam-nos à reflexão, interatuam e emocionam. Fazem rir, chorar. Principalmente, arrastam a gente ao mundo da fantasia. Enfim, um texto literário, obra de arte que é, tem o direito de ser como é em sua integridade porque, entre o sublime e o baixo-nível, com todos os humores e animosidades do trecho, a distância é bem menor do que parece.
- Claro.
- Não se preocupe. A Biblioteca está cheia de livros eróticos notáveis, escritos por autores de qualidade. Entre eles, boa parte com algum traço da estética barroca, valorizando o erotismo na ficção. Isso mostra um valor literário mais refinado do que mera narrativa de alvoroços libidinosos. Estão ali para armazenar mais uma face da história cultural da França.
- Difícil de acreditar!
- Sério.
- Grande o acervo?
- Cerca de dois mil livros, salvos das fogueiras da Inquisição. Todos ali guardadinhos, cada um com sua história para contar, mostrando que a biblioteca tem a ver com a liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Nada mais democrático, Suzana.
- Santo Deus!
- Durante o período pré-Revolução Francesa, a nobreza também passou a ser alvo de sátiras - sexo e família foram abordados sem pudores. Autores mais abusados descreviam, entre outras coisas, as experiências arriscadas das esposas de aristocratas impotentes, com os empregados da família.
- Olha!
- Esposas sexualmente rejeitadas pelos maridos, resolviam suas carências com algum serviçal da casa. Verdadeiro samba do ‘criolo doido’!
- Vixe!
- Pode acreditar. Ao relatar essas histórias os escribas distorciam os fatos de maneira grosseira, abusando da subjetividade, da ironia, do sarcasmo como convite à esbórnia com cenas abusivas e repugnantes de sexo.
- Chocante!
- É assim que, naquele tempo, ridicularizavam quase tudo através desses impressos, que usavam a metalinguagem para espinafrar até as celebridades. Sobrava para os ocupantes dos três níveis de poder. A estúrdia, em especial, tinha o objetivo de atingir os aduladores e sanguessugas do Estado, expondo suas fraquezas e seus bufos para um público ansioso por notícias dessa natureza. Nem gente graúda com crachá do reino era poupada dessas informações pejorativas, humilhantes e jocosas.
- Muitas vezes inverídicas, não?
- Possivelmente.
- Meu Deus!
- Enfim, nesses suculentos livretos que ofereciam asas à curiosidade, a banalização do sexo era extrema, no olho do mal. Um deles, Os Futuros Uterinos de Maria Antonieta, chega ao ponto de revelar detalhes íntimos da vida da imperatriz. Sem o menor pudor, o autor descreve seus pedaços de vida mais indigestos, alardeados em picantes cenas de alcova.
         - Coitada!
- Na mesma época, outra publicação com o nome de Antonieta e Ses Amis, na maior ousadia temática insinua um romance lésbico dela com uma das damas da corte no Palácio de Versalhes, Mademoiselle Cristiane, mostrando que sexo é como um monstro insaciável, quanto mais você o alimenta mais quer.
- Curuis!
- O acervo de fato é espantoso, desassoalha fatos escabrosos mesmo. Coisa de louco!
- Ai, dá até calafrios, um troço por dentro.
- Nada disso é inverossímil.
- Mas essa lésbica na vida da rainha existiu mesmo?
- Conta a história que se tratava de uma senhorita extremamente feia, tanto que Antonieta chamava-a de ‘querida macaquinha’, mas era dotada de um magnetismo de sedução tão grande que levava suas belas conquistas aos extremos de paixão. Dizem que a sapatão tinha casos com boa parte das mulheres da corte.
- Caramba!
- Graças à Imperatriz, a celebridade mandava e desmanda na corte, vivendo no auge das honrarias, no apogeu de vida. Após a morte de Maria Antonieta, acusada de traição, Mademoiselle Cristiane foi presa, jogada numa masmorra e, após sete anos de cativeiro, sem que seu processo tivesse sido instruído pelo judiciário, foi guilhotinada.
- Documentos comprovam essas histórias?
- Na verdade, os historiadores não se contradizem, também não confirmam os fatos. Eu tenho a impressão de que boa parte dessas histórias pode de ter sido um trabalho puramente imaginativo. O povo é muito criativo, principalmente o francês, não é mesmo?
- Pode ser. Histórias do imaginário popular.
- Para a Biblioteca o importante é preservar as publicações em sua sede, sendo ficção ou não. Funciona como uma grande arca que guarda pequenas joias transgressoras da sociedade francesa em séculos passados.
- Coleção aberta ao público?
- Por enquanto, não. Como se escondesse algo proibido e sagrado, somente acadêmicos com visão totalitária da história têm acesso ao lugar. E com autorização expressa.
- Por que a censura?
- Não sei. Talvez a direção da Biblioteca ache que esse acervo exibe coisas que o povo não está preparado para ver. Mesmo fechado, ele tem algo a dizer, pode crer.
- Talvez.
- O certo é que, agora mais ainda, podemos dizer que, em algum lugar dessa biblioteca, há uma página escrita para cada um de nós, perpetuando também a literatura pornô.
- É.
- Suzana, há mais de um século, desde que o francês Gustave Coubert pintou seu quadro A Origem do Mundo, um retrato realista da genitália feminina que você já viu no Louvre, artistas franceses erguem a bandeira do ‘encare e aceite’ a vida como ela é. Mesmo assim, ainda hoje, a representação realista do sexo na arte encontra restrição, não é bem-vinda.
- Talvez.
- Suponho que, no futuro, esse tesouro erótico seja disponibilizado ao povo, até porque livro na prateleira esquecido é ração para as traças.
- Não posso acreditar que tem gente interessada nesse tipo de leitura. Mas, como há gosto para tudo...
- Ora, Suzana, devemos ter menos preconceito com relação ao sexo e mais abertura para o erotismo. Hábito que, sem dúvida, estimula o poder do pensamento.
- Arre!
- Defende a ideia a escritora Anais Nin, dizendo que o erotismo é uma das bases do conhecimento de nós próprios, tão indispensável como a poesia.
Pausa. Suzana:
- Não tem jeito, o ser humano é absurdamente sexista.
- Até eu, seduzido pelo tema, lancei uma revista de nus no Brasil. A censura proibiu a circulação por considerá-la provocadora.
- Qual o nome?
- Nus. Pelo menos creio que foi uma das primeiras experiências em lançar nas bancas uma revista masculina, genuinamente, brasileira.
- Nu artístico ou erótico?
Mathieu ri com malícia.
- Artístico, sim senhora. Longe de querer colocar a nudez como símbolo libertário, minha revista exibe novas versões do nu, distantes do sentido erótico.
- Reticências!
- Na capa, a silhueta de uma singela mulher brasileira.
- Sem jogo de cena, Math. Conta outra.
- Juro. Posso mostrar a você um exemplar.
- Quero ver, mocinho.
- Quando quiser.
Suzana, revirando os cabelos.
- Eu tenho curvas e sempre vou ter. Mas, fique sabendo que não toparia posar nua de jeito nenhum para uma revista masculina, nem que a vaca tussa. Só de saber que a intenção é excitar alguém eu me bloqueio, não conseguiria.
- Fique tranquila. Não vou convidá-la para modelo na minha revista.
- Tolice da minha parte?
O rapaz responde com outra pergunta:
- Repetindo a pergunta de Freud: o que querem as mulheres?
- Parem de perguntar o que uma mulher quer? Claro que não podemos responder. Somos feitas de segredos, tudo se esconde: os sonhos, o umbigo, as axilas, a vagina... Que graça teria abrir o jogo assim?
- Caramba!
- Ora bolas, por que desejaríamos ser claras? Por fim ao mistério?
- Talvez.
- Um homem precisa ter habilidades para intuir, descobrir aos poucos os desejos de uma mulher. Adivinhar. Queremos ser decifradas pelas mãos e pela boca dos homens, sem contrariar o ponto ‘G’ da alma, claro. É o melhor jeito para conquistar nossa intimidade.
Pausa. Mathieu:
- Desde o começo dos tempos os homens tentam desvendar o mistério feminino e, sem sucesso. Os poucos que atravessaram seus portões só conseguiram explicar e transmitir as coordenadas de sua travessia através de um personagem astucioso como Don Juan.
- Talvez. Mas, posso dizer que Edmund Freud, com notável coragem e conhecimento, incursionou no misterioso universo feminino e nos revelou detalhes deles, sem dúvidas. Mas, isso aconteceu numa época em que as mulheres não podiam muita coisa, concorda? Hoje em dia, acho que seria muito mais válido perguntar o que, afinal, querem os homens.
- Tem razão.
- Mais importante do que saber o que queremos é a gente mesma descobrir o que almejamos, além de chocolate e homens que não mentem.
- Louvável. Caso que, até Freud amargou certa frustração ao partir desse mundo, sem nunca ter entendido completamente a cabeça do gênero feminino.
Risos. Suzana, em silêncio, acende outro cigarro e começa a fumar, distraidamente.




* FBN© - 2012 – O Sol nas Paredes de uma Biblioteca..., NUMA  NOITE  EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: Playmate after Rokeby Venus", de Salvador Dali, 1966. Publicada na revista Playboy. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/25xxiv-o-sol-nas-paredes-de-uma.html

 

 

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