2011-01-03

01/I - ENCONTRO MARCADO



*

Chanina Luwisz Szejnbejn

 Artista sombrio sem  abandonar as cores vivas. 
Neste quadro a firmeza do traço e o voo poético da cor marcam a unidade emocional
que transparece em figura de proporções, propositadamente, desconformes.

 


Sábado, 14 de dezembro, 1968. No dia da partida para Fortaleza, Mathieu acompanha José Renato até o Aeroporto da Pampulha. Na volta, passa rápido pelo pensionato onde vivia num quartinho, pega uma muda de roupa e segue direto para o apartamento do amigo. Pouco depois das nove horas da noite, desce do elevador do Edifício Solar, que o levou ao 10º andar. Depressa, ele vira à direita e caminha até a porta do apartamento anunciado. Toca a campainha e logo Suzana aparece, rindo.
- Heloooou! Olha ele aí!
- Boa noite, Suzana.
Trocam beijos nas faces, festivamente.
- Atrasado, ‘né?
- Não se preocupe, Math. Chegou na hora certa.
- Nada britânico, reconheço. Em mim, a pontualidade nunca foi um vício.
- Que importância tem isso?
- É.
- Agora, entre que a casa é sua. Entre e fique à vontade.
- Com sua licença.
- Sinta-se em casa – repete lentamente a mulher.
- Obrigado.
- Quer saber, nem vi o tempo passar, estava lendo.
- Ótimo. Ótimo. E aí, beleza? Tudo nos ‘trinques’?
- More or less.
- Mais para mais?
- Hummmm! Tentando, tentando.
- Muito bem.
Suzana enlaça o rapaz pela cintura, dizendo:
- Sem cerimônia, vamos.
A sala de visitas estava vazia. Ao entrar, a mulher acende as luzes do recinto, dá volta à chave na fechadura e tranca a porta do apartamento. Mathieu, com os braços ao longo da cintura, e uma das mãos brincando com um chaveiro, atravessa o hall e se acomoda no vasto sofá, bem em frente a duas poltronas e uma mesinha de centro - sobre ela, com ar solene, descansava uma estátua de Safo de Lesbos e alguns livros de arte empilhados. No teto, doze lâmpadas elétricas. Mas só duas estavam acesas, uma iluminando o jogo de sofás, outra a mesa de jantar, criando aconchego ao ambiente. Das janelas pendiam cortinas de voal bege, bastante sóbrias e, nos parapeitos descansavam jardineiras com flores naturais, para enfeitar e garantir atmosfera agradável aos ambientes da casa.
- Lindo seu apartamento! – avalia o amigo, com o rosto virado para Suzana.
- Acha?
- Sua cara.
- Não, não é. Mais, muito mais a do José Renato.
- É?
- Isso mesmo. Para não deixar dúvidas sobre quem manda no pedaço – ressalva Suzana.
O rapaz desconcerta-se. Faz um gesto amplo e sacode a cabeça. Em seguida olha para a amiga, mas logo desvia o olhar para a escultura na sua frente.
- Belíssima peça! – analisa.
E acrescenta:
- Como é distinta! Que ar inteligente! Parece viva, não é mesmo?
Suzana, já enrodilhada na poltrona, puxa algumas almofadas para junto de si.
- Também gosto. Do escultor Claude Ramsey. Clone, claro. O original dessa obra de arte genial está no Musée de Louvre.
Houve um momento de silêncio e êxtase. Depois, o rapaz toca a escultura com uma das mãos.
- Mostra a força erótica no mármore, parece até que vai se mexer! Seios incríveis..., tudo perfeito.
         - Ã-Hã.
- Safo viveu na cidade de Lesbos, Grécia Antiga, entre os séculos VII e VI antes de Cristo. Além de bela era poeta e ativista. Seus poemas sobre o amor sexual, o amor emocional e o platônico entre ela e outras mulheres cunharam o termo lesbianismo, como sinônimo de homossexualismo feminino.
- Eu sei.
- Safo de Lesbos é considerada a primeira mulher que lutou por direitos iguais entre os humanos – alude o rapaz.
- Sério?
- Sim.
- José Renato admira estatuetas. Vestígios do passado. O pai era colecionador apaixonado e, nessa convivência tomou gosto pela arte, memória do afeto – explica a mulher com as faces entre as mãos.
- Também admiro.
Suzana aponta outra peça no canto da sala, fazendo companhia à estante de livros:
- Anjo justiceiro Michael. Conhece?
- Sim.
- O olhar dele contempla o horizonte. Nos pés, segura o mal. Nas mãos sustenta a balança da Justiça. Sobra intensidade magnética, não?
- Magnifica! Percepção vigorosa, que só a arte pode revelar.
- Muito legal. Adoro.
Mathieu respira fundo. E ressalta:
 - Vejo nas estátuas inquestionáveis e primorosas testemunhas de um tempo de glória, repletos de recordações.
 - Sem dúvida.
O rapaz, descansando o rosto numa das mãos, começa a observar o outro ambiente do salão. Nele, havia uma imensa mesa retangular, forrada por uma toalha azul claro de linho. Sobre ela uma cesta de frutas, uma garrafa térmica de café e um aparelho de telefone escuro. Nas paredes, cobertas por quadros com molduras variadas, destacava a pintura de uma mulher com uma pomba na mão.
- Você, não é?
- Sim. Óleo sobre tela, pintado pelo Chanina.
- Fascinante!
- O quadro ou a modelo? – brinca Suzana, rindo.
- Ambos. Ambos. Você, como sempre, divina. Do pintor, gosto muito.
- De inegável originalidade pictórica, concorda?
- Indiscutível. Chanina, com estilo sóbrio e atento à luminosa plasticidade da figura humana, captou de forma admirável a expressão inteligente e bela do seu rosto, angelical. Um gênio!
- Angelical?
- Sim. Com esse jogo de verdes, ocres e azuis, revela os traços delicados de sua beleza externa e interna. Mais do que despir o corpo de seus personagens com traços virtuosos, sua obra oferece traduções importantes da vida interior da pessoa retratada, como se tivesse também emoldurando o seu pensamento. Chanina é mesmo um grande retratista! 
- Hummm!
- O impressionismo, com suas pinceladas da liberdade, influenciou Chanina a guiar-se pela imaginação, inventando sinais enigmáticos e formas fantásticas que encantam pela alegria e exuberância. Veja lá o destaque da pomba na composição, pintada com suaves manchas, faz do pássaro incontestável símbolo do afeto, fala por si. Dá leveza.
- Olha!
- Posso dizer que o artista conseguiu fundir nesse quadro o amor pela forma, o uso generoso da cor e o sentimento típico dos românticos ao retratar a paisagem da memória afetiva. Parabéns!
A mulher balança a cabeça, concordando. Mathieu:
- Querida, sabia que desde os tempos remotos é moda enfeitar a parede da sala principal de casa com o próprio retrato?
- Que nos diga José Renato – abona a mulher, apontando a mão para outra parede.
Mathieu vira o rosto e observa três telas que reproduziam o retrato de José Renato. Uma delas assinada pelo pintor Inimá, com seu apetite para alternar cores quentes e vivas, seguindo a gama de tonalidades complementares. Outra de Chanina.  A terceira de Herculano, mostrada em contornos mais definidos, divididos em prismas que assumem um aspecto mais Cubista. Três espelhos de leituras particulares.
A mulher acompanha o interesse do amigo pelas obras de arte de sua casa. Em silêncio, e bem à vontade na poltrona, ela acende um cigarro e oferece outro ao amigo:
- Sou fumante de cigarros com sabor. Incomoda?
- Nem um pouco – afirma o rapaz ainda com os olhos fixos na parede coberta de quadros dependurados.
- Está a fim de um cigarrinho incrementado?
- Bem...
- Já que não se aborrece o ‘fumacê’ odorífero, experimente um.
- Hummm!
- Os mentolados ou de cravo, são meus preferidos. Deliciosos. Além de fracos, a carteira é bonita.
- É fumo. Tem nicotina do mesmo jeito.
Suzana tenta justificar:
- Nem tragar direito eu trago.
- Mesmo numa relação eventual com o cigarro, você pode ser tragada pelo vício. A ciência está ai, cada dia mais, condenando o tabagismo. Tenta provar que é suicídio a longo prazo. Acompanho as pesquisas.
- Mesmo assim, o meu amigo fuma – adverte a mulher.
- Droga do diabo! Dá muito prazer, não dá?
Pausa. Suzana assegura:
- Por isso mesmo é raro ouvir alguém falando em abandonar o tabaco.
- Pior que é.
- Ai existe um pouco de glamorização, copiada do cinema.
- Talvez.
- Conheço pessoas que pararam de fumar substituindo o hábito por mascar chicletes, ou chupando balas de hortelã. Mas, com muita força de vontade, claro.
- É mais fácil substituir uma compulsão por outra. Ou uma dependência por outra – pondera o rapaz.
- Aceita ou não um cigarro com sabor?
- Aceito.
Suzana estende a mão e passa-lhe o maço.
- Se gostar pode ficar com a carteira. Tenho outra.
- Presente?
- Não é bem um presente, uma cortesia.
- Obrigado.
O rapaz cheira o fumo, antes de acender o cigarro. Depois de uma tragada, lenta e meticulosa, recosta-se na poltrona, justificando:
- Não tem jeito, numa boa conversa ele é sempre bem-vindo.
- E como é!
- Sem falar que é um ótimo tema para puxar assunto, principalmente, com uma senhora que tem traquejo social e que deve adorar uma boa prosa.
Depois de um gesto vago, Suzana aquiesce com a cabeça, ressaltando:
- Então vamos ter um papo muito animado. Falo muito, como todas as mulheres.
- Não fico atrás, também curto um bate papo. Ah, ia me esquecendo, trouxe uma lembrança para você.
- Para mim! O quê?
- Um livro.
- Oh, quanta gentileza! É o que mais gosto de ganhar.
- Imaginei.
- Obrigada.
- Penso que você é como eu, vacinada pelos livros.
- Desde menina.
Mathieu tira da bolsa a obra embrulhada para presente e oferece a ela:
- A Bela do Senhor, de Albert Cohen.
- Olha!
- Fiquei na dúvida entre dois lançamentos. Esse aqui, ou Orgia, de Túlio Carella.
- Acertou com Cohen. Numa outra oportunidade, eu leio os diários eróticos do escritor argentino, mestre do auto ficção.
- Ainda bem. Não sou de ir nessa mania do mundo literário de comprar livros porque todos estão comprando. Nada disso.
- Ã-Hã.
- Cohen emociona pelo lirismo e por sua apurada linguagem. O livro documenta a felicidade do encontro de Solal e Ariane que vivem uma aventura de fusão absoluta.
- Interessante!
Suzana abre o livro e lê a dedicatória com um trecho de Drummond: há um prazer sutil em confiar a mãos e olhos femininos um livro que nos comoveu ou fez pensar. Em seguida, ela agradece sorrindo:
- Rapaz cortês, gratíssima!
Mathieu acaricia-lhe a mão, dizendo:
- Há livros que parecem bons, mas não têm alma. Esse de Albert é bom e apresenta alma, elementos que dão a chave do livro. Pode crer. Narra uma comovente história de amor.
- Legal.
Depois de uma sorvida no cigarro mentolado, rapaz exclama:
- Calorão, hein?
- Escaldante!  O ar de verão me faz bem, mas, santo Deus, como está quente!  Sinto-me afogueada, um sacrifício e tanto, não?
- Insuportável.
- Calor do qual todo mundo está reclamando. Nenhum sinal de chuva no céu. Quase dez horas da noite e o ar ainda está bastante quente, nem vento soprando. Pelo que escutei na rádio os termômetros registraram 31 graus durante o dia. Sentiu?
- Andando pelas calçadas parecia maior, mesmo à sombra. Esse clima, às vezes, é muito ingrato – reclama o rapaz.
- Que tal um um copo de água fresca?
- Boa pedida. Depois um café, se tiver na garrafa térmica, para fazer boca de pito.
- Tudo bem. Vou pegar.
Suzana deixa a poltrona, caminha até a mesa de jantar, enche um copo de água e uma xícara de café e oferece ao amigo.
- Ainda está fria, toma.
O moço agradece e bebe a água num só gole. Depois, o café.
- Bom seu café. Muito bom.
A amiga sorri agradecida. E ressalta:
- Pelo que vejo gostou muito da pinacoteca do Zé.
- Muito. De peso, só de craques.
- Temos ainda uma cabeça de Cristo com sua assinatura. Recorda do quadro?
- Presente que fiz ao José Renato.
- Está numa das paredes do quarto de hóspede, mostrando que é um rapaz extremamente talentoso.
- Chique.
- E, em um porta-retratos, eu guardo meu perfil desenhado por você num guardanapo de papel, feito à beira da piscina do Minas Tênis, lembra?
          - Como se fosse hoje.
- Onde, aliás, você fazia a maior ‘média’ com as garotas, retratando todas que caiam nas suas artimanhas. Continua assim?
- Desenho para me divertir. Mas não posso negar que é uma boa maneira de comunicar com elas e estreitar relações.
- Suponho.
- Pode crer.
- Suponho que não é apenas como quem viaja em devaneios, mas como quem vai para uma boa colheita.
Risos. Mathieu:
- Acha que faço como Picasso quando viu na rua, pela primeira vez, a jovem Marie-Thérèse?
- Como assim?
- Encantado com a garota, abordou-a e disse: você tem um rosto interessante. Gostaria de fazer seu retrato.
- Exatamente.
- A arte é um dos meios que une as pessoas, já dizia Platão. É como o vinho, traz em si um bom motivo para fazer amigos. Cultura 360°, querida, cuja função é tocar as pessoas.
- Hummmmmm!
- Assim é a filosofia, a ciência e a religião. Veja na arte uma tentativa de dar maior sentido à existência, porque uma vida sem arte é uma vida menos interessante. Sabe disso, ´ne?  Eu não quero, alguma vez na vida, ter que lamentar oportunidades perdidas de ter feito arte.
- Espertinho.
Risos. Mathieu:
- Gosto do poder que a imagem exerce sobre as mulheres, mesmo sendo um desenho rabiscado sem maiores intenções.
- Duvideodó! Começa com a arte, e logo a mocinha acaba em seus braços – agulha Suzana.
- Putz!
- Faz parte do show, não é assim?
- Talvez. Pela lei da física, toda ação gera uma reação.
- Ã-Hã.
- Desde que se tenha liberdade para criação, nós podemos fazer de um simples desenho o silêncio que revela todas as palavras que se quer dizer.
- Nossa!
- Na verdade, diante de uma bela fêmea, eu quero mesmo é expressar meu desejo de felicidade. Sou um humanista secular. E, para o humanismo funcionar, você precisa oferecer alguma coisa em troca. Eu ofereço arte.
- Ã-Hã!
Pausa. O rapaz sorrindo:
- Cadê o guardanapo com o desenho?
- Está sobre um móvel lá no meu quarto, guardo com o maior carinho.
- Bom saber.
A mulher, depois de um olhar comprido para ele:
- Ô, cara, você tem a ‘manha’ para desenhar. Desenha legal.
- Ainda sou um estagiário com escasso domínio da técnica pictórica, pinto por recreação mesmo. Um dia viro pintor e retrato você de verdade.
- Jura?
- Prometo.
- Promessa é dívida, viu?
- Vou pagar.
- Êba! Fica me devendo essa.
- Claro.
- Pinta sempre, Math? – interessa Suzana.
- Às vezes fico um tempo distante do cavalete. Como a arte figurativa está dentro da gente, alguma coisa que fala mais alto, acabo voltando a pintar. Sinto que preciso pintar como alguém precisa comer ou beber. Juntar para dividir.
- Talento é coisa nata, nasce com a gente. Sei como é.
- Talvez. Arte é outra linguagem, ajuda a gente a ampliar a visão do mundo. Einstein acertou em cheio quando disse que um dos motivos mais poderosos que conduzem o homem em direção à arte e à ciência é o de escapar do cotidiano.
- Maravilha!
- Assim foi comigo desde a adolescência, quando vivia rabiscando personagens em meus cadernos de escola para fugir um pouco dos deveres escolares, crente de que a vida deveria ter a cor que a gente pinta.
- Quem sabe?
- Sempre fui inclinado a retratar o corpo feminino. Enche-me de alegria.
- Háháhá... Não poderia ser diferente.
- Na verdade, para todos que alimentamos alguma veleidade artística, o tema favorito sempre consagrou a figura feminina. Nua ou não a mulher inspira a alma de qualquer artista. Basta ver que, desde a aurora da arte, a beleza da fêmea tem sido assunto instigante para as palavras, os entalhes e os pinceis. E, a partir do século XIX, para as lentes de uma câmara fotográfica.
- Claro. Claro.
- Nós amamos as mulheres. Basta observar que, dos motes preferidos pelos grandes pintores, uma mulher expressiva é, de longe, o mais caracterizado.
- Sem dúvida.
- De qualquer forma, a ideia é mostrar o corpo feminino de diversos pontos de vista, mesmo quando o nu é retratado apenas como dicção figurada, sem dimensão erótica.
Suzana, depois de mudar de posição na poltrona:
- Ah, sim. Durante uma viagem a Paris tive oportunidade de admirar no Louvre, sem o menor desconforto, dezenas de mulheres nuas expostas. Inclusive o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Coubert, que retratou o órgão genital feminino em close. A imagem é fantástica, mostrando a realidade de forma simples e poderosa.
- Incontestavelmente. O artista francês mostra que atacava suas telas com duas armas preciosas: excelência técnica e vigor emocional. A obra é muito objetiva, não qualifica, nem adjetiva coisa alguma. Arte de gente grande. Impactante, linda de ver.
- Alguns visitantes, em viagens surpreendentes pelas cores e imagens do museu, passam rápido tentando disfarçar o inesperado constrangimento. Outros ficam estáticos por alguns minutos frente ao quadro, emocionalmente admirados. Com certeza a obra leva todos a refletir.
- Claro – anui o rapaz.
- O belo, como a verdade, está ligado ao tempo em que se vive e ao indivíduo que está pronto para compreendê-lo. É o que está escrito, pelo próprio autor, no folheto que fala sobre a obra – lembra a mulher.
- Correto.
- O interessante é que a obra também despertava muitos olhinhos curiosos de meninas e meninos ao meu lado, que olhavam aquilo com grande admiração, sem risinhos. Tudo como numa sala de aula, assistindo aula de biologia, longe de inspirar desejos carnais.
- A cultura europeia é outra. Uma coisa é você ver uma tela no catálogo ou num impresso qualquer, outra coisa é ver o original numa exposição pública. A emoção é diferente, até para a criançada.
- Certamente.
- Na Europa, desde cedo as pessoas são educadas para ver e sentir as grandes obras nos museus, sejam elas qual for. A arte não pode ter barreiras.
- Claro que não...
Pausa. Mathieu, depois de uma tragada no cigarro:
- Querida, no universo das artes, existem admiráveis obras feitas com cena de nudez, criadas para dizer que a origem do mundo não está em Adão e Eva, mas numa vagina nua e crua. O quadro de Coubert, ilustra essa verdade e ganha significado porque fala com força ao nosso mundo interior. Com todas as gamas de matizes, a arte leva o ser humano a entender melhor a vida.
Suzana tranca o sorriso, discordando:
- Não é bem assim. Deus...
- A partir do cristianismo que o sexo passou a ser visto como sujo e pecaminoso. A mulher, coitada, taxada como um ser maligno passou a carregar a culpa de tudo. Tanto que, na vida real, era comum ter o ventre envolvido por um acessório para tapar sua genitália, trancado ao redor da cintura de modo a frustrar qualquer atividade sexual.
- Cinto da castidade?
- Coisa de louco! Imperdoável mal entendido criado pelos deuses, que perseguiam o órgão feminino como um mito da perdição masculina.
Pausa. Suzana abismada:
- Nossa! Deveria ser bem desconfortável viver com essa tranca de cadeia no meio das pernas, não?
- Assim era a lei ditada aos religiosos mais radicais. Totalmente desumana.
- Difícil até de imaginar.
- Por outro lado, tinham aquelas que usavam os cintos de forma espontânea para se protegerem. Evitar estrupo e, consequentemente, doenças venéreas.
- Caramba!
Depois beber mais um pouco de cerveja, Mathieu:
- Realizo-me nas duas vertentes. Mas, sinto mais à vontade na literatura que me dá a expressão maior - só sei viver escrevendo.
- Ã-Hã.
- Na verdade, em qualquer suporte, exteriorizamos o que existe por dentro.  Arte é movimento. É como se fosse um voo da imaginação que aterrissa na alma, portanto, nosso verdadeiro dever é salvar nossos sonhos, já dizia Modigliani que ensinou-me o amor às formas e volumes, fez-me concentrar no desenho que surge de seus pinceis. Adoro a obra de Modigliani.
- Eu também.
- Enfim, ao recriar a realidade por meio de sua visão particular num cavalete ou numa máquina de escrever, o artista consegue vencer o tempo. É só alegria.
- Eu não tenho esse dom, mas admiro muito quem tem.
- Admirar a arte é outro dom. Um dom especial, pode crer.
Depois de uma longa golfada de fumaça, Suzana:
- Quer saber, Math, fiquei mais sossegada quando o Zé disse que vinha passar esse fim de semana aqui em casa.
- Jamais recusaria, somos amigos.
- Rapazes têm coisas melhores para curtir num sábado à noite, não?
- Bobinha! Estou aqui para fazer e ter a sua companhia. Existe programa melhor?
- Espero que não.
Mathieu abre um leve sorriso de intimidade, lança os braços em volta do próprio corpo, acariciando-se. E pede:
- Quero outro copo d’água, pode ser?
 
 

 

* FBN© - 2012 – Encontro Marcado..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  aquarela da pintor Chanina – Belo Horizonte/BR.  Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/2ii-encontro-marcado.html

 

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