*
Marc-Chagall
Suzana
muda de posição na poltrona. Bota os pés descalços no chão, um pouco separados,
contrai os olhos e esvazia o copo de cerveja. O rapaz observa com olhar de
preocupação:
- Que carinha
triste é essa, menina?
- Ah!
- Mudou
de repente, o que foi?
- Estou
pensando, pensando.
- Em quê?
- Toparia
sair com qualquer garota que chega e se oferece?
- Eu?
- Sim,
você.
Mathieu
olha para ela e morde os lábios.
-
Qualquer uma, não. Prefiro aquelas com acentuado traço de inteligência. Se for
ativista política melhor ainda.
- Háháhá!
- Sério.
Tenho excitação por sentir, em carne e osso, o fundo da alma de uma mulher que
põe seu rosto e sua voz na rua para brigar por uma causa política. Combatente,
audaz...
-
Doideira!
- É irresistível.
Talvez reconheça nela o espírito aventureiro que trago dentro de mim.
Suzana
sorri de novo:
-
Caramba!
- A ideia
ficcional de ver uma fêmea construir um personagem bélico me agrada, infla o
ego. O quadro Liberdade, de Delacroix me excita ‘pra caramba’, acredita?
- Deixa
de ser bobo, cara.
-
Brincadeira, viu?
- Só
pode.
- Mas
comigo, se não pintar afinidades intelectuais, dentro ou fora dos jogos
românticos, pulo fora antes de entrar. Hoje, sei do que gosto e do que não me
agrada.
- Conta
outra.
- Do
jeito que é obcecado por rabo de saia, qualquer uma é um convite ao teste-drive. A que aparecer...
- Nada
disso, minha parada é outra, Suzana. Valorizo as garotas de bom papo, com
essência, espírito sensível e aura cult.
São menos ansiosas, outro nível. Sacou?
- Háháhá!
- O saber
deve andar sempre com o humano, seduz mais. Intelligence
is sexy. Saber ler. Saber falar. Saber escrever. Saber caminhar. Saber ver
o mundo. Saber aprofundar seu conhecimento sobre a vida.
- Tem
razão.
- Suzana, mulher inteligente deixa boas marcos
no corpo e na alma dos homens que passam pela sua vida. Dobra a emoção, pode
crer.
- Hummm!
- Verdade.
Inteligência na parceira vale tanto quanto um corpinho sarado. Quanto mais se
desfruta, mais descobre maravilhosa a sua alma. Estou sempre em cima desse
lance, capisce?
- Ah,
essa é boa!
- Mulher
nesse estilo é o máximo, conduz a conversa com mais leveza, fluindo de maneira
bacana. É gente inspirando gente! Quando encontro uma de tal modo, tibum!...,
mergulho de cabeça e ponho a pedra para rolar com aquele fogo todo. Ai, sim,
vale a pena beijar, agarrar, abraçar.
- Saliente!
Assanhado!
- O
psicanalista Jacques Lacan defende que o superego
é uma ordem irresistível e imperiosa que nos manda gozar.
- Háháhá!
- E se a
gata for nutrida pelo discurso antimatrimônio, seduz mais ainda. No momento de
entrega, ela pensa com o corpo e transa de maneira mais animada. O que é muito
bom, apimenta o jogo. Tudo como se fosse uma declaração libertária para tocar o
desejo do macho com precisão matemática. É vapt vupt!!!...
- Bobão!
Risos.
Mathieu, em tom mordaz:
- Meu
signo é peixe. A astrologia assegura que o pisciano tende à fuga quando sofre,
valoriza o todo em vez da parte. Por isso mesmo esnobo as burrinhas. Evito, porque
ali só tem aventuras.
- Será?
- Meu
lance vai além do sexo, não é só tirar a roupa e seguir em frente. Èrectione, na minha cartilha não é
obrigação, é merecimento. Só deito com uma mulher quando dá liga – assegura o
rapaz.
E conclui
com o fulgor de um risinho vitorioso:
- Quer
saber, querida? Eu não saio para curtir a noite com uma companheira que não
quer mudar o mundo, que não tem ideal num planeta cada vez mais sintonizado com
a ideia de aprimorar os conceitos da existência humana. Isso vai além da
substância sexual, certo?
Depois de
uma tragada no cigarro, Suzana:
- Sei
não, mas me fez lembrar de uma frase Mark Twain. Nada muito a ver, mas tem...
- Qual?
- Nunca discuta com pessoas mais burras, elas
vão te arrastar ao nível delas e ganhar de você por ter mais experiência em ser
ignorante.
Risos.
Mathieu:
- Por ai.
Pessoas incultas embaraçam qualquer relacionamento. Mal sabem distinguir o pão
de um tijolo, o tijolo da areia ou a areia de um montinho de terra.
- Quer
dizer o que com isso?
- Sexo
com elas seria apenas sexo, o que não me convence. Sinal vermelho.
Suzana
balança a cabeça, curiosa:
- E
quando pinta uma frígida no ‘pedaço’?
- Não
existe mulher fria. Existem machos que entendem mal a alma feminina.
-
Não?
- Numa
relação entre homem e mulher, o parceiro também deve trabalhar sua porção
feminina. Oferecer muito carinho, ser mais terno e menos animal. Antes e
depois. Conexão total, entende?
- Claro.
Claro.
- O homem
que não se compõe com a mulher que existe dentro dele, não é capaz fazer
circular as energias que tornam a sexualidade completa. Em tudo há uma
sintonia..., inclusive.
-
Concordo, inteiramente – reforça Suzana. - De um modo geral, toda mulher espera
isso mesmo do parceiro.
- Até
porque quem gosta de brutalidade, nesse momento de afeto, só pode ser outro
homem, mais comprometido com a agressividade do que com o amor, não?
Suzana ri
meio acanhada.
- Então,
meu amigo, não tolera as burrinhas? Mesmo aquelas com a cintura de violão que
rebolam por aí?
- Pouco
convencionais. Quando abrem a boca para falar, mostram que a beleza não vai
além de suas alegres feições.
- Será?
-
Criatura, eu não tenho a menor aptidão para irmã Dulce, nem para madre Tereza
de Calcutá, que vivem de fazer caridade. Muito menos sou candidato ao prêmio
Nobel da Paz.
- Vixe!
- Mulher
intelectualizada guarda em si características distintas e, por isso, são mais
atraentes. Politizadas e seguras de si, derrapam menos nas curvas arriscadas do
amor. Concorda?
- Vou
fingir que acredito.
- Ora...
Esse mesmo raciocínio explica porque países europeus, marcados por uma
sociedade pós-moderna, as mulheres inteligentes são as mais disputadas. Sabia
disso?
Suzana
não responde. Bebe uma golada de cerveja, puxa uma tragada no cigarro e ajeita
no rosto um risinho, levemente, indiscreto.
* FBN© - 2012 – Anos Dourados..., NUMA NOITE EM
68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto.
Iustr.: Le Dimanche’, de Marc-Chagall – 1954 – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/20xix-anos-dourados.html?zx=407a623a5d12be32
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