2011-01-03

19/XIX - ANOS DOURADOS


*
 
Marc-Chagall
 
                                                       Le Dimanche, óleo sobre tela,1954 






Suzana muda de posição na poltrona. Bota os pés descalços no chão, um pouco separados, contrai os olhos e esvazia o copo de cerveja. O rapaz observa com olhar de preocupação:
- Que carinha triste é essa, menina?
- Ah!
- Mudou de repente, o que foi?
- Estou pensando, pensando.
- Em quê?
- Toparia sair com qualquer garota que chega e se oferece?
- Eu?
- Sim, você.
Mathieu olha para ela e morde os lábios.
- Qualquer uma, não. Prefiro aquelas com acentuado traço de inteligência. Se for ativista política melhor ainda.
- Háháhá!
- Sério. Tenho excitação por sentir, em carne e osso, o fundo da alma de uma mulher que põe seu rosto e sua voz na rua para brigar por uma causa política. Combatente, audaz...
- Doideira!
- É irresistível. Talvez reconheça nela o espírito aventureiro que trago dentro de mim. 
Suzana sorri de novo:
- Caramba!
- A ideia ficcional de ver uma fêmea construir um personagem bélico me agrada, infla o ego. O quadro Liberdade, de Delacroix me excita ‘pra caramba’, acredita?
- Deixa de ser bobo, cara.
- Brincadeira, viu?
- Só pode.
- Mas comigo, se não pintar afinidades intelectuais, dentro ou fora dos jogos românticos, pulo fora antes de entrar. Hoje, sei do que gosto e do que não me agrada.
- Conta outra.
- Do jeito que é obcecado por rabo de saia, qualquer uma é um convite ao teste-drive. A que aparecer...
- Nada disso, minha parada é outra, Suzana. Valorizo as garotas de bom papo, com essência, espírito sensível e aura cult. São menos ansiosas, outro nível. Sacou?
- Háháhá!
- O saber deve andar sempre com o humano, seduz mais. Intelligence is sexy. Saber ler. Saber falar. Saber escrever. Saber caminhar. Saber ver o mundo. Saber aprofundar seu conhecimento sobre a vida.
- Tem razão.
 - Suzana, mulher inteligente deixa boas marcos no corpo e na alma dos homens que passam pela sua vida. Dobra a emoção, pode crer.
- Hummm!
- Verdade. Inteligência na parceira vale tanto quanto um corpinho sarado. Quanto mais se desfruta, mais descobre maravilhosa a sua alma. Estou sempre em cima desse lance, capisce?
- Ah, essa é boa!
- Mulher nesse estilo é o máximo, conduz a conversa com mais leveza, fluindo de maneira bacana. É gente inspirando gente! Quando encontro uma de tal modo, tibum!..., mergulho de cabeça e ponho a pedra para rolar com aquele fogo todo. Ai, sim, vale a pena beijar, agarrar, abraçar.
 - Saliente! Assanhado!
- O psicanalista Jacques Lacan defende que o superego é uma ordem irresistível e imperiosa que nos manda gozar.
- Háháhá!
- E se a gata for nutrida pelo discurso antimatrimônio, seduz mais ainda. No momento de entrega, ela pensa com o corpo e transa de maneira mais animada. O que é muito bom, apimenta o jogo. Tudo como se fosse uma declaração libertária para tocar o desejo do macho com precisão matemática. É vapt vupt!!!...
- Bobão!
Risos. Mathieu, em tom mordaz:
- Meu signo é peixe. A astrologia assegura que o pisciano tende à fuga quando sofre, valoriza o todo em vez da parte. Por isso mesmo esnobo as burrinhas. Evito, porque ali só tem aventuras.
- Será?
- Meu lance vai além do sexo, não é só tirar a roupa e seguir em frente. Èrectione, na minha cartilha não é obrigação, é merecimento. Só deito com uma mulher quando dá liga – assegura o rapaz.
E conclui com o fulgor de um risinho vitorioso:
- Quer saber, querida? Eu não saio para curtir a noite com uma companheira que não quer mudar o mundo, que não tem ideal num planeta cada vez mais sintonizado com a ideia de aprimorar os conceitos da existência humana. Isso vai além da substância sexual, certo?
Depois de uma tragada no cigarro, Suzana:
- Sei não, mas me fez lembrar de uma frase Mark Twain. Nada muito a ver, mas tem...
- Qual?
- Nunca discuta com pessoas mais burras, elas vão te arrastar ao nível delas e ganhar de você por ter mais experiência em ser ignorante.
Risos. Mathieu:
- Por ai. Pessoas incultas embaraçam qualquer relacionamento. Mal sabem distinguir o pão de um tijolo, o tijolo da areia ou a areia de um montinho de terra.
- Quer dizer o que com isso?
- Sexo com elas seria apenas sexo, o que não me convence. Sinal vermelho.
Suzana balança a cabeça, curiosa:
- E quando pinta uma frígida no ‘pedaço’?
- Não existe mulher fria. Existem machos que entendem mal a alma feminina.
- Não? 
- Numa relação entre homem e mulher, o parceiro também deve trabalhar sua porção feminina. Oferecer muito carinho, ser mais terno e menos animal. Antes e depois. Conexão total, entende?
- Claro. Claro.
- O homem que não se compõe com a mulher que existe dentro dele, não é capaz fazer circular as energias que tornam a sexualidade completa. Em tudo há uma sintonia..., inclusive.
- Concordo, inteiramente – reforça Suzana. - De um modo geral, toda mulher espera isso mesmo do parceiro.
- Até porque quem gosta de brutalidade, nesse momento de afeto, só pode ser outro homem, mais comprometido com a agressividade do que com o amor, não?
Suzana ri meio acanhada.
- Então, meu amigo, não tolera as burrinhas? Mesmo aquelas com a cintura de violão que rebolam por aí?
- Pouco convencionais. Quando abrem a boca para falar, mostram que a beleza não vai além de suas alegres feições.
- Será?
- Criatura, eu não tenho a menor aptidão para irmã Dulce, nem para madre Tereza de Calcutá, que vivem de fazer caridade. Muito menos sou candidato ao prêmio Nobel da Paz.
- Vixe!
- Mulher intelectualizada guarda em si características distintas e, por isso, são mais atraentes. Politizadas e seguras de si, derrapam menos nas curvas arriscadas do amor. Concorda?
- Vou fingir que acredito.
- Ora... Esse mesmo raciocínio explica porque países europeus, marcados por uma sociedade pós-moderna, as mulheres inteligentes são as mais disputadas. Sabia disso?
Suzana não responde. Bebe uma golada de cerveja, puxa uma tragada no cigarro e ajeita no rosto um risinho, levemente, indiscreto.
 
 





* FBN© - 2012 – Anos Dourados..., NUMA  NOITE EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  Le Dimanche’, de Marc-Chagall – 1954 – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/20xix-anos-dourados.html?zx=407a623a5d12be32

 

 

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