2011-01-03

26/XXVI – HISTÓRIAS DE AMOR E CAPRICHOS

*
 
 
Tarsila do Amaral
Senhora da Arte, certa de que o artista
não deve apenas retratar a natureza, mas dela se colocar acima.
Ovo – Laços de Família, óleo sobre tela com seu modernismo brejeiro.

 
 
Mathieu, curioso:
- Que achou do meu discurso?
- Apresenta nexo em alguns pontos. Noutros...
- Noutros?
- Bobagens. Quer saber: no fundo, no fundo é um cara legal, boa praça, apesar desse lado de conquistador. Tem inclinação para a alegria, embora muito levado.
- Levado?
- Mas é uma das pessoas mais divertidas que conheço, p’ra cima – revela Suzana com admiração.
- Bom ouvir isso.
- Estou enchendo sua bola, não é?
Risos. Mathieu em tom amável:
- Você é também uma pessoa especial.
- Acha?
- Muito.
- Obrigada. Uma hora deixo de acumular know-how de Gata-Borralheira. Pode crer.
- E vai correr atrás de um príncipe encantado?
- Quem sabe?
- Uai!
- Para falar a verdade, sinto muita falta da minha alegria do passado.
- Entendo.
- O Zé que tenho em casa é aquela murrinha, vive com ódio de si mesmo. Quero passear, divertir, ver gente bem transada.... Ele trava.
- Bolas, põe o sujeito para frente!
- Difícil.
- Não deve ser tão difícil assim! Bem, Suzana, agora que sabe tudo de mim, fale mais de você.
Ela sorri.
- Quer saber o quê?
- Tudo que ainda quiser falar.
- Tudo?
- Do seu mundo. Das suas aspirações.
- Secretas?
- Não seria mau.
- Socorro!!!
- Sou todo ouvido.
- Não, não. Fica para outro dia.
Mathieu reflete, coçando a orelha, diz:
- Se assim quer.
- Xiiiii... Também não precisa fazer essa cara!
- Preocupe não, sei esperar.
- Ainda bem.
- Diga-me uma coisa só. Pelo menos sai de vez em quando para pegar um cineminha?
- Durante certo tempo, vez ou outra, o José Renato me levava ao Cine Metrópole, aqui perto. Hoje, nem isso. Acredita?
- Por causa do garoto?
- Também. Assim que um filho nasce, a vida da mãe passa a girar em torno dele, evitando o quanto pode sair de casa. Filho é como uma luz que não se apaga nunca.
- Quanta culpa os pais colocam nas costas dos filhos? Tudo como se eles tivessem que dar conta de todos os seus fracassos: deixei de fazer isso, de ir ali, de comprar aquilo, de voltar aos estudos.
- Isso mesmo.
- Engraçada a vida, ‘né?
- Pior que é. Por um filho a gente sacrifica tudo, mas não reclamo. É sublime, traz satisfações infinitas.
- E preocupações.
- Filho pequeno mais ainda, faz parte. Deixa a gente sob eterno toque de recolher. Isso muda o jogo.
- Não sente falta de conhecer outras pessoas, ouvir outras vozes, rir, dançar, divertir mais, ver a vida pulsar?
- Claro que sim.
- Então?
- Ora, Math, quando não estou na escola dando aulas permaneço em casa, curtindo e rindo com o riso do meu molequinho sapeca. É meu xodó! Fico com ele o maior tempo que posso, fazendo de tudo para ver um sorriso estampado no seu rosto. Preciso disso. É a maneira de compensar o tempo que passo fora.
- Mãezona!
- A maternidade, Math, é o maior presente que uma mulher pode receber da vida. É a plenitude do sagrado feminino. Talvez não exista nada no mundo que seja tão importante para mim como esse sentimento.
- Posso imaginar.
- Mãe é tudo igual, negócio de sangue. Mãe quer abraçar, dar colo, cuidar. Quer proteger e confortar. Todas só almejam que seus filhos cresçam felizes.
- Affe!
- Abaixo de Deus, é o Junior minha maior alegria. Nada melhor do que um filho para nos ensinar a priorizar o que é mais importante na vida, o amor.
Pausa. Mathieu:
- Claro, claro. Mas é importante que a mulher reserve algum tempo de isolamento por dia para colocar os seus pensamentos em ordem, não?
- Talvez.
- Então?
- Esse tempo chega mais tarde. Enquanto pequenos a dedicação a eles é total, não tem como ser diferente. Cresceu um pouco, cresce a preocupação. Pode parecer difícil, mas não é. Estou feliz assim, porque não existe amor maior do que o de mãe, pode crer. Por isso mesmo ser mãe nunca cai de moda.
- Merece um bombom!
Risos. Suzana:
- Qualquer mamãe gosta de ver seus filhotes debaixo das asas ou sentados à mesa durante as refeições. Aí que uma mãe se realiza, porque a alegria que a gente vê nos olhinhos deles é muito confortante. Perdoe-me a corrigisse.
O rapaz em tom eloquente, recita:
- A dor do parto lacera as entranhas de uma mulher, porém logo o choro infantil inunda sua alma de júbilo... Coisas do feminino descrevia José de Alencar sobre mamã extremosa.
- Certíssimo. Math, o mais incrível nessa história é ver como a gente se surpreende com tanta capacidade para amar. Incrível!
- Muito bem. Pelo que vejo, para completar sua trajetória existencial, só falta escrever um livro e plantar uma árvore.
- Háháhá... Já plantei uma muda de Pau-Brasil nos jardins do clube em que frequento. Está lá vivo e verde, crescendo sob o curioso olhar do Júnior. É sério.
- Ótimo.
- Também acho.
Mathieu acende um palito de cigarro.
- Pretende ter mais filhos?
- Só o tempo pode dizer. Posso adiantar que sempre cabe mais um no coração de mãe.
- Suponho.
Pausa. Suzana continua justificando:
- Quando ele me dá folga curto um bom livro, comendo pipoca ou docinhos da vovó! Uma delícia!
- Maravilha.
- Math, entre mãe e filho há sempre uma metalinguagem familiar, que a gente vai lembrar para o resto da vida. Por exemplo, o Júnior é meu companheiro de compras no Mercado Central, vamos sempre. E lá, quando estou com ele, meu lado criança vem à tona. O garoto é apaixonado pelo corredor dos bichos - conta Suzana.
- Eu também.
- Um mundo de coisas simples, porém de muito valor aos olhos de uma criança.
Pausa. Mathieu:
- Um mundo mágico mostrando nossos troncos, nosso povo com sua identidade provinciana. É um marco na cidade, que nos ajuda a guardar a memória de Minas Gerais e, principalmente, dos trabalhadores rurais que lá continuam fazendo sua história, para não perdermos nossas raízes.
- Adoro esse mercado, possui de tudo um pouco. E a gente é sempre bem recebida pelos feirantes.
- Eu também curto bastante. Para mim, Suzana, é parada obrigatória para relaxar, ressuscitar lembranças, cheiros e encontrar amigos, em busca das próprias origens.
- Dá sinais do passado, sim. Faz a gente voltar no tempo e sentir o gostinho inesquecível da infância, encantando gerações e gerações. Adoro – revela Suzana.
- Ã-Hã.
- Pelo jeito, é um frequentador assíduo do Mercado?
- Uma vez por semana, pelo menos. Convencido de que minhas estirpes estão por lá, eu vasculho com entusiasmo seus corredores, onde cruzo com pessoas de diferentes geografias e diferentes sotaques.
- Legal.
- Querida, sentir a cor e o aroma de tanta comida exposta me remete a outros tempos, trazendo lembranças de um menino loiro de franja na testa e pés descalços, que ainda guardo com carinho no meu baú interior.
- Olha!
- Nada disso apaga, ‘né?
- Nunca.
- Outra coisa: gosto de escutar o som de vozes acentuando o ‘erre’, naquele jeito de falar que ouvia na infância, principalmente, na fazenda de café do meu velho, seu Juca Macarrão.
- Macarrão?! – surpreende-se Suzana.
- Apelido do meu pai que foi dono de uma fábrica de macarrão na cidade de Senhor Bom Jesus dos Passos.
- Maravilha
- Nascido na pequena Guia Lopes, criado em Campos Altos e Passos, recordo com carinho a minha infância no interior, pentelhando pelas feiras, jogando bola na rua, pés descalços, nadando em rio – conta o rapaz.
- No Rio São Francisco?
- Também. Mesmo com suas águas barrentas.
- Coisa boa, Math.
- É na região de São Roque em que Rio da Unidade Nacional brota e já começa a ser agredido e machucado pela garimpagem de diamantes.
- Caramba!
Pausa. Mathieu:
- Bem, posso dizer que coração não esquece o passado provinciano, mesmo tendo a mocidade azeitada em Belo Horizonte
- Saudades da terrinha?
- A gente sai do interior, mas ele não sai da gente nunca. Aquela praça! Aquela escola! Aquele brinquedo! Quatro cidades com um coração só. Tudo se traduz naquele orgulho do jeito singular de ser caipira, ‘né?
- É o que nos liga ao mundo, não é mesmo?
- Pode crer.
- Tiro por mim. Ainda cercada pelas alegrias da infância, até hoje guardo minha ‘Barbie’ como lembrança da meninice no meu interiorzão – abona Suzana com entusiasmo.
- É a boneca teenager vestida na moda?
- Ela mesma. Amo.
Mathieu espalma a mão direita no peito:
- Enfim, como fiel defensor de minhas raízes, é no Mercado Central que espanto a saudade de velhos tempos. Não nego a raça. Ali encontro pessoas da minha terra, trabalhando ou comprando.
- É muito bom mesmo!
- Todo mundo sai de lá um pouquinho mais mineiro, ‘né, sô?
- Uai, claro que sim.
Pausa. Depois de beber um pouco de cerveja, o rapaz retrai um pouco o sorriso, dizendo:
- Falo sério, Suzana, você deve sair um pouco dessa rotina. Faz bem, criatura.
- Está coberto de razão.
- Então?
- Um dia desses chamo uma amiga para ir comigo assistir uma sessão de cinema.
- Boa pedida. A vida fica melhor quando a gente sorri mais, dança mais, abraça mais, se diverte mais. Tem coisa melhor?
- É o que mais quero.
- Então...
Risos. Depois de uma pausa, a mulher sem disfarçar a exultação:
- Queria ver Roberto Carlos em Ritmo de Aventuras, lançado recentemente.
- Roberto Carlos?
- Meio careta, meio brega, não é?
- Por quê?
- Dizem.
- Bobeira. Primeira aventura na tela grande de Roberto que, como rei generoso, já virou ícone do pop nacional. Beleza pura! Com fotografia apurada, montagem arrebatadora, elenco excepcional, o filme é um fenômeno de público jovem, que garante salas lotadas para ver uma história de amor e caprichos. Se é brega, é brega chique. Na crista da onda, bicho!  
Depois de pensar um pouco, Suzana conta:
- Meu primeiro disco de Roberto foi Brotinho Sem Juízo, lançado em 1960. Bolachão de vinil de 78 rotações, que curti para caramba. Era gamada nele, um pão! Mesmo sabendo que, aos olhos de meu pai, a turma de rock era a influência que nos levaria à perdição.
- Papo furado! Aquilo que o coração ama fica eterno, doutrina Rubens Alves.
- Gosto de Roberto e pronto. Para mim ainda é um superstar da canção e, agora, da tela grande também.
- Bem, o filme dirigido Roberto Farias segue o padrão Jovem Guarda. Mostra um mocinho cheio de vontade de transgredir e de estabelecer rupturas com os padrões da moda. No mais, exibe seu lado romântico que provoca grandes emoções ao mostrar o mito, a voz e o carinho do cantor.
- Maravilha. Muito fofo.
Mathieu, após uma tragada no cigarro.
- Não há comunidade norte-americana que não curta Sinatra com suas canções românticas, que embalam paixões e resistem à passagem dos tempos. Muito menos francesa, que não vibra com a música de Aznavour, que descreve o amor em letras e harmonia para derreter corações. Não há mancebo apaixonado que não encontra nas canções de Roberto uma boa ajuda para ajudar a abrir os botões da blusa de sua amada.
- Hummmmmm!
- O Brasil se orgulha de ser a pátria amada de quem mais entende de ‘emoções’ no mundo jovem de hoje. Hoje em dia, ninguém canta o amor como ele, veio como um vendaval para sacudir o coração da moçada, estou mentindo?
Risos. Suzana:
- Nota ao filme.
- Sete.
- Só?
- Como cinema, sim. O longa se aproveita do prestígio de Roberto Carlos, mas sofre com cacoetes previsíveis, deixando a marca da superficialidade clara no roteiro. Belas cenas, mas derrapa em diálogos artificiais. Além do mais, alinha sucessão de sketches de pouco eficácia que prejudicam o desempenho do jovem protagonista. Uma mancada leve mas, com isso, perdeu um pouco do seu centro de importância cinematográfica. Entende?
- Pois sim.
- Preocupe não. Pelo comportamento da plateia o filme, como tributo ao múltiplo Roberto Carlos, segura a onda numa boa. Poucos serão os espectadores que saberão distinguir a magia da empulhação – enfatiza o rapaz.
Pausa. Suzana, com os olhos semicerrados, confessa:
- Roberto é a voz que é a voz de todos nós. Ninguém mais do que ele sabe dar o tom na hora certa, principalmente, quando canta músicas mais lentas.
- Ah, sim. Eu tenho o cantor capixaba no bolso de meu paletó, sempre. Arre, nem sei contar quantas vezes ele me ajudou a conquistar a garota que eu estava a fim! Dezenas. Muitas ocasiões, como se fosse uma trilha sonora, cantarolei para as minhas musas trechinhos de suas canções, como por exemplo: daqui p’ra frente tudo vi ser diferente..., eu tenho tanto para lhe falar..., e como é grande meu amor por você...
- Bobo!
- Ajuda bem, detona - expressa o rapaz com um largo sorriso no rosto, enquanto tomava o resto de bebida do seu copo.
* FBN© - 2012 – Histórias de Amor e Caprichos ..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração -  Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  O ovo - Tarsila do Amaral .. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/27xxvii-caprichos.html?zx=4fa1cafd88e07d13
 
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