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Tarsila do Amaral
Senhora da Arte, certa de que o artista
não deve apenas retratar a natureza, mas dela se colocar acima.
Senhora da Arte, certa de que o artista
não deve apenas retratar a natureza, mas dela se colocar acima.
Ovo – Laços de Família, óleo sobre
tela com seu modernismo brejeiro.
Mathieu,
curioso:
- Que
achou do meu discurso?
- Apresenta
nexo em alguns pontos. Noutros...
-
Noutros?
-
Bobagens. Quer saber: no fundo, no fundo é um cara legal, boa praça, apesar
desse lado de conquistador. Tem inclinação para a alegria, embora muito levado.
- Levado?
- Mas é
uma das pessoas mais divertidas que conheço, p’ra cima – revela Suzana com
admiração.
- Bom
ouvir isso.
- Estou
enchendo sua bola, não é?
Risos.
Mathieu em tom amável:
- Você é
também uma pessoa especial.
- Acha?
- Muito.
-
Obrigada. Uma hora deixo de acumular know-how de Gata-Borralheira. Pode crer.
- E vai
correr atrás de um príncipe encantado?
- Quem
sabe?
- Uai!
- Para
falar a verdade, sinto muita falta da minha alegria do passado.
-
Entendo.
- O Zé
que tenho em casa é aquela murrinha, vive com ódio de si mesmo. Quero passear,
divertir, ver gente bem transada.... Ele trava.
- Bolas,
põe o sujeito para frente!
-
Difícil.
- Não
deve ser tão difícil assim! Bem, Suzana, agora que sabe tudo de mim, fale mais
de você.
Ela
sorri.
- Quer
saber o quê?
- Tudo
que ainda quiser falar.
- Tudo?
- Do seu
mundo. Das suas aspirações.
-
Secretas?
- Não
seria mau.
-
Socorro!!!
- Sou
todo ouvido.
- Não, não.
Fica para outro dia.
Mathieu
reflete, coçando a orelha, diz:
- Se
assim quer.
-
Xiiiii... Também não precisa fazer essa cara!
-
Preocupe não, sei esperar.
- Ainda
bem.
- Diga-me
uma coisa só. Pelo menos sai de vez em quando para pegar um cineminha?
- Durante
certo tempo, vez ou outra, o José Renato me levava ao Cine Metrópole, aqui
perto. Hoje, nem isso. Acredita?
- Por
causa do garoto?
- Também.
Assim que um filho nasce, a vida da mãe passa a girar em torno dele, evitando o
quanto pode sair de casa. Filho é como uma luz que não se apaga nunca.
- Quanta
culpa os pais colocam nas costas dos filhos? Tudo como se eles tivessem que dar
conta de todos os seus fracassos: deixei de fazer isso, de ir ali, de comprar
aquilo, de voltar aos estudos.
- Isso
mesmo.
-
Engraçada a vida, ‘né?
- Pior
que é. Por um filho a gente sacrifica tudo, mas não reclamo. É sublime, traz
satisfações infinitas.
- E
preocupações.
- Filho
pequeno mais ainda, faz parte. Deixa a gente sob eterno toque de recolher. Isso
muda o jogo.
- Não
sente falta de conhecer outras pessoas, ouvir outras vozes, rir, dançar,
divertir mais, ver a vida pulsar?
- Claro
que sim.
- Então?
- Ora,
Math, quando não estou na escola dando aulas permaneço em casa, curtindo e
rindo com o riso do meu molequinho sapeca. É meu xodó! Fico com ele o maior
tempo que posso, fazendo de tudo para ver um sorriso estampado no seu rosto.
Preciso disso. É a maneira de compensar o tempo que passo fora.
-
Mãezona!
- A
maternidade, Math, é o maior presente que uma mulher pode receber da vida. É a
plenitude do sagrado feminino. Talvez não exista nada no mundo que seja tão
importante para mim como esse sentimento.
- Posso
imaginar.
- Mãe é
tudo igual, negócio de sangue. Mãe quer abraçar, dar colo, cuidar. Quer
proteger e confortar. Todas só almejam que seus filhos cresçam felizes.
- Affe!
- Abaixo
de Deus, é o Junior minha maior alegria. Nada melhor do que um filho para nos
ensinar a priorizar o que é mais importante na vida, o amor.
Pausa.
Mathieu:
- Claro,
claro. Mas é importante que a mulher reserve algum tempo de isolamento por dia
para colocar os seus pensamentos em ordem, não?
- Talvez.
- Então?
- Esse
tempo chega mais tarde. Enquanto pequenos a dedicação a eles é total, não tem
como ser diferente. Cresceu um pouco, cresce a preocupação. Pode parecer
difícil, mas não é. Estou feliz assim, porque não existe amor maior do que o de
mãe, pode crer. Por isso mesmo ser mãe nunca cai de moda.
- Merece
um bombom!
Risos.
Suzana:
-
Qualquer mamãe gosta de ver seus filhotes debaixo das asas ou sentados à mesa
durante as refeições. Aí que uma mãe se realiza, porque a alegria que a gente
vê nos olhinhos deles é muito confortante. Perdoe-me a corrigisse.
O rapaz
em tom eloquente, recita:
- A dor do parto lacera as entranhas de uma mulher,
porém logo o choro infantil inunda sua alma de júbilo... Coisas do feminino
descrevia José de Alencar sobre mamã extremosa.
-
Certíssimo. Math, o mais incrível nessa história é ver como a gente se
surpreende com tanta capacidade para amar. Incrível!
- Muito
bem. Pelo que vejo, para completar sua trajetória existencial, só falta
escrever um livro e plantar uma árvore.
-
Háháhá... Já plantei uma muda de Pau-Brasil nos jardins do clube em que
frequento. Está lá vivo e verde, crescendo sob o curioso olhar do Júnior. É
sério.
- Ótimo.
- Também
acho.
Mathieu
acende um palito de cigarro.
-
Pretende ter mais filhos?
- Só o
tempo pode dizer. Posso adiantar que sempre cabe mais um no coração de mãe.
-
Suponho.
Pausa.
Suzana continua justificando:
- Quando
ele me dá folga curto um bom livro, comendo pipoca ou docinhos da vovó! Uma
delícia!
-
Maravilha.
- Math,
entre mãe e filho há sempre uma metalinguagem familiar, que a gente vai lembrar
para o resto da vida. Por exemplo, o Júnior é meu companheiro de compras no Mercado
Central, vamos sempre. E lá, quando estou com ele, meu lado criança vem à tona.
O garoto é apaixonado pelo corredor dos bichos - conta Suzana.
- Eu
também.
- Um
mundo de coisas simples, porém de muito valor aos olhos de uma criança.
Pausa.
Mathieu:
- Um
mundo mágico mostrando nossos troncos, nosso povo com sua identidade
provinciana. É um marco na cidade, que nos ajuda a guardar a memória de Minas
Gerais e, principalmente, dos trabalhadores rurais que lá continuam fazendo sua
história, para não perdermos nossas raízes.
- Adoro
esse mercado, possui de tudo um pouco. E a gente é sempre bem recebida pelos
feirantes.
- Eu
também curto bastante. Para mim, Suzana, é parada obrigatória para relaxar,
ressuscitar lembranças, cheiros e encontrar amigos, em busca das próprias origens.
- Dá
sinais do passado, sim. Faz a gente voltar no tempo e sentir o gostinho
inesquecível da infância, encantando gerações e gerações. Adoro – revela
Suzana.
- Ã-Hã.
- Pelo
jeito, é um frequentador assíduo do Mercado?
- Uma vez
por semana, pelo menos. Convencido de que minhas estirpes estão por lá, eu
vasculho com entusiasmo seus corredores, onde cruzo com pessoas de diferentes
geografias e diferentes sotaques.
- Legal.
-
Querida, sentir a cor e o aroma de tanta comida exposta me remete a outros
tempos, trazendo lembranças de um menino loiro de franja na testa e pés
descalços, que ainda guardo com carinho no meu baú interior.
- Olha!
- Nada
disso apaga, ‘né?
- Nunca.
- Outra
coisa: gosto de escutar o som de vozes acentuando o ‘erre’, naquele jeito de
falar que ouvia na infância, principalmente, na fazenda de café do meu velho,
seu Juca Macarrão.
-
Macarrão?! – surpreende-se Suzana.
- Apelido
do meu pai que foi dono de uma fábrica de macarrão na cidade de Senhor Bom
Jesus dos Passos.
-
Maravilha
- Nascido
na pequena Guia Lopes, criado em Campos Altos e Passos, recordo com carinho a
minha infância no interior, pentelhando pelas feiras, jogando bola na rua, pés
descalços, nadando em rio – conta o rapaz.
- No Rio
São Francisco?
- Também.
Mesmo com suas águas barrentas.
- Coisa
boa, Math.
- É na
região de São Roque em que Rio da Unidade Nacional brota e já começa a ser
agredido e machucado pela garimpagem de diamantes.
- Caramba!
Pausa.
Mathieu:
- Bem,
posso dizer que coração não esquece o passado provinciano, mesmo tendo a
mocidade azeitada em Belo Horizonte
-
Saudades da terrinha?
- A gente
sai do interior, mas ele não sai da gente nunca. Aquela praça! Aquela escola!
Aquele brinquedo! Quatro cidades com um coração só. Tudo se
traduz naquele orgulho do jeito singular de ser caipira, ‘né?
- É o que
nos liga ao mundo, não é mesmo?
- Pode
crer.
- Tiro
por mim. Ainda cercada pelas alegrias da infância, até hoje guardo minha
‘Barbie’ como lembrança da meninice no meu interiorzão – abona Suzana com
entusiasmo.
- É a
boneca teenager vestida na moda?
- Ela
mesma. Amo.
Mathieu
espalma a mão direita no peito:
- Enfim,
como fiel defensor de minhas raízes, é no Mercado Central que espanto a saudade
de velhos tempos. Não nego a raça. Ali encontro pessoas da minha terra, trabalhando
ou comprando.
- É muito
bom mesmo!
- Todo
mundo sai de lá um pouquinho mais mineiro, ‘né, sô?
- Uai,
claro que sim.
Pausa.
Depois de beber um pouco de cerveja, o rapaz retrai um pouco o sorriso,
dizendo:
- Falo
sério, Suzana, você deve sair um pouco dessa rotina. Faz bem, criatura.
- Está
coberto de razão.
- Então?
- Um dia
desses chamo uma amiga para ir comigo assistir uma sessão de cinema.
- Boa
pedida. A vida fica melhor quando a gente sorri mais, dança mais, abraça mais,
se diverte mais. Tem coisa melhor?
- É o que
mais quero.
-
Então...
Risos.
Depois de uma pausa, a mulher sem disfarçar a exultação:
- Queria
ver Roberto Carlos em Ritmo de Aventuras, lançado recentemente.
- Roberto
Carlos?
- Meio
careta, meio brega, não é?
- Por
quê?
- Dizem.
-
Bobeira. Primeira aventura na tela grande de Roberto que, como rei generoso, já
virou ícone do pop nacional. Beleza pura! Com fotografia apurada, montagem
arrebatadora, elenco excepcional, o filme é um fenômeno de público jovem, que garante
salas lotadas para ver uma história de amor e caprichos. Se é brega, é brega
chique. Na crista da onda, bicho!
Depois de
pensar um pouco, Suzana conta:
- Meu
primeiro disco de Roberto foi Brotinho Sem Juízo, lançado em 1960. Bolachão de
vinil de 78 rotações, que curti para caramba. Era gamada nele, um pão! Mesmo
sabendo que, aos olhos de meu pai, a turma de rock era a influência que nos levaria à perdição.
- Papo
furado! Aquilo que o coração ama fica
eterno, doutrina Rubens Alves.
- Gosto
de Roberto e pronto. Para mim ainda é um superstar da canção e, agora, da tela
grande também.
- Bem, o
filme dirigido Roberto Farias segue o padrão Jovem Guarda. Mostra um mocinho
cheio de vontade de transgredir e de estabelecer rupturas com os padrões da
moda. No mais, exibe seu lado romântico que provoca grandes emoções ao mostrar
o mito, a voz e o carinho do cantor.
-
Maravilha. Muito fofo.
Mathieu,
após uma tragada no cigarro.
- Não há
comunidade norte-americana que não curta Sinatra com suas canções românticas,
que embalam paixões e resistem à passagem dos tempos. Muito menos francesa, que
não vibra com a música de Aznavour, que descreve o amor em letras e harmonia
para derreter corações. Não há mancebo apaixonado que não encontra nas canções
de Roberto uma boa ajuda para ajudar a abrir os botões da blusa de sua amada.
- Hummmmmm!
- O
Brasil se orgulha de ser a pátria amada de quem mais entende de ‘emoções’ no
mundo jovem de hoje. Hoje em dia, ninguém canta o amor como ele, veio
como um vendaval para sacudir o coração da
moçada, estou mentindo?
Risos.
Suzana:
- Nota ao
filme.
- Sete.
- Só?
- Como
cinema, sim. O longa se aproveita do prestígio de Roberto Carlos, mas sofre com
cacoetes previsíveis, deixando a marca da superficialidade clara no roteiro. Belas
cenas, mas derrapa em diálogos artificiais. Além do mais, alinha sucessão de sketches de pouco eficácia que
prejudicam o desempenho do jovem protagonista. Uma mancada leve mas, com isso,
perdeu um pouco do seu centro de importância cinematográfica. Entende?
- Pois
sim.
-
Preocupe não. Pelo comportamento da plateia o filme, como tributo ao múltiplo
Roberto Carlos, segura a onda numa boa. Poucos serão os espectadores que saberão
distinguir a magia da empulhação – enfatiza o rapaz.
Pausa.
Suzana, com os olhos semicerrados, confessa:
- Roberto
é a voz que é a voz de todos nós. Ninguém mais do que ele sabe dar o tom na
hora certa, principalmente, quando canta músicas mais lentas.
- Ah,
sim. Eu tenho o cantor capixaba no bolso de meu paletó, sempre. Arre, nem sei
contar quantas vezes ele me ajudou a conquistar a garota que eu estava a fim!
Dezenas. Muitas ocasiões, como se fosse uma trilha sonora, cantarolei para as
minhas musas trechinhos de suas canções, como por exemplo: daqui p’ra frente tudo vi ser diferente..., eu tenho tanto para lhe
falar..., e como é grande meu amor por você...
- Bobo!
- Ajuda
bem, detona - expressa o rapaz com um largo sorriso no rosto, enquanto tomava o
resto de bebida do seu copo.
* FBN© - 2012 – Histórias de Amor
e Caprichos ..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de
Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: O ovo - Tarsila do Amaral .. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/27xxvii-caprichos.html?zx=4fa1cafd88e07d13
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