2011-01-03

14/XIV – PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES.

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Atrizes e militantes contra a Ditadura Militar, Brasil/1968 

 
Eva Todor, Tônia Carreiro, Eva Vilma e Leila Diniz.
 
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Detalhe da passeata contra a Ditadura Militar no Brasil,
com grande participação das mulheres que foram às ruas lutar por direitos iguais.
 


 


Numa expressão de quem entende de música, Mathieu:

- Gostou do resultado do Maracanãzinho?

- Eu, hein!?... Como no ano passado, a canção que merecia ser campeã no III Festival Internacional da Canção ficou em segundo lugar. Caminhando, de Vandré, é mil vezes melhor, mas ficou em segundo lugar – observa Suzana, desapontada.

- Concordo. Faturou o prêmio Sabiá, de Tom e Chico, mesmo com as vaias da plateia que aclamou em peso a música de Geraldo Vandré.

Suzana, depois de um gole de cerveja:

- Com certeza, a canção do paraibano é muito, muito melhor! Outro olhar, cara.

- Indiscutivelmente. Sem dúvida, a mais emblemática entre as canções concorrentes, mostrando que é preciso esquecer o medo para cantar em seu país. Ao cunhar na letra fortes imagens de aversão aos militares no poder, falando grosso, Vandré conquistou a moçada e sua canção virou hino contra a Ditadura.

- Ah, sim. Está tudo no contexto, e com boa musculatura. Só não vê quem não quer.

- Claro, claro. Tanto é que, enquanto interpretava Caminhando, a galera logo entendeu seu recado e, de pé como num campo de futebol na hora de um gol, aplaudiu a canção sem parar.

- Sim, sim, sim. Foi lindo, emocionante!

Mathieu, eufórico:

- Vandré mostrou garra, coragem e forte pegada libertária nesse momento político brasileiro. Com o texto estruturado em bases realistas, de forma clara e decisiva, teceu uma sofisticada arquitetura poética para sustentar uma mensagem de protesto em sua canção. No refrão já disse tudo: Vem, vamos embora/Que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora/Não espera acontecer...

- De arrepiar, Math!

- O que me impressiona é que ele expõe, com todas as notas, o que quer dizer aos outros e, através de outros, o que pretende falar para si mesmo. Foi muito feliz! Canção com essa força, Suzana, tem tudo para chegar ao topo das ‘paradas’ de sucesso no Brasil inteiro.

- Tomara – aplaude a mulher batendo palmas.

Mathieu estica o braço com punho fechado, sorrindo:

- Vai estourar, virar hits na boca do povo, mesmo se for censurada.

- Caminhando e cantando/E seguindo a canção/Somos todos iguais/Braços dados ou não/Nas escolas, nas ruas/Campos, construções... – a professora, com voz exaltada, entoa outro trecho da canção.

- Suzana, sabe o que mais impressiona nesses festivais?

- Não.

- Mesmo no auge do embate com a censura, uma nova geração de compositores está se formando, apesar dos desafios encontrados pelos artistas no caldeirão da Ditadura Militar, nos surpreendendo a cada momento. Querida, já atinou para isso?

- São os nossos guerrilheiros da MPB.

- Pelo que a gente vê, para os artistas de cabeça-feita, empenhados em fazer novas leituras para a nossa música popular, a repressão política tem sido grande fonte de inspiração para o avanço de nossa consciência crítica. Para esses músicos é necessário tocar também com alma de brasileiro. Foi o que fizeram nesses Festivais, interpretando as angústias indizíveis que país vive nesses tempos de violência política.

- Justamente.

- Como músicas de protesto têm sua dinâmica em relação aos tempos, de forma criativa, eles produziram letras com altos teores de subjetividade, mas que o público entendeu rápido e apoia. Shows memoráveis!

- Isso mesmo.

             - Músicos engajados como Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, Vinícius de Moraes, Caymmi, Chico, Caetano, Gil, Milton, Baden e outras feras, estão aí fazendo, em alto e bom tom, inteligentes incursões de publicidade antiditadura no Brasil. Todos na onda da voz afiada da cantante e ativista argentina La Negra, que usa a música para traduzir a alma do nosso povo, como arma contra os regimes militares na América Latina.

- La Negra! – surpreende-se a mulher.

- Não sabe?

- La Negra!... La Negra!... Mercedes Sosa?

- Sim, ela, a flor do campo argentino. Interprete que mostra sua inquietação política na canção.

- Adoro.

- De voz firme empolga plateias por todo o mundo, iluminada pelo espectro da chilena Violeta Parra.

- Outra que me emociona muito.

- Não é para menos. Violeta é a pioneira da canção comprometida com a luta dos oprimidos e explorados dos sul-americanos. Áspera, intensa e visceral ela ganha a simpatia do mundo.

Suzana, depois de tomar um pouco de cerveja:

- Um brinde à La Negra! Um brinde ao Vandré! U      m brinde à Violeta!

- Tim-Tim - levanta o copo o rapaz.

- Tim-Tim.

- Vandré não se sagrou vencedor do Festival, mas chegou à frente com a expressiva e ruidosa canção, mostrando que é preciso esquecer o medo para soltar a voz numa ditadura. Um barril de pólvora! Caminhando está sendo celebrada como um autêntico hino da contracultura. Isso que importa.

- Arre! Mas quem levou a melhor foi a canção Sabiá. Não concordo. Eu a considero piegas, tipo canto de igreja. Morninha demais para o meu gosto!

Mathieu franze a testa. E revela:

- Corre um boato que ordem verde-oliva forçou a TV Globo não dar a vitória ao Geraldo Vandré. Meio redundante, mas...

- Será?

- Não creio, tampouco não duvido convictamente. O governo brasileiro anda bastante desconfiado de nossos compositores.

Suzana põe no rapaz um olhar interrogativo:

- Háháhá! Então foi assim, Math?

- Se non è vero, è bem trovato.

- Crendeuspai, será mesmo?

- Nada oficialmente confirmado, mas é o que circula na boca do povo.

- Meu Deus, é mesmo um país surpreendente!

- Onda de boatos, sabe como é.

- Se há fumaça há fogo – alega a mulher.

- Pode ser que os milicos não viram com bons olhos uma canção que fala sobre flores vencendo canhões e, em morrer pela Pátria a viver sem razão. Nada mais do que o reflexo de uma época em que a repressão, como fungo, domina o Brasil cada dia com mais fúria – conclui o rapaz em tom preocupado.

- É.

- Se for mesmo verdade, entendo que é um aviso de que vem aí uma censura mais estúpida ainda, para acabar de vez com a liberdade de criação artística em solo tupiniquim. Não acha?

- Sabe o que acho, Math?

- Não.

- Se foi assim mesmo, tomara que a canção do Vandré vire mesmo um hino à liberdade entre os ativistas brasileiros, que arrebente a boca do balão.

Risos. Mathieu:

- Nosso cidadão não está bobo não, pelo contrário, está atento com o seu destino político. Foi isso que a gente viu em junho passado no Rio de Janeiro com a passeata dos 100 mil brasileiros desejosos de mudanças, marcando 1968 como um dos anos mais convulsivos do século XX.

- Sem dúvida.

- De qualquer forma, acho que o primeiro lugar merecia ser de Geraldo Vandré. No ano passado, teria que ter sido do Milton Nascimento e Fernando Brant, com a canção Travessia, aclamada até pela crítica.

- Outra decepção – protesta Suzana.

- Conceitualmente, a música dos mineiros foi a melhor do Festival passado. Eles criaram um jeito diferente de fazer música popular em Belo Horizonte, mostrando que é possível arranjar uma melodia pop com um viés ‘mais cabeça’. Concorda?

- Sim. Sim.

- Liga não. Os mineiros perderam o trem, mas não perderam a viagem. Nunca mais eles vão deixar de encher as esquinas do planeta de música e a cidade de Belo Horizonte de orgulho.

- Acredito.

- Nessa bagunça de estilo que assola a Música Popular Brasileira, o Clube da Esquina é a reinvenção que deu certo, casamento perfeito entre melodia e letra.

- Sem dúvidas.

- Essa trupe, movida a sonhos e ideais, que faz poesia musical com notas bem afinadas, está de malas prontas para o sucesso. A moçada, que tanto encanta a alma da gente com sua melodia, ainda vai divulgar a sonoridade mineira pelo país e o mundo, cantando onde o povo estiver. E mais: terão esses músicos suas canções entoadas por vozes de várias gerações, e seus nomes perpetuados nos anais do cancioneiro brasileiro, pode crer.

- Sim. Sim.

- A natureza dá o fruto a quem planta em terra fértil, não é assim?

Suzana entrefecha os olhos e canta um trecho de Travessia:

- Quando você foi embora fez-se noite em meu viver/Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar/Minha casa não é minha e nem é meu este lugar/Estou só e não resisto, muito tenho p’ra falar.

- Belos versos! – aclama o rapaz. - Sabe que ‘travessia’ é a última palavra do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

- Não. Quem disse a você?

- Salomão Borges. Poeta e colega lá na redação do jornal. Pai do Márcio, do Marilton, do Lô Borges..., artistas que compõem e cantam com Milton Nascimento, um dos melhores músicos de sempre.

Sem conter a admiração, ela:

- Sou fã de carteirinha deles. São incríveis!

- Hummm!

- Bobinho, por que não?! Gosto bastante das suas baladas - confessa Suzana contente, enquanto passava a mão de leve nas mechas meio que despenteadas de seus longos cabelos.



 

* FBN© - 2012 – Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: Passeata contra a Ditadura Militar no Brasil, com grande participação das mulheres.  Ilust.: Geraldo Vandré: https://www.youtube.com/watch?v=PDWuwh6edkY -  Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/15xv-pra-nao-dizer-que-nao-falei-de.html?zx=baa1870fc0585ec3  




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