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Atrizes e militantes contra a Ditadura Militar, Brasil/1968
Eva Todor, Tônia Carreiro, Eva Vilma e Leila Diniz.
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Detalhe da passeata contra a Ditadura Militar no Brasil,
com grande participação das mulheres que foram às ruas lutar por direitos iguais.
Numa
expressão de quem entende de música, Mathieu:
- Gostou
do resultado do Maracanãzinho?
- Eu,
hein!?... Como no ano passado, a canção que merecia ser campeã no III Festival
Internacional da Canção ficou em segundo lugar. Caminhando, de Vandré, é mil
vezes melhor, mas ficou em segundo lugar – observa Suzana, desapontada.
-
Concordo. Faturou o prêmio Sabiá, de Tom e Chico, mesmo com as vaias da plateia
que aclamou em peso a música de Geraldo Vandré.
Suzana,
depois de um gole de cerveja:
- Com
certeza, a canção do paraibano é muito, muito melhor! Outro olhar, cara.
-
Indiscutivelmente. Sem dúvida, a mais emblemática entre as canções concorrentes,
mostrando que é preciso esquecer o medo para cantar em seu país. Ao cunhar na
letra fortes imagens de aversão aos militares no poder, falando grosso, Vandré conquistou
a moçada e sua canção virou hino contra a Ditadura.
- Ah,
sim. Está tudo no contexto, e com boa musculatura. Só não vê quem não quer.
- Claro,
claro. Tanto é que, enquanto interpretava Caminhando, a galera logo entendeu
seu recado e, de pé como num campo de futebol na hora de um gol, aplaudiu a
canção sem parar.
- Sim,
sim, sim. Foi lindo, emocionante!
Mathieu,
eufórico:
- Vandré
mostrou garra, coragem e forte pegada libertária nesse momento político
brasileiro. Com o texto estruturado em bases realistas, de forma clara e
decisiva, teceu uma sofisticada arquitetura poética para sustentar uma mensagem
de protesto em sua canção. No refrão já disse tudo: Vem, vamos embora/Que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora/Não
espera acontecer...
- De
arrepiar, Math!
- O que
me impressiona é que ele expõe, com todas as notas, o que quer dizer aos outros
e, através de outros, o que pretende falar para si mesmo. Foi muito feliz! Canção
com essa força, Suzana, tem tudo para chegar ao topo das ‘paradas’ de sucesso
no Brasil inteiro.
- Tomara
– aplaude a mulher batendo palmas.
Mathieu
estica o braço com punho fechado, sorrindo:
- Vai
estourar, virar hits na boca do povo,
mesmo se for censurada.
- Caminhando e cantando/E seguindo a
canção/Somos todos iguais/Braços dados ou não/Nas escolas, nas ruas/Campos,
construções... – a professora, com voz exaltada, entoa outro trecho da
canção.
- Suzana,
sabe o que mais impressiona nesses festivais?
- Não.
- Mesmo
no auge do embate com a censura, uma nova geração de compositores está se
formando, apesar dos desafios encontrados pelos artistas no caldeirão da
Ditadura Militar, nos surpreendendo a cada momento. Querida, já atinou para isso?
- São os
nossos guerrilheiros da MPB.
- Pelo
que a gente vê, para os artistas de cabeça-feita, empenhados em fazer novas
leituras para a nossa música popular, a repressão política tem sido grande
fonte de inspiração para o avanço de nossa consciência crítica. Para esses
músicos é necessário tocar também com alma de brasileiro. Foi o que fizeram
nesses Festivais, interpretando as angústias indizíveis que país vive nesses
tempos de violência política.
-
Justamente.
- Como
músicas de protesto têm sua dinâmica em relação aos tempos, de forma criativa,
eles produziram letras com altos teores de subjetividade, mas que o público
entendeu rápido e apoia. Shows memoráveis!
- Isso
mesmo.
- Músicos engajados como Antônio
Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, Vinícius de Moraes, Caymmi, Chico, Caetano,
Gil, Milton, Baden e outras feras, estão aí fazendo, em alto e bom tom, inteligentes
incursões de publicidade antiditadura no Brasil. Todos na onda da voz afiada da
cantante e ativista argentina La Negra, que usa a música para traduzir a alma
do nosso povo, como arma contra os regimes militares na América Latina.
- La
Negra! – surpreende-se a mulher.
- Não
sabe?
- La
Negra!... La Negra!... Mercedes Sosa?
- Sim,
ela, a flor do campo argentino. Interprete que mostra sua inquietação política
na canção.
- Adoro.
- De voz
firme empolga plateias por todo o mundo, iluminada pelo espectro da chilena
Violeta Parra.
- Outra
que me emociona muito.
- Não é
para menos. Violeta é a pioneira da canção comprometida com a luta dos
oprimidos e explorados dos sul-americanos. Áspera, intensa e visceral ela ganha
a simpatia do mundo.
Suzana,
depois de tomar um pouco de cerveja:
- Um
brinde à La Negra! Um brinde ao Vandré! U m
brinde à Violeta!
- Tim-Tim
- levanta o copo o rapaz.
-
Tim-Tim.
- Vandré
não se sagrou vencedor do Festival, mas chegou à frente com a expressiva e
ruidosa canção, mostrando que é preciso esquecer o medo para soltar a voz numa
ditadura. Um barril de pólvora! Caminhando está sendo celebrada como um
autêntico hino da contracultura. Isso que importa.
- Arre!
Mas quem levou a melhor foi a canção Sabiá. Não concordo. Eu a considero
piegas, tipo canto de igreja. Morninha demais para o meu gosto!
Mathieu
franze a testa. E revela:
- Corre
um boato que ordem verde-oliva forçou a TV Globo não dar a vitória ao Geraldo Vandré.
Meio redundante, mas...
- Será?
- Não
creio, tampouco não duvido convictamente. O governo brasileiro anda bastante desconfiado
de nossos compositores.
Suzana
põe no rapaz um olhar interrogativo:
- Háháhá!
Então foi assim, Math?
- Se non è vero, è bem trovato.
-
Crendeuspai, será mesmo?
- Nada
oficialmente confirmado, mas é o que circula na boca do povo.
- Meu
Deus, é mesmo um país surpreendente!
- Onda de
boatos, sabe como é.
- Se há fumaça
há fogo – alega a mulher.
- Pode
ser que os milicos não viram com bons olhos uma canção que fala sobre flores
vencendo canhões e, em morrer pela Pátria a viver sem razão. Nada mais do que o
reflexo de uma época em que a repressão, como fungo, domina o Brasil cada dia
com mais fúria – conclui o rapaz em tom preocupado.
- É.
- Se for
mesmo verdade, entendo que é um aviso de que vem aí uma censura mais estúpida ainda,
para acabar de vez com a liberdade de criação artística em solo tupiniquim. Não
acha?
- Sabe o
que acho, Math?
- Não.
- Se foi
assim mesmo, tomara que a canção do Vandré vire mesmo um hino à liberdade entre
os ativistas brasileiros, que arrebente a boca do balão.
Risos.
Mathieu:
- Nosso
cidadão não está bobo não, pelo contrário, está atento com o seu destino
político. Foi isso que a gente viu em junho passado no Rio de Janeiro com a
passeata dos 100 mil brasileiros desejosos de mudanças, marcando 1968 como um
dos anos mais convulsivos do século XX.
- Sem
dúvida.
- De
qualquer forma, acho que o primeiro lugar merecia ser de Geraldo Vandré. No ano
passado, teria que ter sido do Milton Nascimento e Fernando Brant, com a canção
Travessia, aclamada até pela crítica.
- Outra
decepção – protesta Suzana.
-
Conceitualmente, a música dos mineiros foi a melhor do Festival passado. Eles
criaram um jeito diferente de fazer música popular em Belo Horizonte, mostrando
que é possível arranjar uma melodia pop com um viés ‘mais cabeça’. Concorda?
- Sim.
Sim.
- Liga
não. Os mineiros perderam o trem, mas não perderam a viagem. Nunca mais eles
vão deixar de encher as esquinas do planeta de música e a cidade de Belo
Horizonte de orgulho.
-
Acredito.
- Nessa bagunça
de estilo que assola a Música Popular Brasileira, o Clube da Esquina é a
reinvenção que deu certo, casamento perfeito entre melodia e letra.
- Sem
dúvidas.
- Essa
trupe, movida a sonhos e ideais, que faz poesia musical com notas bem afinadas,
está de malas prontas para o sucesso. A moçada, que tanto encanta a alma da
gente com sua melodia, ainda vai divulgar a sonoridade mineira pelo país e o mundo,
cantando onde o povo estiver. E mais: terão esses músicos suas canções entoadas
por vozes de várias gerações, e seus nomes perpetuados nos anais do cancioneiro
brasileiro, pode crer.
- Sim.
Sim.
- A
natureza dá o fruto a quem planta em terra fértil, não é assim?
Suzana
entrefecha os olhos e canta um trecho de Travessia:
- Quando você foi embora fez-se noite em meu
viver/Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar/Minha casa não é
minha e nem é meu este lugar/Estou só e não resisto, muito tenho p’ra falar.
- Belos
versos! – aclama o rapaz. - Sabe que ‘travessia’ é a última palavra do livro
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
- Não.
Quem disse a você?
- Salomão
Borges. Poeta e colega lá na redação do jornal. Pai do Márcio, do Marilton, do
Lô Borges..., artistas que compõem e cantam com Milton Nascimento, um dos
melhores músicos de sempre.
Sem
conter a admiração, ela:
- Sou fã
de carteirinha deles. São incríveis!
- Hummm!
-
Bobinho, por que não?! Gosto bastante das suas baladas - confessa Suzana
contente, enquanto passava a mão de leve nas mechas meio que despenteadas de
seus longos cabelos.
* FBN© - 2012 – Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores..., NUMA
NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto.
Iustr.: Passeata contra a Ditadura Militar no Brasil, com grande participação
das mulheres. Ilust.: Geraldo Vandré: https://www.youtube.com/watch?v=PDWuwh6edkY - Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/15xv-pra-nao-dizer-que-nao-falei-de.html?zx=baa1870fc0585ec3
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