*
Chagal
Amantes de Montparnasse- óleo sobre tela.
Suzana
confere as horas no relógio de ouro que tinha no pulso. Surpresa, alerta:
- Chiiiiii!
Quase meia-noite.
-
Tic-tac. Tic-tac - solfeja o rapaz, sorrindo entre tragadas dispersas do
cigarro.
- Tenho
que me recolher.
- Cansada?
- Não.
Passei o dia à toa, à toa...
- Então?
- Levanto
cedo para a missa de domingo na Igreja de Lourdes.
Como lhe
contei, a religião é bastante forte na minha vida – justifica a mulher.
Mathieu
enche seu copo com o resto de cerveja. E sugere:
- Por que
não tomamos a saideira?
-
Saideira?!...
- Queria
papear só mais um pouquinho. Se tiver a fim, claro.
- Bem,
bem...
-
Conversar com uma pessoa que conversa bem, não tem nada melhor.
- Bem...
O rapaz
distende o braço para a mulher. Devagarzinho, toma-lhe as duas mãos.
- Ou acha
que já passamos da conta?
Nesse
momento, a expectativa criou um rápido silêncio entre os dois. Em seguida,
sorrindo ela diz:
- Tudo
bem, encasqueta não.
- Melhor
assim – arremata ele com a garrafa de cerveja na mão, enquanto bebia o restinho
do líquido no gargalho.
Suzana
sorri ligeiramente alcoolizada. Levanta-se da poltrona e, antes de sair, alonga
sua silhueta.
- Aguenta
aí que vou pegar.
-
Asseguro não sufocar mais seus ouvidos com tantas divagações libertárias, muito
menos com a ladainha entediante de um escribazinho.
- Não.
Não é isso. O que não podemos é ficar aqui até o dia clarear.
- Claro.
- Então tá!
Risos.
Mathieu:
- Quero
ir ao banheiro, jogo rápido.
- Sim.
- Eu vou
em um pé e volto no mesmo. Prometo não respingar no chão, tenho a manha.
- Anda,
vai lá - aponta o local a amiga, já recuando-se para a cozinha.
Com um
movimento ligeiro de cabeça para trás, Mathieu fica de pé. Em seguida, segue
para a toalete, onde demora alguns segundos. Suzana volta com outra garrafa de
cerveja e encontra o amigo, novamente, acomodado no sofá. Serve os copos e
torna a sentar na mesma poltrona à sua frente.
Ao cruzar
as pernas, o rapaz, olhando de viés, pode ver as rendas peroladas da calcinha
rosa que ela usava, mas foi só o tempo em que se ajeitava na poltrona, antes de
esticar a saia e acender outro mentolado.
Mathieu
bota um pouco da cerveja na boca, mas antes de engolir o líquido degusta-o por
um minuto. Em seguida, estalando a língua, exclama:
- Ahhh,
que delícia! Tudo em cima, no ponto.
- Prefiro
menos gelada. Percebo melhor o sabor – admite a mulher.
- É
possível. Garantem os cervejólogos que muito gelada anestesia as pupilas
gustativas e não deixa o apreciador sentir as nuances da bebida. Algumas marcas
belgas vão ficando mais ricas à medida que se esquentam.
- Eu sei.
- Na
Europa o hábito é tomar cerveja à temperatura ambiente. Num país tropical
como o nosso, geladinha pega bem, ‘né?
- De
qualquer forma, prefiro não tão gelada – repete Suzana.
- Na
idade média a cerveja era considerada o santo ‘pão líquido’ de cada dia.
Produzida nos Mosteiros para alimentar os religiosos, como também para os
pobres.
- Háháhá!
- Eu
escolho a cerveja a qualquer outra bebida, mesmo com o risco de acumular
gorduras abdominais. Olha, eu já tenho a minha bem saliente – mostra o rapaz,
batendo as mãos na barriga.
A mulher
escorrega, delicadamente, as mãos nas faces, olhando para o rapaz:
-
Barriguinha de chope?
- Ã-Hã.
- Tem lá
seu charme. Não pode é passar disso.
Risos.
Mathieu:
- Cansei
sua beleza. Falo adoidado, ‘né?
- Nada
disso. Conversar com você uma experiência de vida.
- Obá!
-
Apresenta uma prosa inteligente, divertida. Sempre olhando no olho de quem está
do seu lado, o que é bom. Assim, a conversa flui sem afetação.
- De
qualquer forma, serei mais ponderado na próxima vez. Até porque preciso dar
oportunidade a você falar.
Suzana
reclina a cabeça de lado do sofá, fecha os olhos e fica inerte, como se
envolvida por um silêncio interrogativo. Depois, leva uma das mãos à cabeça,
apanha um chumaço de cabelos e, distraidamente, passa a enrolá-los nos dedos
até formar um pequeno anel. Na rua, a calma era completa.
Calados
permanecem os dois por um tempo, absortos em seus pensamentos. Apenas bebiam e
fumavam. Com as badaladas do relógio da Igreja São José, os olhos da mulher se
acendem, rapidamente. Meio intrincada expressa:
- Ai, meu
bom Deus!
Mathieu
levanta a cabeça e dirige-lhe um olhar interrogador:
- Em que
pensava?
-
Desculpe-me, estava distraída. Minha imaginação andava noutro lugar, viajava.
- No
mundo da lua?
- Lua
não. Muito perto. De Marte. Às vezes me pego flutuando na estratosfera. O corpo
está aqui, mas a cabeça... - conta Suzana, com certo encanto.
- Por que
diz isso?
-
Tolices. Coisas de minha cachola.
Pausa. O
rapaz atiça:
- Existem
silêncios cheios de significado, não?
- Sim.
Pensar é uma coisa muito perigosa. Muitas vezes, a gente pensa duas coisas ao
mesmo tempo. O que é pior.
Apanhando
a garrafa com uma das mãos para reencher seu copo, Mathieu:
- Posso
saber pelo menos de uma?
- Bobeira.
- Daria
um doce...
Depois de
um breve silêncio, ela retoma o fio da narrativa:
- Qual a
pergunta mesmo? Desculpe-me, estava psicanalisando você.
-
A mim?
- Tentava
fazer uma correlação entre o pouco da sua personalidade que conheço e a figura
Mathieu na sua essência.
- Sim. E
ai?
- Me
parece um rapaz muito curioso.
- Também.
- Então
me responde: é possível ter amigo de sexo oposto sem que, pelo menos uma das
partes, tenha algum interesse?
- Questão
polêmica. Mesmo na amizade, eu imagino que deve existir um componente de
sedução. Se não...
- Se não?
- Ah,
Suzana, é sempre bom ter alguém do sexo oposto ao nosso lado. É interessante,
estimulante. Você se sente querido, valorizado. Sei lá...
- Sem
colocar a amizade em risco?
- Pode
até ser, mas é um caso raro.
- Raro?
- Quando
a afinidade excede as fronteiras do sexo, é bom que seja mútua, se não a
relação pode se torna ameaçadora. Quem sabe não passa de uma paixonite aguda e
assim a coisa não apresentará sopro para ir muito longe. Ai, ai a amizade corre
o risco de chegar ao fim, sobrando somente o corpo.
-
Ah, claro.
- Eu, por
exemplo, tenho amiga que sexualmente nunca aconteceu nada entre a gente. No
caso, a ligação é a paixão pela Literatura, não desce ao corpo. Quando quero
conversar, eu procuro por ela e vice-versa. Saímos para tomar café, trocar
ideias. Tudo numa boa.
- Café?
- Pode
duvidar.
- Sei.
- Falo
sério.
-
Conversa fiada.
- Não é
não. Amigas são irmãs que a gente escolhe, essenciais para quem quer ter uma
vida mais saudável, ajuda no sistema imunológico.
Pausa.
Suzana:
- Você é
mesmo do outro mundo, cara!
- Sou?
Suzana
baixa o olhar para o relógio novamente, que apontava meia-noite e meia.
- Deus
Santo, é tarde! Vamos dormir?
- Vamos –
aprova o rapaz espreguiçando-se na poltrona.
Imediatamente,
ela indica com a cabeça o quarto de hóspedes.
- Você
dorme naquele ali. Matilde deixou a cama pronta. Toalha, sabonete, tudo lá. O
banheiro fica em frente, você já sabe.
- Curto
um banho antes de cair no sono.
- Fique à
vontade.
- Por
onde ela anda?
- Quem?
-
Matilde.
- Passa
os dias de folga com a família, em Brumadinho.
Mathieu
assume um ar tranquilo. Levanta-se. Sem tirar os olhos da mulher toma a sobra
de cerveja do copo, dizendo com um sorriso no rosto:
- Vai,
vai se deitar, criatura. Morre de sono.
- Já
começo a bocejar.
- Tá bom. Tá bom, você venceu. Vou nessa também. Durma com os anjos,
princesa.
-
Obrigada. Passe bem, rapaz. A gente logo se vê.
- Eu
espero você. Boa noite.
Suzana
estende uma das mãos que ele prende entre as suas e a beija com ternura. De
olhos fechados, mãos em oração, ela deixa a sala, curvada sobre si mesma,
empunhando o próprio ventre.
O rapaz,
ainda de pé ao lado da poltrona, permanece olhando a amiga que desaparecia no
corredor, enquanto bebia, lentamente, a cerveja que ela deixou no copo.
* FBN© - 2012 – Dois Corpos Inquietos na Noite..., NUMA
NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida
Pinto. Iustr.: Os amantes de Montparnasse - Chagal Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/33xxxiii-dois-corpos-inquietos-na-noite.html?zx=d9403ea573b677ef
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