2011-01-03

32/XXXII – DOIS CORPOS INQUIETOS NA NOITE.

*

Chagal

 
Amantes de Montparnasse- óleo sobre tela. 





Suzana confere as horas no relógio de ouro que tinha no pulso. Surpresa, alerta:
- Chiiiiii! Quase meia-noite.
- Tic-tac. Tic-tac - solfeja o rapaz, sorrindo entre tragadas dispersas do cigarro.
- Tenho que me recolher.
- Cansada?
- Não. Passei o dia à toa, à toa...
- Então?
- Levanto cedo para a missa de domingo na Igreja de Lourdes.
Como lhe contei, a religião é bastante forte na minha vida – justifica a mulher.
Mathieu enche seu copo com o resto de cerveja. E sugere:
- Por que não tomamos a saideira?
- Saideira?!...
- Queria papear só mais um pouquinho. Se tiver a fim, claro.
- Bem, bem...
- Conversar com uma pessoa que conversa bem, não tem nada melhor.
- Bem...
O rapaz distende o braço para a mulher. Devagarzinho, toma-lhe as duas mãos.
- Ou acha que já passamos da conta?
Nesse momento, a expectativa criou um rápido silêncio entre os dois. Em seguida, sorrindo ela diz:
- Tudo bem, encasqueta não.
- Melhor assim – arremata ele com a garrafa de cerveja na mão, enquanto bebia o restinho do líquido no gargalho.
Suzana sorri ligeiramente alcoolizada. Levanta-se da poltrona e, antes de sair, alonga sua silhueta.
- Aguenta aí que vou pegar.
- Asseguro não sufocar mais seus ouvidos com tantas divagações libertárias, muito menos com a ladainha entediante de um escribazinho.
- Não. Não é isso. O que não podemos é ficar aqui até o dia clarear.
- Claro.
- Então !
Risos. Mathieu:
- Quero ir ao banheiro, jogo rápido.
- Sim.
- Eu vou em um pé e volto no mesmo. Prometo não respingar no chão, tenho a manha.
- Anda, vai lá - aponta o local a amiga, já recuando-se para a cozinha.
Com um movimento ligeiro de cabeça para trás, Mathieu fica de pé. Em seguida, segue para a toalete, onde demora alguns segundos. Suzana volta com outra garrafa de cerveja e encontra o amigo, novamente, acomodado no sofá. Serve os copos e torna a sentar na mesma poltrona à sua frente.
Ao cruzar as pernas, o rapaz, olhando de viés, pode ver as rendas peroladas da calcinha rosa que ela usava, mas foi só o tempo em que se ajeitava na poltrona, antes de esticar a saia e acender outro mentolado.
Mathieu bota um pouco da cerveja na boca, mas antes de engolir o líquido degusta-o por um minuto. Em seguida, estalando a língua, exclama:
- Ahhh, que delícia! Tudo em cima, no ponto.
- Prefiro menos gelada. Percebo melhor o sabor – admite a mulher.
- É possível. Garantem os cervejólogos que muito gelada anestesia as pupilas gustativas e não deixa o apreciador sentir as nuances da bebida. Algumas marcas belgas vão ficando mais ricas à medida que se esquentam.
- Eu sei.
- Na Europa o hábito é tomar cerveja à temperatura ambiente. Num país tropical como o nosso, geladinha pega bem, ‘né?
- De qualquer forma, prefiro não tão gelada – repete Suzana.
- Na idade média a cerveja era considerada o santo ‘pão líquido’ de cada dia. Produzida nos Mosteiros para alimentar os religiosos, como também para os pobres.
- Háháhá!
- Eu escolho a cerveja a qualquer outra bebida, mesmo com o risco de acumular gorduras abdominais. Olha, eu já tenho a minha bem saliente – mostra o rapaz, batendo as mãos na barriga.
A mulher escorrega, delicadamente, as mãos nas faces, olhando para o rapaz:
- Barriguinha de chope?
- Ã-Hã.
- Tem lá seu charme. Não pode é passar disso.
Risos. Mathieu:
- Cansei sua beleza. Falo adoidado, ‘né?
- Nada disso. Conversar com você uma experiência de vida.
- Obá!
- Apresenta uma prosa inteligente, divertida. Sempre olhando no olho de quem está do seu lado, o que é bom. Assim, a conversa flui sem afetação.
- De qualquer forma, serei mais ponderado na próxima vez. Até porque preciso dar oportunidade a você falar.
Suzana reclina a cabeça de lado do sofá, fecha os olhos e fica inerte, como se envolvida por um silêncio interrogativo. Depois, leva uma das mãos à cabeça, apanha um chumaço de cabelos e, distraidamente, passa a enrolá-los nos dedos até formar um pequeno anel. Na rua, a calma era completa.
Calados permanecem os dois por um tempo, absortos em seus pensamentos. Apenas bebiam e fumavam. Com as badaladas do relógio da Igreja São José, os olhos da mulher se acendem, rapidamente. Meio intrincada expressa:
- Ai, meu bom Deus!
Mathieu levanta a cabeça e dirige-lhe um olhar interrogador:
- Em que pensava?
- Desculpe-me, estava distraída. Minha imaginação andava noutro lugar, viajava.
- No mundo da lua?
- Lua não. Muito perto. De Marte. Às vezes me pego flutuando na estratosfera. O corpo está aqui, mas a cabeça... - conta Suzana, com certo encanto. 
- Por que diz isso?
- Tolices. Coisas de minha cachola.
Pausa. O rapaz atiça:
- Existem silêncios cheios de significado, não?
- Sim. Pensar é uma coisa muito perigosa. Muitas vezes, a gente pensa duas coisas ao mesmo tempo. O que é pior.
Apanhando a garrafa com uma das mãos para reencher seu copo, Mathieu:
- Posso saber pelo menos de uma?
- Bobeira.
- Daria um doce...
Depois de um breve silêncio, ela retoma o fio da narrativa:
- Qual a pergunta mesmo? Desculpe-me, estava psicanalisando você.
- A mim?
- Tentava fazer uma correlação entre o pouco da sua personalidade que conheço e a figura Mathieu na sua essência.
- Sim. E ai?
- Me parece um rapaz muito curioso.
- Também.
- Então me responde: é possível ter amigo de sexo oposto sem que, pelo menos uma das partes, tenha algum interesse?
- Questão polêmica. Mesmo na amizade, eu imagino que deve existir um componente de sedução. Se não...
- Se não?
- Ah, Suzana, é sempre bom ter alguém do sexo oposto ao nosso lado. É interessante, estimulante. Você se sente querido, valorizado. Sei lá...
- Sem colocar a amizade em risco?
- Pode até ser, mas é um caso raro.
- Raro?
- Quando a afinidade excede as fronteiras do sexo, é bom que seja mútua, se não a relação pode se torna ameaçadora. Quem sabe não passa de uma paixonite aguda e assim a coisa não apresentará sopro para ir muito longe. Ai, ai a amizade corre o risco de chegar ao fim, sobrando somente o corpo.
         - Ah, claro.
- Eu, por exemplo, tenho amiga que sexualmente nunca aconteceu nada entre a gente. No caso, a ligação é a paixão pela Literatura, não desce ao corpo. Quando quero conversar, eu procuro por ela e vice-versa. Saímos para tomar café, trocar ideias. Tudo numa boa.
- Café?
- Pode duvidar.
- Sei.
- Falo sério.
- Conversa fiada.
- Não é não. Amigas são irmãs que a gente escolhe, essenciais para quem quer ter uma vida mais saudável, ajuda no sistema imunológico.
Pausa. Suzana:
- Você é mesmo do outro mundo, cara!
- Sou?
Suzana baixa o olhar para o relógio novamente, que apontava meia-noite e meia.
- Deus Santo, é tarde! Vamos dormir?
- Vamos – aprova o rapaz espreguiçando-se na poltrona.
Imediatamente, ela indica com a cabeça o quarto de hóspedes.
- Você dorme naquele ali. Matilde deixou a cama pronta. Toalha, sabonete, tudo lá. O banheiro fica em frente, você já sabe.
- Curto um banho antes de cair no sono.
- Fique à vontade.
- Por onde ela anda?
- Quem?
- Matilde.
- Passa os dias de folga com a família, em Brumadinho.
Mathieu assume um ar tranquilo. Levanta-se. Sem tirar os olhos da mulher toma a sobra de cerveja do copo, dizendo com um sorriso no rosto:
- Vai, vai se deitar, criatura. Morre de sono.
- Já começo a bocejar.
- bom. bom, você venceu. Vou nessa também. Durma com os anjos, princesa.
- Obrigada. Passe bem, rapaz. A gente logo se vê.
- Eu espero você. Boa noite.
Suzana estende uma das mãos que ele prende entre as suas e a beija com ternura. De olhos fechados, mãos em oração, ela deixa a sala, curvada sobre si mesma, empunhando o próprio ventre.
O rapaz, ainda de pé ao lado da poltrona, permanece olhando a amiga que desaparecia no corredor, enquanto bebia, lentamente, a cerveja que ela deixou no copo.
 
 
* FBN© - 2012 – Dois Corpos Inquietos na Noite..., NUMA NOITE EM 68 - Categoria: Romance de Geração -  Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  Os amantes de Montparnasse - Chagal  Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/33xxxiii-dois-corpos-inquietos-na-noite.html?zx=d9403ea573b677ef
 
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