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Lucy Citty Ferreira
Depois daquele casamento, vertigem e desconstrução - Autorretrato, óleo sobre tela.
Suzana serve ao
amigo um pouco de cerveja.
- Podemos fazer outro brinde?
- Dessa
vez...
- A algum momento do passado em que fui feliz.
Risos. Erguem os copos. Mathieu:
- A algum momento do passado em que fui feliz.
Risos. Erguem os copos. Mathieu:
-
Tim-Tim.
Depois de uma reflexão, ela:
Depois de uma reflexão, ela:
- Hiiiiiiii! Quer dizer que em breve, desgarrada do marido vou
engrossar o bloco das separadas, das marginalizadas..., das descaídas que
perderam a linha?
- Sem
essa.
- Nossa
sociedade tem muito preconceito, Math. Você sabe disso.
- A coisa
está mudando.
- Háháhá! Mulher desquitada no Brasil ainda é como carta fora do
baralho, estigmatizada por destruir uma família. Cidadã de segunda classe que
deve andar de roupa até os pés, para não afrontar o decoro público. Caso
contrário, pode ficar mal vista. Penitência que uma mulher separada no Brasil
carrega para o resto da vida. Bem sabe disso, não é?
- Não deve pensar assim.
- São os efeitos colaterais. Fazer o quê? Se eu vou largar do
marido, tenho mesmo é que encarar o pré-conceito, enfrentar a boca do povo e
pagar o custo que a sociedade impõe por subverter as regras sociais.
- Ô, querida, não se esqueça que nossa dor existencial vem
também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e
o que pensam os outros.
- É.
- Mulheres largadas! Mulheres faladas! Paradigmas que, dia após
dia, estão sendo quebrados e não geram mais tanta surpresa. Pelo andar da
carruagem, daqui a pouco isso será normal.
- Você que pensa. Mudança que ainda vai levar um bom tempo para
acontecer de fato.
- Acho que não.
- Claro que sim, Math. Nós mexemos com uma ferida ainda muito
aberta na comunidade. Atrai os olhares de todo mundo.
- Ora, querida, o mundo caminha para mudanças. O Brasil também.
- O tabu aqui é maior, cara. A desquitada ainda é vista como
gente fora do contexto, à mercê da desaprovação social que deve ser tratada com
desconsideração e desprezo. De acordo com Einstein, é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito – explana
Suzana.
- Isso é outra conversa.
- O que me intriga, Math, é que os homens quando largam as
mulheres não são recriminados em lugar nenhum, nem vistos com maus olhos. Arre!
- Lamentavelmente, ainda acontece.
- Apesar da revolução de costumes e dos interditos que foram
derrubados nos últimos anos, o livre-arbítrio da mulher ainda segue como objeto
de desejo bem distante. Só não vê quem não quer.
Pausa. Suzana continua:
- Trata-se de uma exposição que grande parte da sociedade, que é
casada, ainda se choca, mesmo que ela seja um modelo de virtude.
- Ora, amiga, o importante é não ter medo do medo dos outros.
Afrontar esse preconceito é uma obrigação de todos nós – abrevia o rapaz.
A mulher dá um tapa no ar, meio injuriada:
- Difícil, cara. Difícil. Ainda há problemas de aceitação. Pelo
que a gente vê, uma separada experimenta toda sorte de abusos por onde passa,
provoca reações. Um comentário aqui, uma olhada ali... Isso quando não são
vítimas de piadinhas indecorosas e grosseiras, ou xingadas na rua pelos mais
intolerantes. Sei que vou sofrer muito para me adaptar à nova realidade, mas
terei que acostumar com essa longa data de solidão, que terei pela frente.
- Ihhhhhhhh!
- Ouço falar de gente tão apoquentada com a presença de uma
desquitada em via pública, que até vira o rosto ao cruzar com uma delas. Isso
quando não muda de calçada alegando qualquer imbecilidade..., bem nos moldes
dos Hardins, seguidores ultra ortodoxos do judaísmo - lembra Suzana.
- Deixe de bobeira, criatura!
- É mentira?
- Ora, ora! No mundo de hoje, cada vez mais as pessoas veem
menos as pessoas que passam por elas na rua. Frieza que cresce a cada dia, pode
crer.
- Ô, Math! O povo de um modo geral é preconceituoso e vai
continuar sendo. Ainda constrói travas, amarras morais e religiosas que impedem
as separadas de viver bem, mesmo que sejam de boa família. Coisa que afeta um
número expressivo da população mundial. Estou mentindo?
Pausa. Mathieu:
- Tenho que admitir que tudo isso é possível, principalmente,
numa sociedade tacanha e arrogante como a nossa. Triste, ‘né?
- Querido, vejo que, até em família, o preconceito se manifesta
de forma imoral. Pais e irmãos ficam envergonhados por ter entre eles uma
mulher que não conseguiu equilibrar seu casamento. Ainda é um baque para todos,
como se estivesse ali uma fêmea desvirtuando o sagrado teto familiar. Não tem
jeito, essa é a lógica patriarcal que ainda rege nossa sociedade puritana.
Arre!
- Nada vergonhoso. Nada. Mulher desquitada não agrega nenhum
juízo de valor que se possa considerar antissocial – esforça o rapaz em tom
brando.
- Ora, Math, aí que a barra pesa mais. Discriminação na rua a
gente até tira de letra. Pior é o preconceito refletido em casa.
- Acredito. Acredito.
- Tremo só de pensar nisso!
- Olha aqui: ninguém deve dar bola para o que os outros falam ou
pensam de nós. Mulher que se assumir separada nesses termos é boba. Tenha
sempre isso em mente, viu?
Ela levanta os olhos para o alto, dizendo:
- Deus há de me dar força. Nada para ele é impossível, não é
mesmo?
- Maravilha!
- E você, Math, não vai mudar sua opinião sobre mim?
- Ora, menina, nunca. Quero a sua felicidade, casada ou
separada, não importa.
- Agradeço.
- Pois então, levante a cabeça e siga em frente. Comece de novo,
reinicie quantas vezes precisar e vá onde seu coração mandar. Não se deixe
vencer pela dor, muito menos permita que o sol despareça do seu caminho, viu?
- Obrigada pela força, querido.
- Tim-Tim.
- Sem brincadeira, querido, acho que esse estigma de mulher
largada no Brasil é um preconceito que mostra o reflexo do atraso nos países da
América Latina, correto?
- Não é por acaso que a maioria da população do Continente Sul
Americano é pobre, atrasada e vive debaixo de ditaduras. A Europa é outra
coisa. A mesma coisa vale para os EUA. Tenho fé que a modernidade, vista em
nações de primeiro mundo, não demora chega por aqui.
- Pago para ver – afirma a mulher com descrença
- Vai chegar. A lista de casais desquitados no Brasil não
para de crescer, pressionando nossos políticos a votar a Lei do Divórcio, que
já tramita na casa há bastante tempo.
- Tomara.
- Muitos parlamentares acreditam que, depois de aprovada a Lei,
será mais fácil se separar, proporcionando até mais respeito entre os cônjuges.
Esse é o comportamento que se vê em países onde o Divórcio já foi aprovado. No
Uruguai, desde 1907, a sociedade teve o Divórcio liberado.
- Ai, nem acredito! Nem acredito!
- Temos avanços. No xadrez das novas relações matrimonias
discutidas no Congresso Nacional, sob a batuta do Senador Nelson Carneiro, boa
parte dos parlamentares não medem esforço para, o quanto antes, aprovar a
emenda que pretende implantar a lei da dissolução legal do casamento. Com o
apoio em massa dos congressistas, não demora o Desquite vira coisa do passado.
- Ô, Math, só Deus sabe quando! Estamos numa ditadura linha
dura, esqueceu?
- Nelson Carneiro, por incrível que pareça, não encontrou
resistência no Poder Executivo. O que pegou mesmo foi a intransigência de
Igreja Católica, que ainda não se convenceu do avanço social, demonstrando medo
de disparar o número de separações no Brasil.
- Talvez.
- Desde 1951, quando o parlamentar apresentou seu projeto
divorcista, vem protagonizando debates com a ala mais conservadora do clero,
principalmente, com o Padre Arruda Câmara. Sacerdote duro na queda, não cede.
Mesmo ciente de que contraria a encíclica Gaudium et Sper, do Papa Paulo VI,
que defende um olhar mais cuidadoso da Igreja para as mudanças da sociedade.
Suzana abre um sorriso incrédulo. E repete:
- Pago para ver.
- Questão de tempo. Primeiro, aguardar a conscientização de um
número cada vez maior dos Parlamentares, depois vencer a aversão da Igreja que
já devia ter nomeado São Pedro, que é o protetor das viúvas, para acastelar as
separadas também. Não?
- Ah, Math!
- No meu ponto de vista, a Igreja comete um grande erro ao
discriminar, principalmente, a mulher separada. É cruel. Sem a menor complacência
com os desquitados, descreve o fato com alta morbidez psicológica, traçado com
a frieza de um relatório cirúrgico. Absurdo!
- Deve ter suas razões.
- Que nada! A Igreja se considera a fonte de toda a ética,
baseada em regras absolutas e leis arcaicas, que disseminam o medo entre seus
fiéis. Isso que necessita acabar!
- Ah, Math!
- Não é a realidade que precisa ser mudada, mas a doutrina
religiosa que continua em patamares obsoletos. Se Deus a tudo observa, deve
estar bem constrangido com seus representantes na Terra!
- Hum?
- Secularmente tangidos pela pureza, muitos deles só agora
começam a se sentir gente de verdade, humanos ao pé da letra. Veja o exemplo
dos sacerdotes que geram ‘bastardos’ a todo momento.
A mulher inquieta-se.
Abana a cabeça, reposicionando-se na poltrona, rebatendo:
- Não é regra geral, um caso ou outro.
- Santa ingenuidade!
- Ora, cara, ninguém está livre de cometer um pecado, mesmo
eles. São humanos.
Mathieu tomando um gole de cerveja:
- Até compreendo a safadeza desses padrecos. Vivem cercados por
mulheres que procuram uma benção na esperança de um conforto imediato, e coisas
mais. A carne é o território do pecado, meu amor! O cristianismo é que precisa
mexer nas suas raízes e abandonar o dualismo entre corpo e espírito, que
segrega as mulheres e impõe uma ética sexual incompatível com o presente.
- Não. Não é por ai.
- A carne é fraca. Não há cristão que resiste à tentação, mesmo
dotado de convicções morais para combater as incertezas mundanas ao seu redor.
- Bobo!
- Esses safadinhos, que tropeçam no romano diagnóstico da
cristandade, continuam e vão continuar a existir, mesmo irritados com o
princípio de que Deus está em toda parte, vê tudo, sabe de tudo e não há como
mentir para ele.
- Math!
- Mas, se assim for, penso que todos os clérigos que cometem
suas extravaganciazinhas ganham meu perdão. Têm mais é que valorizar o momento
de boas safras e não por fim nessas festas da carne. Nosso tempo é limitado, e
curto demais.
Pausa. Suzana segura:
- O Senhor coloca todos à prova, ainda que seja um eclesiástico.
Fique você sabendo, querendo ou não, que Deus é a lei e o legislador do
universo, jamais falhará.
- Balela! Sabem os ‘curas’ que, quando o ser humano perde a
autonomia dos seus sonhos, a vida deixa de ter graça, mesmo para um salvador de
almas. Portanto, diante do olhar adormecido de seu Senhor, esses padrecos
pintam e bordam por ai, impunemente.
Suzana com um ligeiro sorriso:
- Você é fogo, hein?
- Sem receio de incorrer em perjúrio diante das leis divinas,
digo que não há voto de castidade que resista à sensualidade de uma linda e
fogosa mulher, que sabe usar bem o seu corpo bem traçado de curvas.
Incontestável obra-prima de um deus bem caprichoso!
- Obra do Capeta.
- Pouco importa se é obra do ‘demo’. Na evolução da espécie
humana, Lúcifer tem lá sua parcela de contribuição. Não fossem as guerras e a
ambição do ser humano, a tecnologia seria hoje um termo bem menos expressivo
entre nós.
- Ô, Math!
- Ok. Ok. Ô, Suzana, torço para que seja uma mulher separada sem
esses ‘grilos’ todos na cabeça. Torço para que triunfe nessa empreitada com
equilíbrio, segurança e metas bem definidas. E reencontre a felicidade, viu?
- Sim, sim. Só espero que os desafetos não me afetem tanto. E
que os afetos não me faltem.
- O negócio, querida, é não tirar os pés no chão. E, como dizem
os avisos nos trilhos de trem de sua Cordisburgo: para, olha, escuta. Só
depois, segue adiante.
A mulher beija o rapaz no rosto.
A mulher beija o rapaz no rosto.
- Voce existe mesmo?!... Nunca pensei
achar uma pessoa assim na vida.
Risos. Ela
continua:
- Obrigada pela força, querido. Pois
fica sabendo que toda pessoa que pratica valores humanos, revela o
cristianismo, essa alegria que nos move. Mesmo descrente de muita coisa, sinto
que você é meu anjo bom, aquele anjo que veio para orvalhar minhas preces.
- Anjo bom?
- Quero dizer que você é um cara especial. Respeita, compreende
e admira a alma feminina, ensina a viver. É dez. Leva-me a pensar em coisas que
eu não perceberia naturalmente e, mais do que isso, me faz enxergar o mundo com
outros olhos.
- Isso é bom.
- Vai me deixar mal acostumada, viu?
Mathieu ri, deliciado. Devolve-lhe o beijo, recitando:
- Renda-se, como eu me
rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em
entender, viver ultrapassa qualquer entendimento - alerta Clarice
Lispector.
- Clarice!
- Ela vive dizendo que a
vida é consequência da teia de ligações e obrigações que estabelecemos uns com
os outros...
- Por aí.
- Como Heidegger, Clarice nos ensina a ver, desver e a rever
tudo ao nosso lado. Por outro lado, o poeta de várias Pessoas bate o martelo: Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.
Levantando o copo, Suzana:
- Lindo. Está vendo como os poetas apontam luzes para brilhar no
caminho de alguém em trevas! Muitas vezes dizem mais em um minuto do que um
‘psi’ em anos de divã. Nada mais confortante. Nada. A poesia é essencial,
melhora a vida da gente.
- Menina sensível, você tem de sobra potencial e determinação
para seguir em frente. Ponha um sorriso nos lábios, porque o sorriso é a única
curva que endireita as coisas, viu? E não deixe que certas bobagens sufoquem
seu universo, muito menos que o medo a impeça de mergulhar num mundo novo e
feliz. Tudo passa e o tempo não para.
- Verdade.
- Pois bem, se abreviar os passos, ainda alcança o trem noturno.
No mais é embarcar numa viagem rumo à liberdade e descobrir que a existência é
bem maior do que o capítulo comum de um diário. Você no comando, sempre. Foca
nisso.
- Claro. Claro.
- Sua vez. Sua voz. Seu destino. É de toda mulher o direito de
ser ela mesma. Seja feliz!
- Como fez Lori, no livro de Clarice, que partiu em busca de si
mesma sem medo de afrontar os mais difíceis caminhos?
- Isso mesmo. Ela está aí a nos dizer que, para enfrentar as
coisas, a confiança em si é o primeiro segredo do êxito, viu? Quando a luz
acende, a escuridão vai embora e a sabedoria do tempo termina o espetáculo,
pode crer.
- Certíssimo.
- La vida es asi! - exprime
Mathieu.
- Knows all about love?
- Tento, mocinha. Tento.
- Ai, é tão bom saber que você torce por mim! De coração,
obrigada. Um brinde e um sorriso: Tim-Tim!
- Um sorriso muda tudo, claro. Salve!
A mulher estende a outra mão e aperta o peito do amigo, como se
acabasse de descobrir-lhe o coração:
- Você é demais! Faz falta, viu?
- Faz?
- All my loving... Thank
you.
O rapaz acaricia-lhe o rosto. Discretamente, seca com o polegar
as duas lágrimas que pendiam da órbita dos olhos da amiga.
- Não vale a pena lutar a vida inteira para conseguir chaves,
onde não tem portas, ‘né?
Ela, em tom meigo:
- Fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece
rosas, já ouviu isso, Math?
- Ã-Hã.
- Pois bem, a via tem mão dupla. O negócio é deixar a imaginação
voar, voar...
- Ah, sim – exprime Mathieu em tom meigo, enquanto pousava um beijo na face rósea de Suzana.
* FBN© - 2012 – Um Corpo Fora Do Lugar - NUMA NOITE EM 68 – Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: Vertigem e Desconstrução, de Lucy Citty Ferreira. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/11xi-depois-daquele-casamento.html?zx=8d96d0b242aeb509
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