*
Toulouse Lautrec
A fertilidade de sua pintura está, justamente, em mostrar o
que é difícil de olhar sem aquela sensação surpreendente de choque.
Ilusões Perdidas, óleo sobre tela.
Suzana
levanta-se da poltrona subitamente.
- Aonde
vai? – pergunta o amigo, curioso.
- Vou
respirar.
Mergulhada
na profundeza de sua inquietude íntima, ela caminha até a janela. Com os
cotovelos apoiados no peitoral, acende um cigarro e debruça para a Avenida João
Pinheiro. Examina o céu e as ruas vazias lá embaixo, e continua a pensar.
Absorta,
permanece afundada dentro de si por alguns minutos, como se interrogasse a escuridão
e a quietude da noite. Batia-lhe agitado o coração. De regresso à poltrona, senta-se
sem falar nada, permitindo-se cair os braços no colo. Depois de um momento
exclama:
- Oh,
Senhor!
- Longa
reflexão, heim?
- Bobagens
da minha cabeça. Baboseiras.
- Você
está bem? – pergunta Mathieu.
Entre um
demorado silêncio entre eles, Suzana fumou outro cigarro. Em seguida, balança a
cabeça num movimento de negação, dizendo:
- Arre!...
Meus pensamentos não param, dão volta em círculos.
- O que há?
- Ô,
Math, não é justo eu despejar meus problemas em cima de você. Deve estar de
saco cheio com minha choradeira nos seus ouvidos.
- Nada
disso.
-
Feito uma tonta, não parei de despejar lamúrias de um casamento que desmorona.
Ai, que coisa mais chata!
- Liga
não – pondera o rapaz.
- Não sou
de choramingar no ombro de ninguém. Nem de minhas amigas mais chegadas.
Raramente peço ajuda a alguém, embora esteja sempre acessível a quem queira me
pedir apoio. Minhas sinceras desculpas, viu?
- Não se
incomode.
- Você é
muito gentil.
- Somos
amigos.
Pausa.
Suzana:
- Chega!
Chega de chorar mágoas.
- Também
não é assim. Calma.
- Para
que tanta calma?
- A
situação exige. Paciência, querida, também ajuda a secar as feridas.
Suzana
aperta os olhos para não chorar.
-
De certo modo, sim.
- Uma boa
e descontraída conversa pode ser um santo remédio.
- Claro
que sim.
-
Criatura, porque não dá férias aos seus problemas? Uma viagem seria boa pedida.
- Viagem?
- Nada
melhor para um casal se convencer de que a realidade é mais do que um sonho.
Enfim, um passeio favorece a gente ver e sentir as coisas de outra maneira, de
outra perspectiva; quebra o gelo. O clima de montanha, o barulhinho de mato, principalmente,
e o isolamento ajudam o casal a relaxar. De acordo o poeta Mário Quintana, viajar é mudar a roupa da alma.
-
Háháhá...
- Ora,
Suzana, falo sério. Desconheço coisa melhor para arrancar ervas daninhas do
caminho do que um refúgio ao ar livre, no meio do mato. Dar um tempo para
discutir a relação e deixar que as queixas sejam resolvidas por um diálogo
maduro. Mas, claro, em clima de namoro, como se estivesse fazendo uma segunda
lua-de-mel. Assim, vocês podem recolocar todos os pingos nos “is” de uma vez
por todas. Enfim, o amor é um dos melhores remédios, certo?
- Háháhá!
- Pode
ser uma boa. Segundo Pascal, o último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam. É
preciso ouvir, entender e mudar.
A mulher sorri,
descrente. Recomposta na poltrona, diz:
- Zoa
não, moço.
- É sério.
Uma viagem favorece tudo isso, deixa as pessoas mais light. Os ânimos se abrandam e, sobretudo, ajuda a gente a lidar
melhor com o bom sabor de uma vida amorosa. Vai por mim, vai..., não tem mais
perfeita vacina contra o tédio do que um bom passeio de férias.
- Quer
que eu faça papel de boba, quer?
- Não.
Falo sério.
- Ora,
Math, seu amigo só quer saber dele mesmo. Olha para si próprio o tempo todo.
- Deixa
de tolice. Escolhem um lugar bonito, romântico. E vão curtir os dois..., ou os
três. Como quiser.
-
Difícil.
- Não
acha que é um bom pretexto para azeitar a relação entre um casal estremecido?
- Ã-Hã.
-
Anime-se.
- Ã-Hã.
- Ei, o
gato comeu sua língua? – pergunta o rapaz diante do monossilabismo da amiga.
- Ele
quer?
- Sugere.
Conversa. Negocia.
- Vai
recusar e, por cima, tirar ‘sarro’ com a minha cara.
-
Arrisca.
- Ah,
Math!
- Dirá
que está por aqui de compromissos.
- Diacho!
- Sem
chance, cara. Sem chance. Não tem como argumentar com seu amigo. Primeiro ele,
segundo ele e depois ele. Pessoa narcísica, só pensando em si. Arre!
- Me
promete uma coisa?
- O quê?
- Tenta.
- Nem
pensar.
- Tenta.
- Conheço
a figura.
- Pelo
menos faz sua parte.
- Ah,
Math, não vou ficar atrás desse cara que nem uma tonta.
- Por
favor!
- Não. Já
dei tudo que tinha. Não jogo mais. Mais do que isso, fechei a porta.
- Ô,
Suzana, casamento é um universo complexo que envolve o social, o erótico e a
psicologia também. Tem que fazer por onde. Vamos, só mais uma vez?
- Não.
- Desse
jeito...
-
Agradeço a sugestão. Como disse, nosso casamento está enfermo, anda no pus.
Respira por aparelhos, prontinho para receber extrema-unção. Não vale a pena.
-
Caracas!
Suzana
aperta uma das mãos na testa.
- Passou
da hora de desligar os tubos. Cada dia fica mais intolerável, mais penoso. Isso
é coisa que vem se arrastando por algum tempo.
- Bem, se
é assim.... Uma viagem, se não for para mudar o nosso olhar, não vale a pena.
- Não.
Não vale. Dos momentos de glória, só as lembranças. Quando o Zé formalizou o
pedido de casamento foi um dia alegre, muito alegre na casa de meus pais e para
mim, que ia escapar da férrea tutela paterna. Apostamos todas as fichas,
imaginando que minha escolha fora a mais certa na maratona à procura da eterna
felicidade.
-
Acredito.
- Era uma
jovem apaixonada. Por isso mesmo idealizei de tudo para dar certo. À toa.
Bamburrei por pouco tempo. Aos poucos, ele começou a minar nossa relação. Ao
colocar as garrinhas de fora, pude ver que José Renato possui o indicador maior
do que o dedo médio. Em lugar de mimos, esculachos. Em vez de abraços, gestos
agressivos. Gramei muito, cara.
- Poxa!
- Conheci
o lado buldogue dele. O que mais ouvia da sua boca era que eu não compreendia
nada de nada, um zero à esquerda. Diante de tanta agressividade pude ver que
José Renato não era mais o homem que imaginei. Baratinou tudo. Eu me sentia muito sozinha e triste.
-
Caramba!
- A
partir daí a gente não se entendeu mais, arruinou tudo. Assim, do nada, com a instabilidade que eu não esperava dele, minha
relação foi até o fundo do poço. A
felicidade que era para ser perpétua, em pouco tempo fracassou de vez. Ai, que
ódio!
- Difícil
de acreditar! Até porque quem estudou filosofia não é pessoa má. Tem outro
sentimento, um cuidado maior em respeitar os outros.
Em tom
áspero, Suzana completa:
- Math, sentimento
de abandono deixa qualquer mulher traumatizada.
-
Compreensível.
- A sorte
é que, normalmente, paixão dura pouco, não é?
- É.
-
Esperava casar com um homem na expressão máxima da palavra, confiante de que
ele ia me fazer feliz para o resto da vida. Sei lá, um homem romântico,
sensível, capaz de entender as dúvidas e as inseguranças próprias da alma
feminina. Queria algo sério, Math.
- Sonho
de toda mulher.
- Antes
de conhecer o Zé, tive apenas namoricos indefinidos e algumas pequenas paixões
clandestinas, coisa de adolescentes no interior. Nada de mais, casos
passageiros porque sempre fui muito reservada. Quando mudei para a Capital, eu
queria liberdade para ser um pouco mais abusada com a minha sexualidade,
namorar quem eu quisesse. Por mais intrigante que seja, pensava por isso para
fora.
- Sim.
- Logo
seu amigo me fisgou. Quando veio com essa de casamento, apaixonada até debaixo
d’água, aceitei de cara como um desafio que não podia recusar. Achava o maior
‘barato’ um professor interessado por uma aluna bem mais nova.
-
Interessante.
- Paixonite
aguda, sabe como é?
- Ã-Hã.
- Ele me
causava frisson e suspiros quando
aparecia para dar a sua aula, logo me senti completamente
atraída pelo cara, amor à primeira aula. Fascínio
mágico, coisas da vida que ninguém explica direito.
- Sim.
- No
começo tudo era azul. Era mesmo o melhor de todos os homens que conheci:
inteligente, bom, engraçado, bonitão... Iludida, não deu outra, apaixonei,
amando-o de ‘montão’!
- Sei
como é.
- Crente que
o relacionamento iria adiante, dei tudo de mim nesse encontro, pensando que não haveria ponto final para uma história de amor
tão bonita. Só ele não sacou nada, cada dia mais arrogante, volátil e mestre da
manipulação, cada dia prestava menos atenção em mim. Olhava, mas não me via,
ouvia mas não me escutava.
-
Caramba!
- Passou
a se comportar como afamado ‘marido everest’: altivo, frio e distante, pondo nosso casamento para girar em torno das suas necessidades. Olha aí onde fui me meter!
Mathieu esfrega
as mãos e, com ar de brincadeira alude:
- Pobre e
frágil princesa! Segundo André Capelão, lá no século 12, em seu livro Tratado
de Amor Cortês, o amor é uma doença que
acomete o pensamento de uma pessoa e a torna obcecada por outra pessoa, criando
um vício incontrolável que busca penetrar em todos os mistérios da pessoa
amada: suas formas, seu corpo, seus hábitos.
- Pior
que é isso mesmo.
- Essa é
a prova maior de que jamais devemos terceirizar nosso destino. O futuro é
incerto, sempre.
- Fui uma
debilóide, romântica, uma tonta!
O rapaz
toma um pouco de cerveja, acende outro cigarro e arrisca:
- Pode
ser a diferença da idade, não?
- Penso
nisso todo dia. Mais de vinte anos.
- Tem
suas limitações, claro.
- Sonhos
e planos frustrados!
- É.
- Até
hoje, Math, não consigo explicar como tudo isso aconteceu, como cai nessa
armadilha?
-
Acontece. Nem sempre é possível controlar as emoções.
- Às
vezes o destino apronta cada uma com a gente, não é mesmo?
-
Querida, muitos sentimentos não sabemos explicar, muito menos compreender,
principalmente, no calor da paixão. São os velhos e conhecidos absurdos de um
coração apaixonado, que desconhece fronteiras.
- Pior
que é.
Pausa.
Mathieu:
- Na
verdade, nessa colisão de dois mundos tão diferentes, cada um se serviu do
outro para atender seus próprios interesses. Um buscando no outro a resolução
dos seus problemas.
- Talvez.
- Ele era
o que é. Você estava cega e acreditou na sua conversa.
- Hilário
até!
- O
filósofo iluminista Voltaire dizia que a
vida é como um jogo de cartas. Os jogadores recebem as cartas dadas, mas cabe a
cada um deles a escolha e os riscos de como jogá-las.
- Tudo que a gente faz na vida tem uma
consequência, não é mesmo? Joguei mal.
Risos.
Mathieu.
- Na
tradição machista, longe de ver as coisas na proporção que elas têm, os homens
escolhem mulheres mais jovens para se casar e ter o controle da parceira, o que
acaba empobrecendo as relações afetivas – pontua o rapaz.
- Isso
mesmo! Só depois vi o tamanho da besteira que fiz, um mal passo. Ignorei toda uma lista de sinais vermelhos.
De doer! De doer!
- Sei.
- Para
dizer a verdade, querido, quando cheguei a peça tinha sido encenada e o seu
protagonista estava de saída. Era tarde demais. Peguei a fila do último minuto
como uma pateta!
- Não se
culpe, você era jovem demais. História de amor mal resolvida pode acontecer com
qualquer pessoa. Ainda, de acordo com Pascal, o coração tem razões que a própria razão desconhece. Pense nisso.
- Math,
não me conformo.
- Ora,
Suzana, quem nesse mundo nunca cometeu alguma besteira nesse sentido? O amor é
um sentimento cego, totalmente, guiado pela loucura e, muito menos, escolhe
hora para acontecer. Paixão é mesmo uma coisa incontrolável!
- Ave
Maria!
- Na vida
amorosa de um casal sempre houve encontros e desencontros, porque a mente
humana é vulnerável a enganos e desenganos. E mais: quando imaginamos que
sabemos todas as respostas, a vida altera todas as perguntas. Coisas da
existência!
Suzana
ergue os olhos e revela em tom censurado:
- Pelas
cinco chagas de Cristo, não posso compreender porque tenho de passar por tudo
isso?
-
Carência afetiva..., impulso de união. Sei lá..., uma confusão afetuosa
qualquer.
- Ah,
Math, é como se estivesse no Purgatório, pagando meus pecados. Ai, não me
conformo.
-
Casamento, querida, envolve ensaio, roteiro e grandes cenários para transformar
indivíduos em personagens de conto de fadas até que o tempo os separe. Enfim,
os relacionamentos podem acabar a qualquer momento, ou melhor, costumam ter
prazo de validade.
- Como
disse, fui aluna dele no curso de Letras. Saí de um regime de internato no
Colégio Santa Maria direto para a faculdade, virgem de tudo. Da faculdade para
o altar com véu, grinalda e flor de laranjeira nas mãos. Exatamente como manda
o figurino das moças casadoiras, repletas de ilusões.
- Com
direito a fotos no adro da Igreja?
Risos.
Suzana:
- Também.
Meu Deus, não gosto nem de lembrar!
- Mexe,
‘né?
-
Recordar esse momento é um desgaste emocional muito grande. É como arrumar uma
caixa de fotos antigas. Levanta uma poeira que nem sempre é agradável.
- Sei
como é – concorda Mathieu.
- Diz um
provérbio mouro que o diabo diz a verdade
nove vezes para poder mentir melhor na décima.
- Pior
que é.
- Há
muito, nem para jantar, eu o Zé saímos mais. Ir ao cinema, então é coisa rara -
confessa com amargura a mulher.
- Lacan
estava coberto de razão quando tentou provar que completude não existe, porque o desejo é impossível de ser um
quando há dois.
- Ã-Hã.
Suzana
retira do maço outro cigarro. Acende e começa a fumar, serenamente.
- Era uma
garota sem experiência, introvertida e por fora de tudo, mesmo convivendo com
colegas que fumavam e falavam de sexo, ansiosas por erotismo e loucas para
constituir raízes no prazer da transgressão. Todas liam sem parar o livro Le
Deuxième Sexe.
- Boa
obra. Com pegada de autoajuda, vem causando uma revolução na cabeça das
mulheres mais modernas. Leu também?
- Sim.
-
Parabéns. Exaustivamente lida pelos mais jovens, a obra de Simone tem sido a
chave para abrir espaço de luta do movimento feminista. Inspirou roteiros de
cinema com muitas discussões sobre a sexualidade. Basta ver Todas as Mulheres
do Mundo, A Primeira Noite de um Homem e Bela da Tarde. Cada filme, a seu modo,
registra a reviravolta do comportamento sexual nesses conturbados anos da
década de 1960.
- Claro.
- Filmes
apresentados com mulheres desencanadas, muita ação e um bom elenco para
garantir filmes sensuais e divertidos.
- Ah,
sim.
Mathieu,
curioso:
- Teve
aulas sobre educação sexual na sua escola?
- Vez ou
outra a professora de Biologia dedicava um horário para abordar o assunto.
Curioso é que ela se referia ao órgão genital feminino dizendo ‘lá’ ou, quando
muito, pelo nome de aparelho reprodutor feminino. Lembro como se fosse hoje.
- É assim
mesmo. Citar nomes das partes íntimas do ser humano ainda é como dizer um
palavrão, mesmo sendo vagina a palavra-chave do tema. O termo popular, então!
Quer dizer, o tabu que ainda ronda o assunto.
Suzana,
com ar de espanto, meio desconcertada:
- Não me
agrada nem um pouco essa palavra. Soa a pornografia, boca suja.
-
Besteira, menina. Ambas são dicionarizadas. Vocábulos significantes para regiões
diferentes do órgão sexual feminino. Muitas vezes, a censura aos dois vocábulos
torna difícil fazer referência à genitália feminina.
- Lógico.
- Em
termos técnicos, vagina designa o canal. Boceta, a vulva. Simples, não?
- Claro.
Claro.
- Em
torno desse imbróglio preconceituoso o único perigo é que, em algum momento, se
demonize o dicionário também.
Risos.
Suzana:
- Falar
de genitália masculina, então...
- Posso
imaginar.
- A
professora vivia dizendo que era pecado mortal cometer sexo antes do casamento,
até mesmo quando se faz sozinha. Vê se pode?
- Faz
parte da pedagogia. Sabe-se a professora que, hoje em dia, há estimulo o tempo
em qualquer lugar, principalmente, na televisão. Basta assistir a uma peça
publicitária para perceber que as imagens, explorando a sexualidade, estão lá
de maneira escancarada e ostensiva. O papel da escola é tentar fornecer meios
de se evitar o sexo livre, principalmente, entre a juventude.
- Talvez.
Só para se ter ideia, fiquei ‘baratinada’ quando ela esboçou o órgão sexual
masculino no quadro negro. Era enorme. Acho que contextualizou assim para
despertar receio mesmo. Quiçá por conta do seu próprio pânico fálico!
- Conservadorismo
dominante! Não poderia ser diferente. Retratar, exibir e falar sobre vagina e
pênis é proibido, na visão dos professores tradicionais, principalmente, das
escolas dirigidas por padres ou freiras. De modo geral, artistas plásticos,
historiadores, filósofos e até sexólogos, às vezes, demonstram as mesmas
dificuldades. Espantoso, ‘né?
-
Bastante.
- Em
pleno 1968, mesmo com todo avanço comportamental ainda há um medo de boa parte
das mulheres em falar de sexo. Temos muito problema com isso. A percepção geral
da sociedade ainda é que as mulheres devem ser encaradas como crianças. Podem
ser vistas, mas não precisam ser ouvidas.
- Talvez.
- Eu
penso que, quando se expõe uma imagem como objeto analítico reflexivo, ela
deixa de ser pornografia.
- Ah,
sim.
- Longe
de um olhar esquizofrênico, defendo a tese de que qualquer imagem, embora de
cunho erótico, perde o teor sexual quando transformada em arte, concorda?
Suzana
aquiesce com a cabeça. O rapaz continua explicando seu ponto de vista:
- Maior
exemplo disso são algumas obras famosas, como o Estudo para a Virgem, de
Gustave Klimt; O Jardim dos Suplícios, de Augusto Rodin; Esperando Warren, de
Edgar Degas e, especialmente o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Coubert.
Todos eles, com destaque para a ‘perseguida’, estão cuidadosamente expostos no
Museu do Louvre e, em outros espaços culturais espalhados pelo mundo, como você
bem viu.
- Claro.
- De
qualquer forma, querida, nota dez para a sua escola que se preocupa em dar
informações preciosas sobre o corpo humano. De forma geral, não é o que
acontece. A sexualidade deve estar em palestras e no dia a dia dos mestres, da
mesma forma como tratam todos os outros assuntos. Enfim, não podemos fingir que
os desejos femininos não existem.
-
Certamente.
- Temas
assim, ajudam a entender melhor a tese de Simone de Bouvoir. Para ela meninas
não nascem como meninas e, meninos não nascem como meninos. As crianças são
moldadas de acordo com a sociedade em que vivem.
Pausa.
Após tomar um pouco de cerveja, Suzana conta:
- Ai, meu
Deus, até meus 16 anos era uma garotinha recatada e tímida, mal sabia como usar
batom, acredita? Chupei bico até os 10 anos. Só parei quanto terminei o
primário e comecei a fazer o curso de admissão para cursar o Ginásio, lá no
interior. Mesmo assim, até hoje, vira e mexa me dou com o polegar na boca. Faço
de tudo para o Junior não ver. Ô, vicio!
- Bom
mesmo.
- Com as
dificuldades todas de uma adolescente, tinha vontade de me esconder, de me
apagar. Comportadinha, eu ligava para o que falavam de mim. Qualquer coisa me
chateava. Queria logo ter 20 anos e não ser mais uma garotona desajeitada.
-
Ansiedades naturais do ingresso na vida adulta, somadas à pressão de amadurecer
sob os olhares de uma sociedade muito exigente! Isso é normal.
- Tanto
que acabei desenvolvendo a minha sexualidade bem mais tarde.
-
Acontece.
- Por
isso mesmo que eu era uma mocinha tão retraída e cheia de medos. Temia o
momento em que iria fazer pela primeira vez..., a dor..., o desconforto físico.
Arre!
- Só
rindo, querida!
- Ah,
Math, na puberdade era magrela, meio desajeitada. Sofria porque os rapazes só
queriam saber das garotas de corpo bonito, as gostosonas. Nunca imaginei que,
no curso dos anos, um dia me transformaria numa mulher com o corpo sadio e
abençoado pelas curvas que tenho hoje. Uma benção!
Mathieu
sorri com descrição:
- Estou
admirado.
- Com o
jeitão de bronca da caipirona aqui?
- Com sua
história de vida. Dá um livro.
- Sim.
- A arte
imita a vida, diz o ditado. Bem... Menina bonita, errar faz parte das
descobertas, e dos acertos, claro.
Suzana
com ligeiro sorriso nas faces balança a cabeça concordando. Mathieu:
- Vai
sair, numa boa, dessa vida maluca em que está vivendo com José Renato. Pode
crer.
- Confio,
professor. Custei, mas passei a ver o mundo de outro jeito. Amadureci.
O rapaz
em tom macio, quase recitando:
- Meta a
gente busca e caminho a gente acha. Desafio, menina, a gente enfrenta. Vida a gente inventa. Saudade a gente mata. Sonho a
gente realiza.
- Bonito.
Quem disse isso?
-
Anônimo.
-
Querido, buscando palavras em Cecília, vou aprender com a primavera a me deixar
cortar para poder voltar inteira.
Mathieu
cerra os olhos, imaginando. Logo espalma a mão sobre o peito e assegura em tom
afetuoso:
- Bravo,
menina! Assim é melhor.
* FBN© - 2012 – Palco de Sonhos... NUMA NOITE EM 68 -
Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:
Paraíso Artificial – tela de Toulouse Lautrec - Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/7vii-ilusoes-perdidas.html?zx=9ee472b8365dc60b
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