*
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada. - Clarice Linspector
AS MUITAS FACES DE CLARICE
* Certa vez, o escritor Murilo Rubião surpreendeu a todos quando
disse que: ...
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quanto estou criando uma história sinto prazer. Depois, é essa tremenda luta com as palavras, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente, voltar. Rasgar.
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quanto estou criando uma história sinto prazer. Depois, é essa tremenda luta com as palavras, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente, voltar. Rasgar.
Suzana
vira-se para o rapaz, sorridente.
- Tenho
uma coisa para lhe contar.
- O que
é?
- A ideia
de trabalhar num jornal me atrai muito.
-
Desistiu de ser secretária?
-
Jornalismo tem mais a ver comigo. Prefiro.
-
Bom.
- Você me
dá uma forcinha?
-
Bem... Bem... Se for isso mesmo que você quer, posso ver com o José Otávio.
-
Quem?
-
Um dos editores do Diário da Tarde. Gente fina. Guardou o diploma de advogado
no fundo da gaveta e foi fazer o que mais gosta: escrever para jornal.
-
Vou adorar.
-
Pode começar na revisão. Não apresenta vestibular melhor para quem quer seguir
a carreira. Ou, como estagiária na redação.
A
mulher agradece com a cabeça. Mathieu:
-
Deixa comigo.
-
Ai, nem acredito! Consegue isso para mim?
- Vou tentar.
Puxa calma.
-
Adoro ler o Diário da Tarde.
-
Tem marca forte, extremamente criativo, desafiador. Tanto que está aí
revolucionando o texto e o rosto da imprensa mineira ao criar novas
possibilidades na linguagem gráfica. Costumo dizer que o vespertino é como
minissaia: tamanho satisfatório para cobrir o assunto e curto o suficiente para
despertar o interesse do leitor. Circula bem.
Risos.
Suzana nutrindo perspectivas.
-
Acha que tem vaga?
-
Vamos ver.
-
Quem sabe posso até me especializar em entrevistas culturais como Clarice
Lispector.
-
Ótimo. Bom foco.
- Leio
suas crônicas na coluna Diálogos Possíveis com Clarice, da revista Manchete.
Ela me espanta com sua sabedoria! Não perco uma publicação.
-
Clarice, ao lado de cronistas brasileiros de sólida trajetória como Carlos
Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubens Braga, deu
atestado de maioridade à crônica brasileira. Escreveu vários livros, trabalha
em importantes veículos de comunicação do país, cobrindo momentos memoráveis da
nossa reportagem. Ela foi sempre um passinho à frente de seu tempo em cada uma
dessas atividades e, acima de tudo, um ser curioso em relação às mudanças no
mundo.
- Curto
tudo que ele escreve.
- Clarice
tem algo diferente, sim. Inesgotável. Em
tudo única. Dona de um estilo literário que se torna referência para outras
gerações, ela é objeto de culto entre uma legião de claricianos apaixonados.
-
Incrível!
- Tanto
que evoco uma de suas crônicas em que diz que usa as palavras como iscas para
pescar as ‘não palavras’, numa tentativa de melhor elucidar seu trabalho com
imagens que podem surgir daí.
- Tem
essa aura, sim - assegura Suzana.
- É mestre
em pegar os fatos do dia a dia e dar a eles, com toques de seu imaginário
afetivo, um sabor lírico e original. Por isso mesmo, mantém diálogo com as mais
diferentes vozes do país e do mundo, abordando questões que causam impacto na
vida de todos.
-
Maravilha.
- Nosso
Kafka! Sem abrir inteiramente o seu enigma, Clarice guarda no cerne de suas
narrativas alguma coisa oculta, favorecendo novo foco aos olhos do leitor. Faz
dele seu cúmplice.
- Isso é
bom.
- Além de
ser uma expressiva atuante no cenário cultural brasileiro, Clarice também
apresenta seu lado crítico quanto aos rumos políticos de nosso país. Mostrou
sua indignação ao participar da Passeata dos 100 mil e de inúmeros atos
políticos, juntamente com a massa intelectual brasileira.
- Eu vi.
Pausa.
Mathieu:
- Por
outro lado, como porta-voz das angústias das mulheres brasileiras, a jornalista
nunca deixou de combater a condição submissa das mulheres em nosso tempo. Seus
escritos mostram que o gênero feminino pode e deve trabalhar outros caminhos,
fundamentalmente, o da libertação das amarras do convencionalismo, do
preconceito, da obsessão - tais reflexões, sob medida, aplicam-se à obra de
Clarice Lispector.
- Claro.
Claro.
-
O difícil, querida, é saber o que mais admirar em Clarice, a jornalista com as
entrevistas mais provocativas da mídia brasileira, ou a escritora com seu
estilo inteligente, capaz de exercitar a imaginação dos leitores com temas
instigantes e complexos, pujantes. Herdou no DNA o verniz do berço cultural da
civilização ocidental. Seu acervo literário é, realmente, um cântico à eterna
liberdade do ser humano.
- Ã-Hã.
- O certo,
querida, é que ela vem deixando marcas nos dois setores: jornalismo e
literatura, usando a palavra como agente transformador.
Pausa.
Suzana admirada:
- Pelo
jeito, Math, você curte bastante o que ela escreve.
-
Ã-Hã.
-
Fala mais.
-
Quer saber mais o quê?
- Tudo.
Mathieu
puxa o maço de cigarros da bolsa, tira um palito e acende. Pigarreia e volta a
contar:
-
Clarice é muito perspicaz como jornalista. Não apenas na escolha dos assuntos e
dos entrevistados, mas também na imagem comunicativa de seus textos. Renovadora
e descobridora de novos caminhos, ela sabe como ninguém colocar pontos finais,
onde as reticências não fazem a menor diferença e, sempre atenta em chegar à
última frase do seu texto, na qual determina como regra fundir leitura e ação,
história e ficção, sujeito e objeto, com o objetivo de ampliar os limites da
crônica para as fronteiras do ensaio.
-
Olha!
-
Na mídia nacional é referência obrigatória do jornalismo avançado, escrevendo como
se quisesse implodir os limites entre informação e opinião. Modelo conhecido
como new jornalism, que vem alterando
de forma radical as redações brasileiras também, onde passam a imperar o
pragmatismo e a objetividade ao informar os fatos.
- Legal.
-
É o que se lê em sua coluna nas páginas do Jornal do Brasil, do Correio da
Manhã, do Diário da Noite, como também em outras publicações país afora. Tanto
que a revista Manchete abriu espaço para ela usar sua longa experiência e
traçar um panorama novo da crônica no Brasil.
- Sério?
-
Mérito dela. Quer mais?
-
Tudo, fala.
-
Cronista de primeira linha, notável contista e melhor ainda como romancista.
Reinventou a crônica. Tanto que, se pensarmos em grandes escritores no planeta,
certamente Clarice estará encabeçando o topo da lista.
-
De fato.
-
Nos seus primeiros contos, já mostrando a nova safra de tintas na sua caneta,
emplacou sucesso com Feliz Aniversário, O Búfalo, Mineirinho e A Galinha, todos
publicados na revista ‘Senhor’, no final da década de 1950. Ensaios ilustrados
por Anísio Medeiros.
-
Bacana.
Depois
de outra tragada, Mathieu continua:
-
Como na obra de Murilo Rubião, Osman Lins e Guimarães Rosa, onde são
recorrentes metamorfoses e aspectos fantásticos de existência, a criatividade
de Clarice garante algo, completamente, inédito na nossa literatura, como se
ela quisesse mostrar que, ao entardecer a luz muda e recria a paisagem de forma
mais sedutora.
-
Sem dúvida.
-
Pois é assim Clarice. Sua obra, reconhecida pelos leitores e pares, trata
com absoluta seriedade de assuntos que interessam a estudos literários, a
psicanálise, a filosofia, a educação... E tudo mais que está em voga hoje em
dia.
Suzana
suspira, deslumbrada:
-
Nossa, é o máximo!
-
Num tête-à-tête, ninguém melhor para domar o feeling do entrevistado, seja ele quem for. Figura de soberana
originalidade, ela consegue abrir a cabeça da pessoa e conduzi-la para um
diálogo marcado pelo tom de um bate-papo agradável. Diante de sua presença,
serena e confiável, qualquer um tendia a se soltar, ficando à vontade para
falar até de suas próprias vidas.
-
Caramba!
-
Sempre à frente de seu tempo, é considerada uma das melhores cronistas da
atualidade, junto com Raquel de Queiroz, Elzie Lessa e Virginia Wolff,
fortalecendo a tese de que jornalistas e escritores têm muito uns com os
outros.
-
Concordo.
Pausa.
Mathieu, depois de um trago de cerveja:
-
Clarice nunca escondeu sua admiração pela escritora e jornalista
norte-americana Helen Gurley Brown, autora do livro Sex and the Single Girl,
lançado em 1962 como um manifesto aberto pelos direitos das mulheres aos
prazeres do sexo.
- Sexo e
a Jovem Solteira?
-
Literalmente. A obra conseguiu a rara proeza de agradar leitores comuns e
autores mais sofisticados. Tanto que, a partir de 1965, Helen começou a editar a
revista Cosmopolitan, porta-voz da mulher contemporânea, com sua pauta voltada
para a sexualidade feminina. Sistematicamente, Clarice recebe e lê todos os
números da publicação.
-
Não sabia.
Mathieu
depois beber um pouco de cerveja:
-
Sem falar que, depois de cativar leitores adultos com sua filosofia
existencialista, apreciadora do universo infantil, Clarice volta a brindar seus
admiradores mirins com um novo livro de histórias fantásticas. Recentemente
lançou A Mulher que Matou os Peixes, com a missão de levar novas e grandes
emoções para as crianças de novo.
- Fui com
o Junior ao lançamento do livro em Belo Horizonte. Emocionei ao ver aquela
constelação de olhinhos brilhantes da meninada numa grande festa de letrinhas
para homenagear Clarice Lispector. Comprei um exemplar para o meu filho.
-
Parabéns.
-
Igualmente, li a história. Como a criança que habita nos adultos também gosto
de contos de fadas, curti maravilhada seus personagens fantásticos. Numa
simplicidade que nunca é pobre, o texto infantil de Clarice, traz ao universo
literário brasileiro a elevada sensibilidade e a poesia de Lispector.
- Clarice
é uma eterna sonhadora. Ela acha que se toda pessoa voltasse a ser criança, se
livrasse da hipocrisia, o mundo seria muito melhor.
- Sem
dúvida.
- Se na
vida os valores da infância pautavam Clarice, na hora de colocar as ideias no
papel as crianças serviram de inspiração para alguns de seus melhores contos,
crônicas e livros. Para ela, as crianças estão sempre dispostas para a
brincadeira de Esconde-Esconde, prontas para descobrir o novo, o que está
escondido.
- Genial.
- Sabia
que meu filhão já cuida de uma biblioteca exclusivamente dele?
-
Excelente.
- Ler na
escola ou fora dela, Math, contribui com o aprendizado e, certamente, no
desenvolvimento da criança. Nada mais importante na formação cidadã da
garotada, não é mesmo?
-
Nada.
Suzana
descruza as pernas e logo pergunta:
-
Qual a receita para ser bom jornalista?
-
Isso é meio intuitivo. Mas, existem regrinhas que ajudam.
-
Por exemplo?
-
Saber o máximo sobre a pessoa antes da primeira conversa é fundamental, como
também adotar o silêncio para forçar o entrevistado a falar.
-
Terceira regra?
-
Preparar perguntas objetivas.
-
Legal. Que mais?
-
Conduzir tudo em ritmo de bate-papo para afastar aquele ar blasé entre o
entrevistado e o entrevistador.
-
Magnífico!
-
Clarice aconselha aos aspirantes a escrever crônicas jamais esquecer que uma
crônica é uma obra de arte. Ou aspira ser. Portanto, o profissional deve ser um
inflexível aprendedor. Apaixonadamente, lendo bons autores e tê-los ao seu
alcance como poderosa fonte de informação.
-
Boa dica.
-
Importante, claro, é dominar bem a gramática para não correr o risco de
atropelar a norma culta da língua. Uma narrativa deve fluir sem pedras no
caminho, evitar interjeições, dois pontos, reticências e sinais que embaraçam o
leitor que pretende chegar logo ao ponto final. Escrever, como doutrina nosso
poeta nacional, Carlos Drummond de Andrade, é também cortar palavras, reescrever
até chegar ao exercício mais perfeito que um ensaio pode alcançar.
-
Ok.
-
E, para sinalizar o trânsito das ideias procure usar, com frequência, o ponto e
a vírgula..., nunca juntos, viu?
-
Meu Deus, será que dou conta?
-
Claro.
Mathieu
acaricia o ombro da amiga, sorrindo.
-
Interessante, querida, que Clarice adora fazer entrevistas como jornalista.
Nega a grandiloquência, passa longe dos rótulos. Na condição de escritora o entusiasmo diminui
toda vez que a reportagem dela se aproxima, mas nunca se recusa a discutir e
defender suas convicções. Bem reservada, discreta, vive dizendo que é um pouco
tímida com os flashes, e justifica que é apenas uma dona de casa apaixonada
pela palavra escrita. Evita tanto as aparições públicas que, cada dia mais,
aumenta sua fama de reclusa e avessa às badalações do mundinho cultural
brasileiro, mais frequentado por uma corriola de vates que aparecem para trocar
tapinhas nas costas, elogios e favores.
- É
sério?
- Foge
porque é avessa a badalações, notoriedade. Isso não é para ela, definitivamente,
não gosta de tapete vermelho. Mesmo assim, está virando celebridade,
justamente, por se recusar a ser famosa, ter status.
Risos.
Suzana joga a cabeça para trás e quando volta à posição natural, pergunta:
- E você?
-
Eu o quê?
-
Gosta de dar entrevistas?
-
Nada contra.
-
Tive uma ideia.
-
Diga.
-
Quero dar uma de Clarice, posso?
-
Hein?
-
Isso mesmo. Com uma ideia na cabeça e uma caneta na mão gostaria de testar
minha inclinação, fazendo uma entrevista com você – insinua Suzana,
descontraída.
-
Brincadeira, ‘né?
-
Falo sério.
Risos.
Mathieu pisca um olho para a amiga, suspira fundo e quis saber:
-
Assim, na tora?
-
Estilo pingue-pongue.
-
Perguntas e respostas?
-
Com todas as letras.
-
Tudo bem, eu topo.
- Reza um
velho ditado que mais importante do que saber as respostas é saber fazer as
perguntas certas. Vou tentar.
-
Então... Então, esferográfica e papel na mão.
-
Apanho já.
Suzana
levanta-se de um pulo. Na estante ao lado pega as folhas e uma caneta. Com os
olhos iluminados por um brilho quente faz sinal com o polegar da mão esquerda
para o jornalista.
-
Posso começar?
-
Claro.
-
Hiiiiiii!... Essas canetas! – reclama a mulher já acomodada na poltrona.
-
Estragada?
-
Pronto, peguei outra. Farei perguntas bem pontuais, viu?
-
Massa! Vamos lá.
Espirituosa,
Suzana volta-se para o amigo, morde a ponta da caneta e brinca:
-
Um, dois, três..., gravando.
Risos.
Mathieu cruza as pernas, deixando cair um braço por trás do encosto do sofá.
Batia mais forte o seu coração.
* FBN© - 2012 – Clarice L. ..., NUMA NOITE
EM 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto.
Iustr.: vídeo Clarice - YouTube – Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/30xxx-que-misterio-tem-clarice.html
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