2011-01-03

29/XXIX – CLARICE L.

*

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.  - Clarice Linspector


AS MUITAS FACES DE CLARICE
* Certa vez, o escritor Murilo Rubião surpreendeu a todos quando disse que: ...
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quanto estou criando uma história sinto prazer. Depois, é essa tremenda luta com as palavras, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente, voltar. Rasgar.


 
 

Suzana vira-se para o rapaz, sorridente.
- Tenho uma coisa para lhe contar.
- O que é?
- A ideia de trabalhar num jornal me atrai muito.
         - Desistiu de ser secretária?
         - Jornalismo tem mais a ver comigo. Prefiro.
         - Bom.
- Você me dá uma forcinha?
         - Bem... Bem... Se for isso mesmo que você quer, posso ver com o José Otávio.
         - Quem?
         - Um dos editores do Diário da Tarde. Gente fina. Guardou o diploma de advogado no fundo da gaveta e foi fazer o que mais gosta: escrever para jornal.
         - Vou adorar.
         - Pode começar na revisão. Não apresenta vestibular melhor para quem quer seguir a carreira. Ou, como estagiária na redação.
         A mulher agradece com a cabeça. Mathieu:
         - Deixa comigo.
         - Ai, nem acredito! Consegue isso para mim?
- Vou tentar. Puxa calma.
         - Adoro ler o Diário da Tarde.
         - Tem marca forte, extremamente criativo, desafiador. Tanto que está aí revolucionando o texto e o rosto da imprensa mineira ao criar novas possibilidades na linguagem gráfica. Costumo dizer que o vespertino é como minissaia: tamanho satisfatório para cobrir o assunto e curto o suficiente para despertar o interesse do leitor. Circula bem.
         Risos. Suzana nutrindo perspectivas.
         - Acha que tem vaga?
         - Vamos ver.
         - Quem sabe posso até me especializar em entrevistas culturais como Clarice Lispector.
         - Ótimo. Bom foco.
- Leio suas crônicas na coluna Diálogos Possíveis com Clarice, da revista Manchete. Ela me espanta com sua sabedoria! Não perco uma publicação.
- Clarice, ao lado de cronistas brasileiros de sólida trajetória como Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubens Braga, deu atestado de maioridade à crônica brasileira. Escreveu vários livros, trabalha em importantes veículos de comunicação do país, cobrindo momentos memoráveis da nossa reportagem. Ela foi sempre um passinho à frente de seu tempo em cada uma dessas atividades e, acima de tudo, um ser curioso em relação às mudanças no mundo.
- Curto tudo que ele escreve.
- Clarice tem algo diferente, sim.  Inesgotável. Em tudo única. Dona de um estilo literário que se torna referência para outras gerações, ela é objeto de culto entre uma legião de claricianos apaixonados.
- Incrível!
 
- Tanto que evoco uma de suas crônicas em que diz que usa as palavras como iscas para pescar as ‘não palavras’, numa tentativa de melhor elucidar seu trabalho com imagens que podem surgir daí.
- Tem essa aura, sim - assegura Suzana.
- É mestre em pegar os fatos do dia a dia e dar a eles, com toques de seu imaginário afetivo, um sabor lírico e original. Por isso mesmo, mantém diálogo com as mais diferentes vozes do país e do mundo, abordando questões que causam impacto na vida de todos.
- Maravilha.
- Nosso Kafka! Sem abrir inteiramente o seu enigma, Clarice guarda no cerne de suas narrativas alguma coisa oculta, favorecendo novo foco aos olhos do leitor. Faz dele seu cúmplice.
- Isso é bom.
- Além de ser uma expressiva atuante no cenário cultural brasileiro, Clarice também apresenta seu lado crítico quanto aos rumos políticos de nosso país. Mostrou sua indignação ao participar da Passeata dos 100 mil e de inúmeros atos políticos, juntamente com a massa intelectual brasileira.  
- Eu vi.
Pausa. Mathieu:
- Por outro lado, como porta-voz das angústias das mulheres brasileiras, a jornalista nunca deixou de combater a condição submissa das mulheres em nosso tempo. Seus escritos mostram que o gênero feminino pode e deve trabalhar outros caminhos, fundamentalmente, o da libertação das amarras do convencionalismo, do preconceito, da obsessão - tais reflexões, sob medida, aplicam-se à obra de Clarice Lispector.
- Claro. Claro.
         - O difícil, querida, é saber o que mais admirar em Clarice, a jornalista com as entrevistas mais provocativas da mídia brasileira, ou a escritora com seu estilo inteligente, capaz de exercitar a imaginação dos leitores com temas instigantes e complexos, pujantes. Herdou no DNA o verniz do berço cultural da civilização ocidental. Seu acervo literário é, realmente, um cântico à eterna liberdade do ser humano.
- Ã-Hã.
- O certo, querida, é que ela vem deixando marcas nos dois setores: jornalismo e literatura, usando a palavra como agente transformador.
Pausa. Suzana admirada:
- Pelo jeito, Math, você curte bastante o que ela escreve.
         - Ã-Hã.
         - Fala mais.
         - Quer saber mais o quê?
- Tudo.
         Mathieu puxa o maço de cigarros da bolsa, tira um palito e acende. Pigarreia e volta a contar:
         - Clarice é muito perspicaz como jornalista. Não apenas na escolha dos assuntos e dos entrevistados, mas também na imagem comunicativa de seus textos. Renovadora e descobridora de novos caminhos, ela sabe como ninguém colocar pontos finais, onde as reticências não fazem a menor diferença e, sempre atenta em chegar à última frase do seu texto, na qual determina como regra fundir leitura e ação, história e ficção, sujeito e objeto, com o objetivo de ampliar os limites da crônica para as fronteiras do ensaio.
         - Olha!
         - Na mídia nacional é referência obrigatória do jornalismo avançado, escrevendo como se quisesse implodir os limites entre informação e opinião. Modelo conhecido como new jornalism, que vem alterando de forma radical as redações brasileiras também, onde passam a imperar o pragmatismo e a objetividade ao informar os fatos.
- Legal.
         - É o que se lê em sua coluna nas páginas do Jornal do Brasil, do Correio da Manhã, do Diário da Noite, como também em outras publicações país afora. Tanto que a revista Manchete abriu espaço para ela usar sua longa experiência e traçar um panorama novo da crônica no Brasil.
- Sério?
         - Mérito dela. Quer mais?
         - Tudo, fala.
         - Cronista de primeira linha, notável contista e melhor ainda como romancista. Reinventou a crônica. Tanto que, se pensarmos em grandes escritores no planeta, certamente Clarice estará encabeçando o topo da lista.
         - De fato.
         - Nos seus primeiros contos, já mostrando a nova safra de tintas na sua caneta, emplacou sucesso com Feliz Aniversário, O Búfalo, Mineirinho e A Galinha, todos publicados na revista ‘Senhor’, no final da década de 1950. Ensaios ilustrados por Anísio Medeiros.
         - Bacana.
         Depois de outra tragada, Mathieu continua:
         - Como na obra de Murilo Rubião, Osman Lins e Guimarães Rosa, onde são recorrentes metamorfoses e aspectos fantásticos de existência, a criatividade de Clarice garante algo, completamente, inédito na nossa literatura, como se ela quisesse mostrar que, ao entardecer a luz muda e recria a paisagem de forma mais sedutora.
         - Sem dúvida.
         - Pois é assim Clarice.  Sua obra, reconhecida pelos leitores e pares, trata com absoluta seriedade de assuntos que interessam a estudos literários, a psicanálise, a filosofia, a educação... E tudo mais que está em voga hoje em dia.
         Suzana suspira, deslumbrada:
         - Nossa, é o máximo!
         - Num tête-à-tête, ninguém melhor para domar o feeling do entrevistado, seja ele quem for. Figura de soberana originalidade, ela consegue abrir a cabeça da pessoa e conduzi-la para um diálogo marcado pelo tom de um bate-papo agradável. Diante de sua presença, serena e confiável, qualquer um tendia a se soltar, ficando à vontade para falar até de suas próprias vidas.
- Caramba!
         - Sempre à frente de seu tempo, é considerada uma das melhores cronistas da atualidade, junto com Raquel de Queiroz, Elzie Lessa e Virginia Wolff, fortalecendo a tese de que jornalistas e escritores têm muito uns com os outros.
         - Concordo.
         Pausa. Mathieu, depois de um trago de cerveja:
         - Clarice nunca escondeu sua admiração pela escritora e jornalista norte-americana Helen Gurley Brown, autora do livro Sex and the Single Girl, lançado em 1962 como um manifesto aberto pelos direitos das mulheres aos prazeres do sexo.
- Sexo e a Jovem Solteira?
         - Literalmente. A obra conseguiu a rara proeza de agradar leitores comuns e autores mais sofisticados. Tanto que, a partir de 1965, Helen começou a editar a revista Cosmopolitan, porta-voz da mulher contemporânea, com sua pauta voltada para a sexualidade feminina. Sistematicamente, Clarice recebe e lê todos os números da publicação.
         - Não sabia.
Mathieu depois beber um pouco de cerveja:
         - Sem falar que, depois de cativar leitores adultos com sua filosofia existencialista, apreciadora do universo infantil, Clarice volta a brindar seus admiradores mirins com um novo livro de histórias fantásticas. Recentemente lançou A Mulher que Matou os Peixes, com a missão de levar novas e grandes emoções para as crianças de novo.
- Fui com o Junior ao lançamento do livro em Belo Horizonte. Emocionei ao ver aquela constelação de olhinhos brilhantes da meninada numa grande festa de letrinhas para homenagear Clarice Lispector. Comprei um exemplar para o meu filho.
- Parabéns.
- Igualmente, li a história. Como a criança que habita nos adultos também gosto de contos de fadas, curti maravilhada seus personagens fantásticos. Numa simplicidade que nunca é pobre, o texto infantil de Clarice, traz ao universo literário brasileiro a elevada sensibilidade e a poesia de Lispector.
- Clarice é uma eterna sonhadora. Ela acha que se toda pessoa voltasse a ser criança, se livrasse da hipocrisia, o mundo seria muito melhor.
- Sem dúvida.
- Se na vida os valores da infância pautavam Clarice, na hora de colocar as ideias no papel as crianças serviram de inspiração para alguns de seus melhores contos, crônicas e livros. Para ela, as crianças estão sempre dispostas para a brincadeira de Esconde-Esconde, prontas para descobrir o novo, o que está escondido.
- Genial.
- Sabia que meu filhão já cuida de uma biblioteca exclusivamente dele?
- Excelente.
- Ler na escola ou fora dela, Math, contribui com o aprendizado e, certamente, no desenvolvimento da criança. Nada mais importante na formação cidadã da garotada, não é mesmo?
         - Nada.
         Suzana descruza as pernas e logo pergunta:
         - Qual a receita para ser bom jornalista?
         - Isso é meio intuitivo. Mas, existem regrinhas que ajudam.
         - Por exemplo?
         - Saber o máximo sobre a pessoa antes da primeira conversa é fundamental, como também adotar o silêncio para forçar o entrevistado a falar.
         - Terceira regra?
         - Preparar perguntas objetivas.
         - Legal. Que mais?
         - Conduzir tudo em ritmo de bate-papo para afastar aquele ar blasé entre o entrevistado e o entrevistador.
         - Magnífico!
         - Clarice aconselha aos aspirantes a escrever crônicas jamais esquecer que uma crônica é uma obra de arte. Ou aspira ser. Portanto, o profissional deve ser um inflexível aprendedor. Apaixonadamente, lendo bons autores e tê-los ao seu alcance como poderosa fonte de informação.
         - Boa dica.
         - Importante, claro, é dominar bem a gramática para não correr o risco de atropelar a norma culta da língua. Uma narrativa deve fluir sem pedras no caminho, evitar interjeições, dois pontos, reticências e sinais que embaraçam o leitor que pretende chegar logo ao ponto final. Escrever, como doutrina nosso poeta nacional, Carlos Drummond de Andrade, é também cortar palavras, reescrever até chegar ao exercício mais perfeito que um ensaio pode alcançar.
         - Ok.
         - E, para sinalizar o trânsito das ideias procure usar, com frequência, o ponto e a vírgula..., nunca juntos, viu?
         - Meu Deus, será que dou conta?
         - Claro.
         Mathieu acaricia o ombro da amiga, sorrindo.
- Interessante, querida, que Clarice adora fazer entrevistas como jornalista. Nega a grandiloquência, passa longe dos rótulos.  Na condição de escritora o entusiasmo diminui toda vez que a reportagem dela se aproxima, mas nunca se recusa a discutir e defender suas convicções. Bem reservada, discreta, vive dizendo que é um pouco tímida com os flashes, e justifica que é apenas uma dona de casa apaixonada pela palavra escrita. Evita tanto as aparições públicas que, cada dia mais, aumenta sua fama de reclusa e avessa às badalações do mundinho cultural brasileiro, mais frequentado por uma corriola de vates que aparecem para trocar tapinhas nas costas, elogios e favores.
- É sério?
- Foge porque é avessa a badalações, notoriedade. Isso não é para ela, definitivamente, não gosta de tapete vermelho. Mesmo assim, está virando celebridade, justamente, por se recusar a ser famosa, ter status.
Risos. Suzana joga a cabeça para trás e quando volta à posição natural, pergunta:
- E você?
         - Eu o quê?
         - Gosta de dar entrevistas?
         - Nada contra.
         - Tive uma ideia.
         - Diga.
         - Quero dar uma de Clarice, posso?
         - Hein?
         - Isso mesmo. Com uma ideia na cabeça e uma caneta na mão gostaria de testar minha inclinação, fazendo uma entrevista com você – insinua Suzana, descontraída.
         - Brincadeira, ‘né?
         - Falo sério.
         Risos. Mathieu pisca um olho para a amiga, suspira fundo e quis saber:
         - Assim, na tora?
         - Estilo pingue-pongue.
         - Perguntas e respostas?
         - Com todas as letras.
         - Tudo bem, eu topo.
- Reza um velho ditado que mais importante do que saber as respostas é saber fazer as perguntas certas. Vou tentar.
         - Então... Então, esferográfica e papel na mão.
         - Apanho já.
         Suzana levanta-se de um pulo. Na estante ao lado pega as folhas e uma caneta. Com os olhos iluminados por um brilho quente faz sinal com o polegar da mão esquerda para o jornalista.
         - Posso começar?
         - Claro.
         - Hiiiiiii!... Essas canetas! – reclama a mulher já acomodada na poltrona.
         - Estragada?
         - Pronto, peguei outra. Farei perguntas bem pontuais, viu?
         - Massa! Vamos lá.
         Espirituosa, Suzana volta-se para o amigo, morde a ponta da caneta e brinca:
         - Um, dois, três..., gravando.
         Risos. Mathieu cruza as pernas, deixando cair um braço por trás do encosto do sofá. Batia mais forte o seu coração.
 
* FBN© - 2012 – Clarice L. ..., NUMA  NOITE EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  vídeo Clarice - YouTube – Link:  http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/30xxx-que-misterio-tem-clarice.html
 
 
 
 
 
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