2011-01-03

22/XXII – MUITO ALÉM DAQUELE JARDIM

*

Waris Dires 
Abaixo o Establishment

A natureza mesmo agredida produz flores – Tagore


 Van Gogh.

 Campo de Trigo com Corvos
Um segredo se desvenda a todos que olharem o quadro com a mesma intensidade
com que ele foi pintado.





 
            Sentada na poltrona, Suzana se refaz mentalmente.
- Penso que a mulher pode se impor sem forçar muito a barra, mesmo numa época em que elementos de cultura estão ai rompendo paradigmas.
- Querida, se liga! Os jovens não voltam atrás em suas reivindicações. Isso é sine qua non. Nada do que foi será...
- Ora, viva! – ironiza a professora.
- Abaixo o establishment!
         - Arre!       
         - Para o seu governo, Suzana, a batalha não tem sido em vão. Mulheres começam a ocupar novos espaços na sociedade, conquistando ambientes até então dominados por homens. E são essas mulheres que fazem parte de uma insurreição de costumes que estão modificando a cara do mundo. Capisce?
- Ah, que bom!        
         - Mesmo com a existência de um pelotão de machões, estabelecidos numa seara dita masculina, que considera direitos de mulher assunto espinhoso, nas Faculdades boa parte dos alunos já é do sexo considerado frágil, fortalecendo a meta de transformar sonhos impossíveis em sonhos possíveis, inclusive nas áreas predominantemente masculinas. Sem o menor desconforto, elas estão aí para mostrar que, em qualquer parede você pode abrir uma porta.  
- Háháhá!
- Rindo de que, Suzana?
         - Do seu entusiasmo em falar das mulheres.
         - Ora, querida, vocês estão com tudo.      
- Será mesmo?
- Apesar de alguns dilemas, ainda questionados diante de tantas mudanças, a mulher de hoje está pronta para o que der e vier, mesmo com três bilhões de neurônios a menos. O que, para ciência, podem trazer algumas dificuldades para entender coisas cientificas e racionais.
- Parece piada.
- E é, sim. Atualmente, mesmo após a queda de tantas barreiras, algumas áreas do ensino universitário continuam um passo atrás. Muitas mulheres que, por exemplo, desejam seguir uma carreira na engenharia, encontram um setor onde se sentem rejeitadas.
- Isso mesmo!
- Mas, com jeitinho todo especial, elas estão invadindo territórios masculinos e começam a jogar por terra teses científicas que apontam o cérebro feminino inapto para assimilar conhecimentos complexos da Matemática, da Biologia ou da Física. Por isso mesmo é que elas estão aí brilhando, ganhando posições no grito, falando grosso. E, de salto alto.
- Viva!
- Nessa queda de braço, acumulam energia bivolt para provar que dão conta do mesmo serviço que um homem faz; mais macho do que muitos deles. E, como é uma geração sem modelo feminino para copiar, e está louca para entrar no mercado de trabalho, em alguns casos, acaba copiando o gênero masculino sem o menor pudor. Sabem elas que só conhecimento liberta, que é pela força dos estudos que vão romper barreiras e conquistar a igualdade entre sexos.
Suzana com um sorriso cômico nos lábios, repete:
- Viva!
- Sou otimista, querida. As mulheres mudaram e vieram para ficar, mostrando que têm luz própria e maturidade de sobra para avançar com os olhos no futuro. Os homens que baixem a guarda, porque a transformação reflete a própria mudança no universo feminino. Desigualdade, em hipótese nenhuma. Nunca mais.
         - Ah, Math, grande parte dos homens ainda têm dificuldades para nos aceitar como parceiras na distribuição do conhecimento e do trabalho. Pressões psicológicas e físicas para que a mulher volte a ser submissa são mais comuns, mundo afora, do que se pensa.
         Pausa. Mathieu:
         - Besteira. Em breve serão protagonistas do sucesso econômico e político no mundo. Cada vez mais, vocês ocuparão postos de trabalho que antes eram exclusivos dos machos.
         - Sei! – expressa a mulher, com jeito de quem ainda tem dúvidas sobre o futuro do sexo feminino no mundo contemporâneo.
         - Claro que sim. Pode escrever.
         Suzana vinca a testa e afirma em tom de censura:
         - Felicidade que ainda não se sustenta, Math! Um segundo olhar é o suficiente para mostrar que a realidade é outra, mesmo com as conquistas dos últimos anos que nos deram status nunca antes alcançados.
         - O quadro está mudando, criatura.
         - Estamos longe, muito longe do ideal. As desvantagens profissionais continuam evidentes em relação aos homens. Mais ainda no Brasil.
         Mathieu aquiesce com a cabeça.
          - Tudo que é novo, ou incompreensível, gera desconfiança e medo. Blaise Pascal já alertava que o homem está sempre disposto a negar tudo aquilo que não compreende.
         A mulher prossegue:
         - Dependendo do gênero a ordem dos fatores muda. Na história da humanidade as mulheres foram e continuam sendo desrespeitadas, principalmente, as mais pobres - agressão sexual é uma experiência comum a mulheres de todo o mundo. Segundo dados da OMS, duas em cada 10 na América Latina já foram vítimas de violência física, psicológica ou familiar.  Em algumas regiões do continente africano atingem níveis endêmicos com estimativa de vítimas superior a 15% da população feminina acima de 15 anos.
E mais enfática:
         - Em pleno século 20 ainda há nações no planeta que, só pelo fato de nascer mulher é motivo para ser abusada, explorada e morta. Criadas à sombra dos homens são consideradas forma sub-humana de vida. Saber ler e escrever é privilégio de quase nenhuma. Dá para acreditar?
         - Abominável!
         - Como se não bastasse, Math, adotam a ‘extracção’ para meninas de 3, 5, l0, 12 anos para torná-las disponíveis ao casamento como escravas sexuais. Fonte de emulação em todos os aspectos, um horror!
         - Lamentavelmente.
         - E, para garantir anonimidade de seu corpo são impostas a carregar o ônus do silêncio, dentro de uma burka - que mais parece roupa de apicultores - para o resto da vida para não ser admoestadas nas ruas. Quer monstruosidade maior?
         - Isso precisa acabar.
         Pausa. Suzana reforça indignada:
         - Acaba nunca. Boa parte dos homens que segue os preceitos do fundamentalismo religioso não pensa assim. Muito menos admite reciclar sua natureza humana, que considera a mulher objeto de sua propriedade. Querem os homens saber de tudo, de todos os detalhes referentes às esposas e filhas. Por isso, casos extemos de abusos praticados contra mulheres, muitos sob pretextos religiosos, até mesmo a punição para o crime de apostasia.
- Difícil de compreender, mas uma coisa me intriga. Não consigo avaliar tamanha aversão desse povo ao gênero feminino, diferenciado apenas para reprodução. Não tem cabimento. Não tem.
         - Não tem, lógico. Mas é prática corriqueira em alguns países africanos e do sudeste asiático, onde parecem ainda viver mergulhados no passado. Neles concentram as mais terríveis castas hierárquicas, cuja ordem religiosa manda tratar a mulher como espécie de potência demoníaca, que anula o homem. São parâmetros de total dessacralização da espécie humana. Quer discrepância, atrocidade maior?
- Conveniência, claro. Para mim, essa história de tachar e castigar a mulher pelos males do mundo é coisa de homem mal resolvido, que recorre à falsa culpa feminina para abrandar seu próprio infortúnio.
- Talvez, Math. Pior que, os abusos sexuais também são usados como potente e avassaladora arma de guerra nos conflitos entre etnias. Quando uma guerrilha se inicia, há valores que se sobrepõem ao da humanidade e da compaixão, nutridos pelos excessos e pela truculência pura e simples. Tanto é assim que grupos de terroristas invadem aldeias durante a noite para estuprar as mulheres, escorraçar e torturar seus filhos e maridos de maneira covarde e inclemente.
 
             - É o cúmulo! – expressa o rapaz, indignado.
- Não é possível, Math, resumir a multiplicidade de argumentos dessa gente para sujeitar suas mulheres a castigos desumanos. Sofrem violências domésticas a todo o momento. A cegueira moral é tão forte e obsessiva que até apanhar do marido, caso o jantar saia queimado, é permitido em países que não respeitam o direito das mulheres. Quer judiação, violência mais sarcástica e aterrorizante ao mesmo tempo?
- Degradante!
- Nem dirigir um carro na rua as mulçumanas podem. Só o homem consegue carta de motorista.
- Besteira!
- Pelo amor de Deus, até quando o mundo vai tolerar essa barbaridade?
- Não sei. Não sei.
- Arre! Se os ensinamentos do Alcorão não são para mudar os homens, então a bíblia deles serve para muito pouco.
Pausa. Mathieu:
- Usar tortura física ou psicológica não é legal.
- Coisa que milhões de mulheres aceitam por medo. Convencidas de que vieram ao mundo como ferramentas do diabo, destituídas de inteligência superior, aceitam tudo isso. Temor justificado. Caso contrário, são espancadas pelo marido, pelo pai, por primos, como seres inferiores condenados a oferecer o pescoço ao carrasco, como o cordeiro que é imolado. 
- Cultura do medo, Suzana. Sabem os agressores que o medo é o principal aliado de sua crueldade. A lei também, evidente. Por temor elas nunca procuram a polícia, porque muitas são assassinadas por denunciar o marido, numa clara demonstração de que não existe nada mais desumano do que a maldade premeditada.
- Primatas!
- Veja bem até onde vai a crueldade:  uma sobrevivente de estupro, pode ainda ser sentenciada a 100 chicotadas em público, como se dela fosse a culpa pelo ato delituoso. O negócio é desqualificar o gênero feminino de todas as formas. Difícil de acreditar, ‘né?
           - Caramba!
         - Um levantamento da ONU revela que uma a cada três mulheres, entre 15 e 49 anos, já sofreu agressões físicas ou abuso sexual nessas comunidades que adotam o regime do pertencimento e da alienação feminina. É uma crise humanitária sem fim. Pior: nenhum agressor ou estuprador foi condenado até hoje. Na verdade, os governos não veem nada de imoral no fato da violência doméstica, ano após ano, aumentar em seus países. Estão afinados com as atrocidades contra suas mulheres e até lutam para preservar os conflitos de identidade e dos choques culturais.
- Ai, meu Deus, é inaceitável! Está tudo errado. Aonde querem chegar com isso? Quando é que vamos abolir essa prática que afronta todos os dias os direitos humanos no planeta?    
Pausa. Mathieu:
- A Organização das Nações Unidas, preocupada em incrementar políticas de fortalecimento da mulher na sociedade de um modo geral, tem ciência da ablação realizada em algumas comunidades mulçumanas, tanto que seus dirigentes políticos sofrem pressão para tomar medidas concretas para acabar com essa história vergonhosa e trágica. Para tentar quebrar o ciclo de violência, pressiona a Organização que comecem por promover a educação de meninas, reprimidas pelas famílias e pelos extremistas. A ideia é criar valores de respeito e igualdade. E que essa conquista se torne cada vez mais comum, e não excepcional.
- Nada mais desafiador. Cá entre nós, penso que esses dominadores devem morrer de medo de livros e canetas, não é assim?
- Armas poderosas, claro. Como se trata de uma cultura milenar, presa a antigas estruturas patriarcais - falo da violência do passado e do presente nesses países que não conseguem enfrentar suas contradições religiosas – é difícil uma moça escapar do rigor das regras religiosas, que determinam desigualdade e inferioridade para ela até no seio da família.
- Sei como é. Como também sei que, em comunidades de baixa renda, as mulheres são mais vulneráveis, portanto as mais afetadas pela bestialidade masculina. É de cortar o coração ver o que acontece lá com as mulheres.
- Suzana, a violência física ou sexual é um problema de saúde pública que afeta mais de um terço de todas as mulheres no mundo, de acordo com relatórios da Organização. Isso vale dizer que a violência contra as mulheres é um problema global de saúde de proporções epidêmicas.
- Sem dúvida. Sem dúvida.
- Reconhece a entidade que mudar os princípios do jogo, colocando em pauta a condição humana das mulheres, é complexo e moroso. Mesmo assim, seus agentes prometem lutar para pôr fim a discriminação contra as mulheres, garantir sua liberdade individual, denunciar, atuar contra a violência doméstica em qualquer parte do mundo.
- Tomara.
- Mesmo sabendo que as estatísticas mostram que há um longo caminho a percorrer, eles trabalham para abolir o comportamento brutal da sociedade patriarcal dos ultra ortodoxos, e banir de vez esse rancor, que prejudica os direitos à vida e à saúde feminina.
- Nada fácil, todo mundo sabe. Para essa gente, submissa a leis e costumes de suas terras, será o fim do mundo.
- Mas é o futuro. Não podemos, em hipótese alguma, fechar as portas da democracia para os problemas mundiais.
- Claro.
Pausa. Mathieu:
- Do ponto de vista moral, político e legal, uma interferência é muito intricada e, frequentemente, não produz resultados positivos porque esse clima de terror mantém inalterado há séculos. Mesmo assim, a ONU pretende apresentar a esses indivíduos o dever e a sabedoria de respeitar a figura da mulher em cada mulçumana, oferecendo maior segurança para as suas mães e filhas. Disso a entidade não abre mão, afirma um relatório das Nações Unidas, que promove intenso debate sobre o fim da violência contra as mulheres no planeta.
- Ainda bem.
- A política é fazer a cabeça dessa gente no sentido de mostrar que podem ajudar a mudar o mundo. Basta mudar. Dessa forma, tenho certeza que, um dia, esse quadro será revertido, assegurando às mulheres discriminadas direitos humanos e, principalmente, direito de ter vida própria.
- Tenho fé. Deus há de olhar por essas infelizes.
Mathieu bebe um pouco de cerveja e sugere:
- O bom mesmo contra a opressão do sexo feminino nesses países, onde elas continuam pertencendo a lugar nenhum, seria as feministas do mundo inteiro mobilizarem-se para descortinar um movimento que despertasse as mulçumanas a se rebelarem contra os maus tratos sofridos dos homens. Consistiria em um grande passo para acabar com a tensão e a violência crônica que seguem essa gente ao longo da história, que são fomentadas pelo silêncio, atraso e tirania de certas nações no mundo.
– Claro. Claro - afirma Suzana.
- Querida, cinco séculos antes de Cristo, o dramaturgo Aristófanes, criou a personagem Lisistrata, uma pacifista ateniense que liderou mulheres numa greve de sexo, promovendo o grito das mulheres discriminadas. Ao recusarem seus maridos por um tempo, ajudaram a cessar o conflito bélico entre Esparta e Atenas. Sabia disso?
- Não. Não sabia.
- Pois é. Lisistrata pode ser uma boa mascote desse jogo.
Pausa. Suzana, ao fim de certo tempo:
- De fato, têm homens que só existem mesmo para digerir e evacuar. São dominadores, irritantes e fisicamente repulsivos. Indignos até de serem chamados de seres humanos. 
- Querida, o mundo sempre foi cheio deles. Encorajados pelo alcoolismo cometem barbaridades com os mais fracos, principalmente, mulheres e crianças.
         - Ai, não gosto nem de ouvir falar!
         Mathieu vinca a testa.
         - O Brasil, querida, não está tão longe disso. Aqui ainda se aplica, ao pé da letra, o determinismo biológico à agressividade masculina na subjugação da mulher. Se for negra, então sofre duas vezes. Discriminação por ser do gênero feminino e racial, por ser negra.
- Arre! Isso é a condição humana no limite da animalidade por obra da maldade dos homens.
         - No dia a dia brasileiro, muitas são violentadas sexualmente, espancadas ou assassinadas, sem falar da prostituição infantil e do tráfico de mocinhas para se prostituir no estrangeiro.
- Porcos fedorentos!
- Sim – abona o rapaz, meneando a cabeça de forma lenta.  - Autorretrato que o Brasil não quer enxergar, mas é assim mesmo.
Depois de refletir um pouco, Suzana:
- Veja o caso de nossas domésticas. Enfrentam o pressuposto de que o empregador deva se servir delas também como meros objetos de prazer sexual dele ou do seu filho. É senso comum. E pior: as vítimas temem denunciar o delito por medo, pela humilhação e pelo escândalo. Quer coisa mais arrogante, mais dolorosa, mais degradante?
- Absurdamente. Mas, o que a gente sabe é que, das poucas que se submeteram ao jus primae noctis, ninguém escutou a voz. Nem Deus.  
- No Juízo Final a justiça divina não falha, pode crer.
- Espero. Espero que não seja da vontade dele tanta atrocidade contra as mulheres.
         - Não, não é. Ele deu livre arbítrio aos homens, mas tem lá seu martelo para julgar e condenar. 
         - Livre arbítrio! Livre arbítrio, Suzana, é um termo mágico que ajuda a isentar Deus de qualquer má orientação aos seus seguidores.
         - Não diga isso.
         - Não é?
         - Ora, Math, está muito enganado. Todos que extrapolam serão punidos pela justiça divina. Ela não falha. Nada é impraticável para Deus – enfatiza a mulher.
         - Não?
         - Não.
         - Que assim seja. Amém.
         - O que é impossível para os homens é possível para Deus.
         - bom!
         Suzana reclinando-se na poltrona.
         - Math, eu invejo sua fé no futuro melhor para o universo feminino.
         - Terei filhas um dia, quem sabe? Muitas coisas já mudaram, mas luto para que as coisas melhorem bem mais. Eu quero que elas cheguem a um mundo de iguais condições sociais para todos.
         - Pode demorar, cara. 
         - Não se trata de uma corrida de mil metros. O trecho é bem mais extenso e tenho consciência disso. Sobretudo, sei que vale a pena lutar pelo que você quer.
- Don Quixote! – expressa a mulher, rindo.
Mathieu acha graça, acende outro cigarro e brinca:
- Os tempos mudaram, pelo menos no Ocidente. Aqui, a mulher já começa a pegar, matar e comer machos constrangidos e inseguros, perplexos diante de tanta liberdade. Pode crer.
- Vaginocracia?
         - Outra turma. Jacques Lacan, mergulhado nos seus estudos do universo feminino, garante que um dia as mulheres vão mudar a cara do planeta. Defende que as elas vão levar força não muscular, mas a força da inteligência para o desenvolvimento global. E justifica: são elas capazes de alcançar na plenitude a maturidade, atributo que os homens apenas tangem.
- Háháhá!
- As europeias e as norte-americanas já deram o sinal de largada. Cada dia mais, abandonam o papel de fantoches de homens e começam a produzir seus próprios caminhos.
- Quem sabe, não é mesmo?
- Em cada uma a soma de várias mulheres: a mãe, a profissional, a namorada. Lindas, como a energia que carregam dentro delas, com uma mão marcam espaço no mundo dos executivos e, com a outra, cuidam do seu ambiente social. Tudo numa boa. Postura firme, sem perder a sensibilidade feminina.
- Super mulheres?!
         O rapaz retira um cigarro da carteira, acende e assegura:
         - Quis dizer Lacan que, por mais que a mulher conquiste sua independência social, sempre terá a alma feminina regida pela sensibilidade humana. Em síntese, vocês estão aí para somar e dividir, inteiras e plenas em suas escolhas, dúvidas e inquietações. E, claro, sem perder a ternura e os olhos brilhantes diante de um buquê de flores.
         - É vero.
         - Viva a revolução feminina!!!
         Suzana contrai os olhos:
- Calma lá... Ainda existem no mundo muitos homens que não pensam assim.
- É praticamente impossível criar um comportamento padrão numa época com tanta de diversidade, querida. Para alguns, nunca houve tanta vulgaridade. Para outros, os mais otimistas, a mulher livre ainda vai continuar submissa aos caprichos masculinos.
- Ai, isola.
- Querida, toda mudança leva a polêmicas. Sempre foi assim. Especialmente, acesas pelos renitentes, possessivos e imbecis que implicam com a emancipação feminina, porque têm nisso sua liberdade varoa ameaçada.
-Vixe!
- Homens que cultivam nos lábios verdadeira fonte de veneno e, na língua, a crítica ferina para destruir os sonhos dos outros, principalmente, das outras.
- Ã-Hã.
- Por isso mesmo são especialistas em transformar o coração das parceiras em um iceberg, eternamente, submissas para viver sob a tutela do medo, antes mesmo do casal subir ao altar.
         - Deus me livre!
- São machões que, no terreno das hipóteses, buscam uma noiva virgem para casar, esperando dela boa, paciente e devotada esposa para suportar com resignação todas as infidelidades do marido. Uma Barbie que não fala, não questiona, exige pouco e ameaça cortar os pulsos caso o casamento seja desfeito. Ou seja, uma mulher subordinada que fica sentadinha ao seu lado, nutrida pelo desejo inconsciente de ser apenas objeto de consumo, boneca de um homem só.
- Cred         o!
- Por incrível que pareça algumas esposas têm o desejo doentio de sofrer! Passam a vida toda com ideias brejeiras povoando seus sonhos, mas, das quais, nunca ousou falar ao seu marido.
- Ã-Hã.
- Acredite ou não, mas é o anseio de todos os machões, viu? Eles querem uma relação com a esposa de extrema submissão e inteira dependência, doentia.
- Maluquice elevada ao quadrado!
- Por aí.
 - Meu Deus, é difícil de acreditar que, com quase um século da abolição, as consequências da escravidão continuam vivas entre nós?
Risos. Mathieu:
- Ora, Suzana, para esse cidadão nada é mais completo do que conviver com uma esposa reduzida ao silêncio. Por isso mesmo, na hora de casar, ele escolhe uma criada em regime machista que tem até vergonha de enfrentar um marido tirano, porque aprendeu com os pais a ser obediente, autêntica manager da família. E viva a etiqueta!
- Desaforo!
- Mais ainda: fora de casa, gosta e elege mulheres mais jovens, com o batom realçando seus lábios, para se divertir sexualmente. Uma vez casado, precisa provar que ainda é atraente, então flerta com outras mulheres. São homens que pensam mais com a cabeça de baixo do que com o coração.
- Vixe!
- E mais: preferem as vestidas com saias justas e curtas para alimentar suas fantasias nas relações extramaritais. Muitos até assumem a responsabilidade de criar filhos, concebidos em casos mantidos longe das cobertas conjugais.
- Ah, não!
- Dupla cara. Em casa é machista e, na rua, liberalíssimo. Conheço essa história de cor e salteada – afiança o rapaz.
- Cretinos!
- Aí se posiciona Beth Friedman para provar com sua obra A Mística Feminina, que ainda nascem homens no modelo do fascista Mussolini, ditador de uma postura que defendia que o sexo feminino não poderia passar de certo nível na escala social, seu papel se limitaria ao ambiente doméstico.
- Ela afirmou isso?
- Com todas as letras.
- Incrível!
- Sem meias palavras, Beth expõe o sofrimento que boa parte dos homens causa na vida das mulheres, inclusive nas que se prestam para serem usadas apenas como amantes.
- Maravilha.
- O que ela fala, com certeza ajuda a quebrar tabus e tirar de cena a mentalidade patriarcal. Vale a leitura. O livro já vendeu milhares de exemplares por todo o planeta.
- Não li.
- Se liga, menina. Leia.
Depois de uma pausa, Suzana curiosa:
- E das ‘moderninhas’ demais, o que me fala?
- Ao contrário das antigas casadoiras que caçavam um homem para transportar seu destino como Atlas carregava sobre os ombros a abóboda celeste, a mulher moderna quer um homem com a responsabilidade dividida. Quer um parceiro despido de tabus e cingido de desejos. Quer sexo, sobretudo.
- Caramba!
- Diante disso, os ‘bocós’, acusam as feministas até de boicotar o romantismo. Terror puro!
- Não sem razão.
- Que nada, amor não tem fim. O romantismo nunca vai sair de moda. Nunca se viu tanta busca de príncipe encantado, tanto vestido de noiva, tanto romantismo. A coisa vai se adaptando, porque toda forma de amar é válida. Tem de ser assim.
- É?
- Os tempos e o foco são outros, querida. A nova gramática do amor estabelece uma ligação mais profunda entre um homem e uma mulher. Ensina que se ama pela cor dos olhos..., pela cor dos cabelos..., pelo tom da voz..., pelo desenho do queixo..., pelo cheiro da pele que nos deixa em estado de completo atordoamento emocional. No bom sentido, claro.
- Nossa!
- A cara metade pode vir em qualquer formato, tamanho, cor ou cultura – garante o rapaz cantarolando: ... E não faz mal/que ele não seja branco, não tenha cultura/de qualquer altura/Eu amo igual.
- Erasmo!
- A verdade, Suzana, é uma só: os ditos machões de hoje terão que se acostumar com as atuais regras, e se projetar num amor menos possessivo, menos preconceituoso. Enfim, têm que procurar um novo jeito de ser homem. Até porque somos parte de uma geração revolucionaria, ‘né? 
- Aposto, Math, que ainda existe uma pilha de homens desejosos de se casar à moda antiga – rebate a mulher.
- Essa mudança é lenta e gradual. Temos que dar tempo ao tempo. Em pouco menos de uma década não é possível mudar tudo o que existiu em milhares de anos.
- Talvez.
- Felizmente, uma série de transformações que aconteceram no decorrer dos anos 1960 vem modificando esse quadro de maneira irreversível.
- Sem dúvida.
- Impossível generalizar os homens, mas o que a gente vê é que o movimento libertário divide as águas do relacionamento amoroso em duas partes. De um lado, os tradicionalistas, que têm na virgindade o maior documento de casamento para a mulher - espécie que caminha a passos largos para a extinção. De outro, os revolucionários, que sabem que as mulheres exigem mais considerações do que abusos.
- Claro.
- A verdade é uma só. Na medida em que as pessoas aprendem que é preciso ter liberdade para ir e vir, cada um desenvolvendo seu projeto de vida longe do controle de um parceiro sobre o outro, o relacionamento terá como resultado momentos mais felizes.
Suzana franze a testa e se cala. Logo sua expressão volta animada, e conta em tom de brincadeira:
- Mamãe vive citando Maomé, que falava que a mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser pisoteada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual, debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada.
E, com suave afeição, acrescenta:
- Sabe de uma coisa, Math, o mito do romantismo ainda prevalece dentro de mim como um vasto oásis poético. Por isso mesmo, carrego na alma a herança de uma memória lírica que fala direto ao coração.
- Viva!
- Parafraseando Casimiro de Abreu, digo que vida é um hino d’amor. Puro encanto. Por isso mesmo quero que meu varão sempre me mande flores e me corteje com serenatas. Eu gosto de ser mulher. Torço pela volta dos tempos mais românticos.
Mathieu faz sinal afirmativo com a cabeça.
- Folgo em saber. 
Suzana estende uma mão ao rapaz, dizendo em voz doce:
- Fazem bem a quem as recebe. Em todos os sentidos, viu?
- Viu - abona o poeta, beijando a mão da amiga.
- Apesar de termos, cada vez mais, caminhado para a independência amorosa, uma mulher sensível jamais deixará de adorar gestos cavalheirescos do homem.
E depois de um suspiro demorado:
- Sonhar é comigo mesmo, Math! A Natureza, mesmo agredida, produz flores, já dizia Tagore.


* FBN© - 2012 – Muito Além Daquele Jardim..., NUMA NOITE  EM  68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.: Girassóis, de Van Gogh.. Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/23xxii-tempo-de-metamorfose-abaixo-o.html

 

 

 

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