2011-01-03

18/XVIII – PASSEIO NOTURNO POR UMA CIDADE PSICODÉLICA.

*
Naquela mesa.


Amilcar de Castro


'Belo Horizonte à Noite', óleo sobre tela.


Sylvia Plath


Tabac Opposite Palais de Justice, nanquim sobre papel.






Num gesto de dúvida, Mathieu:

 - Bem, voltando ao assunto. A gente falava mesmo de quê?

- Dos bailinhos no Caape – relembra a mulher.

- Ah, sim. 

- Fiquei admirada com o que me contou.

- Bem, mas boas pistas de dança não acontecem apenas ali.

- Aonde mais?

- Existem outros eventos nos fins de semana. Posso citar os bailes do Minas Tênis, do Clube Belo Horizonte e da Sociedade Mineira dos Engenheiros. São muitos.

- Nunca dancei em nenhum deles, mesmo quando solteira. Acredita?

- Não sabe o que perde.

- Sem dúvida.

Risos. Mathieu entusiasmado:

- Vez ou outra, eu dou um pulo ao Montanhês. Meu quebra galho notívago, quando a onda é divertir e a fome de dançar fala mais alto.

Suzana torce o nariz.

- Valha-me Cristo! Frequenta esse mucufo na zona boêmia?

- Curto bastante. Lá, a dança é outra coisa.

- Háháhá! Deve ser uma espelunca cheia de pulgas. O que não é de se estranhar na Guaicurus, rua suja e mal afamada da Capital.

- Não. Não é não.

- Depravação pura! Fora que nos banheiros o cheiro deve ser intolerável. Deve flutuar aquele odor acre de urina. Eca!

- Que cabeça?!...

- Iac... Ai, que nojo! – repele Suzana com expressão de estômago revirado.

- Nojo! Nojo de quê? O Montanhês é bem asseado e as mulheres cheirosas, limpinhas.

- Háháhá... Cheirosas!

- É do ofício, querida. Perfumadas atraem mais clientes. O lema na zona boemia é simples: pela beleza, pelo cheiro e pela sensualidade de um corpo que prostitui, o freguês perdoa qualquer deslize de sua alma. Lá, a beleza física supera tudo.

            - Misericórdia! Aposto que usam esses Magrifes e Cabochás falsificados que os camelôs vendem por aí.

- Pode até ser. No Brasil falsificam até remédio para consciência pesada.

 Risos. Suzana em tom crítico:

- Coisa mais démodé, Math!

- Hum? – finge de desentendido o rapaz.

- Isso mesmo que ouviu. Está fora de moda esse negócio de ficar correndo atrás dessas mulheres malvistas na zona boêmia. Para seu governo, são elas verdadeiras serpentes tentadoras do mal.

- Menos. No Montanhês a pedra é outra, só têm dançarinas do primeiro time que nos ajudam a liberar as forças que, durante o dia, são dominadas pela razão e pelo desgaste do trabalho. Por isso mesmo, não conheço na cidade melhor lugar para um homem serenar seu ritmo de estresse.

O sangue sobe à cabeça da mulher.

- Na Guaicurus, cara?!...

- Engana-se, menina. Engana-se. O Montanhês é alta patente quando o assunto é dançar, porque a volição pela dança está no DNA da casa. Pista espelhada e decorada com globos importados no teto e nas paredes, projetando fachos de luz por todos os lados. Quer coisa mais insinuante, criatura?

- Meu Deus!

- É o nosso Au Lapin Agile Cabaret. Aquele cintilante reduto de boêmios em Montmartre, frequentado por artistas da época. Lá tinham mesa cativa Picasso, Utrillo, Modigliani e outros pintores famosos. O Montanhês, do mesmo jeito, reúne clientes afamados, seduzidos pela boa dança de salão. O poeta Rômulo Paes, com suas olheiras marcantes, como convém a um patusco convicto, é um deles.

- Caramba!

- Suzana, implicada com o quê?

- Ah!

- A casa se consagra como o templo mais frequentado pela elite intelectual da boemia alterosa, que lota o lugar para entabular conversas, discutir e mostrar soluções aos rumos da vida sociocultural da cidade, sabia?

- Não diga tolices, Math!

- Falo sério. Como é um espaço sem frescuras, considerado um ‘cabaré-estado’ desmilitarizado, lá tudo se conversa. Tudo. O local é visitado, igualmente, por todos que querem se divertir na noite, sejam boêmios, capitalistas, militares ou estudantes. Ali as dançarinas é que são colocadas no centro do sistema, dando os catamênios.

- Catamênios? - pergunta a professora.

- Sim.

- Nunca ouvi ou vi essa palavra na vida.

- As regras. As normas.

- Que pobreza, meu Deus! Num lugar assim, onde os homens promovem a maior galinhagem, ficando de periguete em periguete?

- Não tem cálculo o número de decisões políticas tomadas naquelas mesas. Infinitas. Infinitas.

- Imagino.

O rapaz se inclina e, amavelmente, toma as mãos da amiga:

- Ô, querida, de onde tirou tanta raiva para desmoralizar nosso sublime cabaré?

- Todo mundo fala que o Montanhês é barra pesada – assevera Suzana com um riso nervoso nos lábios.

- Olha aqui: está muito enganada. O Montanhês conserva clima e jeito de clube de baile do interior. Exibe seu Código Informal de Conduta impresso e posto, religiosamente, nas mesas dos clientes com as regrinhas para garantir o bom funcionamento da casa.

- Acha que sou boba?

- Para seu governo, lá ninguém fica alisando o outro. Proibido até beijar na boca. É a disciplina da casa. As garotas, enquanto dançam, quando muito, elas conversam com o parceiro. São orientadas a manter postura de bailarina o tempo todo. Quem contraria os preceitos se dá mal, recebe cartão vermelho e convite para deixar o lugar. Há sempre um fiscal de olho.

- Háháhá... Esse é irmão desse!

- É sério.

Depois de um silêncio pensativo, Suzana:

- Ora, Math, são mulheres que praticam dança por grana, perdidas como todas numa zona de baixo meretrício. Não vem que não tem! Por dinheiro estão dispostas a outras coisas também, acha que sou boba?

Mathieu puxa uma longa tragada no cigarro e, em voz entonada, diz:

- Como não poderia deixar de ser, são elas pequenas deusas entre 18 e 25 anos, que agregam belos e curvilíneos traços no perfil do corpo, para proporcionar aos homens de bom calibre, nada menos nada mais, do que noites de acentuado luxo no faustoso salão de dança do Montanhês. 

- Endoidou?! – abisma Suzana.

O rapaz toma um pouco de cerveja. Depois de outra tragada no cigarro, continua no mesmo tom de voz:

- Com seus corpinhos singulares, vestidos de nuvens estão ali para seduzir cavalheiros à ação do divertimento apenas, como parte da cultura do entretenimento urbano. Mulheres prontas para dar alegria ao corpo do macho, girando deleitosamente na pista de dança iluminada. Nem sempre loiras e esguias, como modelos das passarelas de moda, mas todas bem entrosadas com os gêneros musicais mais exigidos pela clientela da casa.

- Menos, Math! Menos! Vocês homens costumam fazer uma tremenda confusão com as palavras só para nos enrolar. Sem essa, viu?

- Querida, não há coisa mais penetrante e prazerosa do que uma noite bailando nos braços de uma dançarina de primeira linha. Ou tem?

- Apologia mais chula! Nem parece...

- Mas é isso, sim. Seus olhos no rostinho delas, enquanto os dos fiscais de pista estão em você. Mesmo assim, vale a pena.

Depois de pensar um pouco, ela com um sorriso cínico:

- Wat’s your price?

- Hum?

- Quanto custa ficar com uma mulher na zona?

- Sei lá, nunca me interessei.

- Não?

- Não.

- Conta outra.

- Suzana, não existe e nunca existiu sexo de graça, sem um custo. Desde que o mundo é mundo, o homem paga para ter o amor de uma mulher. Paga com a alma, ou com o vil metal, o que é sempre mais em conta. Vai me dizer que não sabe disso?

- Vai me dizer que nunca pagou alguma para algo mais?

- Nunca. Detesto a ideia de mulher coisificada.

- Medo da infeliz se enrabichar por você?

- Jamais ocorre, são profissionais que evitam expor mais do que o necessário. Missão dura, mas...

-Háháhá!

- Não faz parte das regras serem pegajosas, pegar no pé de homens. Pior erro. Uma meretriz sabe de cor e salteado que seu corpo é apenas entretimento para os homens. Usam-no apenas como objeto de prazer sexual, às vezes, particularmente humilhante. Após o programa eles somem e, quando voltam, procuram outras que imaginam ter um desempenho melhor. O negócio de quem procura a zona boemia é variar e ter sempre uma mulher disponível ao alcance de seus caprichos.

- Acredita nisso, cara? 

Mathieu, para perturbar mais ainda a amiga, responde de forma cifrada:

- Nessa hora, por sua conta e risco, o que entra em jogo não é a fêmea nem a sua alma, apenas a sua pele. Ao escolher o prostíbulo para sobreviver, uma mulher expulsa o corpo para longe de si..., para o meio de outros corpos sedentos de sexo. Nada mais. Tudo sem envolvimento afetivo, muito menos motivações ideológicas. Gente que transa sem beijar na boca, embate carnal entre desconhecidos. Na zona até o orgasmo é fingido, teatralizado. Mente-se muito por trás de suas silabas. Pela frente também. Ninguém é absolutamente feliz, capisce?

- Acha mesmo?

- Se bem que, para algumas, a descoberta do sexo e quanto o desejo pode levar uma adolescente a trilhas tortas, marca sua presença num lugar assim. Por ai.

- Sem filosofar tanto, Math!

- Se bem que existem casos de uma ou outra prostituta ter lá sua clientela formada, principalmente, por solteiros que não querem nada sério com nenhuma mulher. Eles costumam pagar uma delas para fazer sexo, numa tentativa de flagrar dilemas existenciais, ligados à repressão de paixões.

- Sex and submission.

- Sem falar de um ou outro freguês, normalmente casado, chamejando numa latência de fantasias e quereres, que busca na zona boêmia nutrir sua carne da intimidade de uma mais ‘completinha’, entre lençóis de cetim.

- Hein?

- Mais afoitas, sabe como é. Mulheres que sabem seduzir com artimanhas de profissional desde o começo da brincadeira. 

- Clientela? Arre, nunca pensei que existisse isso na zona!

- Faz toda a diferença.

Pausa. Suzana com ar meio cínico:

- Oh, Math, como sua conversa é proveitosa! Tanto que até me encabula.

- Acha?

- Bem se vê que viajou muito pelos cabarés da vida.

Risos. Mathieu:

- Existem várias razões pelas quais os homens procuram as prostitutas. Alguns por companhia, outros por sexo mais apimentado e também aqueles que buscam exercícios cognitivos que possam revitalizar seu pênis já meio frappée, meio brocha, meio preguiçoso. Portanto, cada freguês, no seu labirinto psicológico, estabelece uma delas como favorita para saciar o que for. Seja lá seu enorme apetite sexual ou por uma viva decepção no órgão pelos sinais de perda da sua vitalidade ou, simplesmente, para abiscoitar experiências mais ousadas num sexo alucinante. Sem falar daqueles que, para satisfazer taras sexuais ocultas e inexplicáveis atitudes, exigem submissão total da parceira. Entre quatro paredes, perdem qualquer reserva moral ou timidez, o que importa para eles é buscar o prazer seja da forma que for. Querida, vale tudo, um luxo só.

- Virgem Maria!

- Na zona todos os homens são iguais, desde que tenham dinheiro para pagar a festa. Esse é o princípio.

- Hilário!

- Nada é tão simples, menina. Talvez, em certas pessoas o vazio não se crie, mas nasça com elas. Enfim, somos seres de desejo, e não de razão. Para alguns especialistas em sexualidade, comemos tudo em consequência do desejo irracional dessas quatro letrinhas dedicada à mais pura gozação. Sabe disso, ´né?

- Sim.

- Ah, já ia me esquecendo. A zona é também reduto dos safadinhos que celebram ali a famosa despedida de solteiro, para brindar a um encontro com uma puta que não é de ninguém.

- Isso acontece, Math?

- Com frequência. Para eles, a infidelidade não é algo que se deva ser levado tão a sério, mesmo já sendo de outra.

- Quanto se paga por isso?

- Na zona o freguês paga por qualquer extravagância extra. Portanto, esse contato físico é extremamente precificado e segue uma tabela de preço. Sugestões distribuídas em categorias que vão de 10 a 50 cruzeiros novos, ou mais. Só para lembrar, o dólar está cotado a 4,153. Valem o que pedem.

Pausa. Suzana:

- Não é à toa que, na boca do povo, essas vadias botam rico pobre e o pobre sem-vergonha, totalmente entregue ao ócio e ao vício. Elas estão na zona para surrupiar os gaiatos.

- Cedo ou tarde, muitos homens vêm a pagar pelo prazer sexual, alerta Shakespeare. Ou isso ou nada. Em quase todas as cidades do mundo, desde o início da civilização, os rendez-vous languescem o dia inteiro. Sabe bem você que na literatura bíblica, até Jesus estendeu cuidados especiais para com as prostitutas.

- É.

- Na história de Cristo elas foram tratadas com simpatia, longe de serem tão diabólicas assim, merecidamente.

Suzana escuta, esfregando o punho no sofá, depois provoca:

- O dinheiro pode comprar sexo, mas não o amor.

- Talvez.

- Essa gente deve gozar muito, claro. Mas, aposto que ninguém é totalmente feliz nesse lugar, até porque todo mundo deve transar sem beijar na boca.

-Isso é outra história, querida.

 A mulher tranca o sorriso e pergunta curiosa:

- Como se vestem essas lambisgoias?

- Sem escrachar, querida.

- Posso saber?

- Ao contrário do que se pensa, sem tanto espalhafato.

- Duvido.

- Normalmente trajam vestidinhos de cores fortes. Alimentando expectativas, buscam encantar e surpreender os fregueses. Cada uma desenvolve seu jogo de sedução, porque a finalidade é se vender pelo encanto para ser usada e compartilhada da forma mais democrática possível. Dessa forma, imaginam que podem fazer algum bem à sociedade estabelecida. Enfim, para essas pessoas, prostituir-se é um comportamento normal.

Mais implicada ainda, Suzana:

- Ridículo. Bem, como a banalização do sexo é mais forte no corpo que se coloca à venda, elas devem se exibir em roupas minúsculas para despertar desejos a gregos e troianos, envolvendo os homens em vicissitudes infernais.

- Acha?

- É claro. Vivem de criar maneira de esvaziar os bolsos de pessoas honestas. Estão ali interpretando papel de personagens demoníacas para seduzir suas vítimas.

- Algumas, sim. Algumas interpretam aquele tipo mocinha, candidamente, cheirando a Tutti-Fruti e dispostas a perder o lacre..., tão graciosas, quanto corajosas. Fingem senhoritas de respeito, de família, como virgens iniciadas na libertinagem por imposição do destino, sem deixar de parecer uma daquelas antigas moças de boa família. São famosas por aceitar fazer de tudo por dinheiro.

Com o sorriso congelado, ela:

- Deus-me-livre!

- Há quem goste, claro. Mas, eu acho um perigo.

- Seguramente.

- Tem mulher para todo tipo. Já vi até uma vestida de noiva, com seu vestido branco e esvoaçante, tiara de perolas nos cabelos para coroar e dar um toque a mais no look. Nos ombros, mantilha vermelha e, sob as maçãs do rosto duas manchas cor de rosa para dar mais inocência na carne podre. 

- Sério?

- Doidice de rapariga que adora arranhar corações.  Mas, fazia o maior sucesso entre os clientes na sala de espera do randevu, deixando machos boquiabertos e vencidos diante daquela gostosura. Adrenalina à flor da pele.

Suzana, com um olhar intrigante, gozador.

- Sei como é, estão ali a preparar as iscas para que um ‘trouxa’ qualquer caia nas suas armadilhas, disposto a gastar muito dinheiro e suas extravagâncias.

- Sua velhacria é espontânea, generosa, talvez seja tão sincera quanto seu amor pela virtude. O segredo não é só o rostinho lascivo e, sim, a força de persuasão que conta mais ponto.

- Sei.

- Ilusão que seduz. Os homens vivem sedentos por algo assim, tanto que pagam um preço alto para ficar com uma ‘casta’ de faz de conta.

- Tolos!

Mathieu esfregas as mãos, justiçando:

- Por isso que a prostituição continua maldita. Em tese, se funda no escândalo do prazeroso sexo sem amor para os farristas. Sempre foi assim.

- Chocante!

- Ora, Suzana, quem alimenta essa ideia preconceituosa considera as pessoas que se prostituem como eternas menores, sejam de que idade for. Criaturas sem liberdade, sem vontade própria, apenas vítimas dos cafetões, da miséria e, muitas vezes, de um trauma de infância.

- E não é?

- Nem tanto. Existe no bordel até ex-miss beleza que, após uma desilusão amorosa, caiu nessa estrada em busca de si mesma. Acredita?

- Acredito.

- Um brinde às Mulheres da Vida! – levanta o copo Mathieu.

Suzana não se manifesta. Depois de um riso maldoso, ela afirma:

- Háháhá... Se bobear, um dia pinto no Montanhês só para ver o que tanto atrai nessas megeras.

- Curiosa?

- Super. Minha bola de cristal anda maluca para saber como é a vida dessas oferecidas que se entregam como mercadoria para qualquer um.

Risos. Mathieu:

- Os Cabarés, querida, têm passado histórico. Em todos os tempos funcionaram como verdadeiras universidades da alegria, capacitando a rapaziada em prazeres sexuais através em ricas aulas práticas.

- Sei.

- Aqui mesmo podemos enumerar diversas casas de rameiras, espalhadas pela cidade, exibindo graus diferentes de interesses. O meretrício possui uma espécie de hierarquia no seu meio; idêntica a classificação que marca os hotéis, com maior ou menor número de estrelas.

- Como assim?

- Sendo que as de quatro são denominadas de alto bordo. Por exemplo, na casa luxuosa da Zezé chegam aportar meninas de primeira classe, como as requintadas francesas, polonesas, eslavas, russas e, inclusive alemãs e austríacas, genericamente, denominadas de polacas.

- Cardápio tão variado assim?

- É isso, se quer conferir, vai lá. A curiosidade criou a filosofia, ajudou a descobrir a origem das espécies, levou o homem à lua e, para muitos analistas, anima a infidelidade conjugal.

- Bobo, não é nada disso. Você tem coragem de me levar ao Montanhês?

- Encasqueta não!

- Tem? - insiste a mulher, rindo.

- Está desconfiada de que o Zé frequenta a casa comigo?

- Ah, tudo!

- Bem... Bem... Seu marido é meu mentor intelectual, mas não parceiro de conquistas amorosas, muito menos companheiro dessas paradas. Ele armazena DNA próprio, mais refinado. O Montanhês não é sua praia, pode acreditar.

- Nem poderia. Pelo que conheço da figura, o outro sexo ele traz, narcisamento, em si mesmo.

- Eu, hein! – surpreende-se o rapaz.

- O contrário de você, não é mesmo?

- Vou à Guaicurus só para dançar.

- Duvideodó!

- Juro. O exercício faz bem para o corpo, a alma e o cérebro. De quebra, estabiliza o humor. Serotonina pura.

- Embroma não, mocinho.

- Escuta aqui, mocinha, não me deito com elas. Gosto é da farra, da festa, da animação. Nada me fascina mais do que uma noite alegre e divertida. Fico na minha.

- Na zona?!...

- O que é que tem?

- Visitar um lugar assim, Math, não pega bem para um rapaz como você.

- Asneira.

A mulher respira fundo. E conclui:

- Quando se pode um moço do seu nível encontrar parceiras em locais mais decentes, não precisaria ir às casas de tolerância, onde é possível pegar doenças venéreas com muito mais facilidade. Não acha?

- Ora, Suzana!

- Ora o quê, rapaz. A sífilis não vê cara, nem coração.

- Tenho senso do perigo, não arrisco. Não sujeito minha saúde nem minha vida aos riscos daquele lugar, porque tenho consciência de que é um verdadeiro campo minado também de gonorreia, cancro e outras doenças sexualmente transmissíveis. Falo sério.

Suzana eleva a cabeça com um sorriso aliviado. Enxuga o suor da testa com as costas da mão e logo diz:

- Menos mal.

- Claro. Claro.

- De qualquer forma vive sempre correndo atrás de uma rapariga, não é mesmo? Qualquer uma serve. Faz parte de seu currículo de conquistador

- Nada a ver. Procuro mais numa mulher.

- Será?

- Não faço sexo por sexo. Nunca.

Suzana, depois de mais um pouco da bebida:

- É para acreditar?

- Evidente.

- Ponto para você. Apresenta mais juízo do que eu imaginava.

- Obrigado.

A mulher, depois de uma pausa calculada, procura saber mais sobre a vida noturna da cidade:

- Além dos clubes, da zona boêmia, onde mais as pessoas se divertem na nigtht?

O rapaz para um momento para acender outro cigarro. E revela:

- A vida noturna aqui é bem agitada. Não é à toa que a paquera se espalha pela cidade toda.

- Então me fala onde começa a sua via sacra?

Risos. Mathieu:

- O ponto de convergência para diversas tribos é o Edifício Arcângelo Malleta, o Malletão. Bares para todos os gostos e sem susto na hora de pagar a conta – garante o rapaz.

- Conheço a fama do lugar.

- É superlegal. Reduto e palco para altas discussões noturnas entre intelectuais de cabeça feita, entre gente do ofício da arte, inclinação política e idades diferentes. Reúne vários grupinhos de gente apaixonada pela história do país. Um de literatura, outro de teatro e cinema, de pintores, de sociólogos... Todos observados por um ‘tira’ camuflado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que fica por ali o tempo todo sapeando. Qualquer surpresa...

- Absurdo!

- No primeiro piso do Shopping ficam restaurantes fervilhados de artistas, jornalistas e escritores de várias gerações trocando ideias, principalmente, nos bares Cantina do Lucas e Lua Nova - a discussão cultural é o álibi, o substituto para a falta de democracia e de liberdade política no país.

- Entendo.

- Subindo a escada rolante deparamos com as boates, conhecidas por ‘inferninhos’, para as pessoas que são mais ‘atiradinhas’, mais descontraídas. Beleza pura! Do lado de fora os bares: Pelicano e Polar, que agrupam estudantes de Direito, todos dotados de uma inteligência cívica brilhante, varando a noite a parlamentar. Além do mais, no Malletão concentra o maior número de livrarias da cidade, principalmente, os ‘sebos’.

- Sei.

- Agora, para as patricinhas, o point da badalação é na região da Praça da Savassi. Sem dúvida o espaço mais vibrante da Capital. Abrigam-se lá os barzinhos Chez Bastião, o Tom Marrom, o Uai..., repletos de gente ‘antenada’. Na parte central da cidade, a grande pedida é o Bier Haus ou o Monjolo, locais em que esbarramos com garotas de minissaias, rapazes com calças da marca Calhambeque, dando seu rolezinho, exibindo sua ‘panca’ de conquistador. Nesses bares divertem até famílias inteiras, dos avós aos netos.

- Family entertainment?

 - Sim. Livre para todos os públicos.

- Não conheço nenhum deles – confessa a mulher.

- São verdadeiros chamarizes para o pecado da gula, ou para se render à luxúria de ambientes favoráveis à recreação noturna. Agitação que hidrata o corpo e o espírito de qualquer cidadão. Manja?

- Ah, minto. De vez em quando vou à Camponesa.

- Programa de gente normal – brinca o rapaz. - Em outros tempos a casa foi a ‘bola da vez’. Mantinha um quarteto tocando músicas românticas toda noite, atraindo grande número de pessoas, principalmente, professoras que vinham passear na Capital. O flerte corria solto.

- E você sempre lá, de plantão?

Risos. Mathieu:

- Gostava de fazer uns lampejos de poemas e, pelo garçom, enviava para as que trocávamos olhares.

- Numa bandeja?

- Preferencialmente. Mais lírico ainda acompanhado por um botão de rosas vermelhas!

- Meu Deus! Sempre desempenhando esse lado de conquistador, não é mesmo?

- Para os poetas seduzir é um dom, conquistar é um prazer.

- Eu sei. Eu sei.

- Outros tempos. Agora, diante de tantos barzinhos espalhados pela cidade, a Camponesa ‘micha’ cada dia mais.

- Sério?

- Mesmo perdendo força, ainda é um ponto para quem gosta de sair para celebrar datas comemorativas ou projetos alcançados. Tipo do lugar para casais, preferencialmente, com filhos.

Pausa. Suzana:

- E as boates?

- Old Face, Caverna e People são as danceterias mais procuradas pela turma da paquera. Ao som do rock pesado e do twist, garantem altos agitos até o sol raiar, a todos que procuram diversão sem limites na noite. Show de bola!

- Maravilha.

- Agora, para quem usa até Marx para ganhar as gatinhas e quer namorar em paz, com privacidade garantida, a grande jogada é convencê-las a conhecer a Boate Itapoá, na Avenida Bias Fortes. Além de diversão barata e divertida a boate ostenta um ‘q’ a mais, que nos favorece a viver experiências radicais.

- O quê?

- Lá dentro um mal enxerga o outro, um breu. Ferveção total!

- Sex club?

- Não chega a tanto. Mas...

- Sem vergonha!

Risos. Mathieu:

- Aos que imaginam um clima romântico, a boa pedida é o Top-Bar. Lugar charmoso para curtir, relaxar em boa companhia e sentir que a noite não é apenas o negativo do dia.

- Bom, hein?

- Ali a harmonia pega leve.

- Hummmmmm!

- Ao som dos anos 50, que sai de um piano ainda mais velho, a casa se transforma num cenário perfeito para namorar. Mal iluminada, aconchegante.

- Piano e voz?

- Apenas o solo do instrumento para não confundir o clima de romance.

- Adoro piano.

- Então vai gostar. Imperdível.

A mulher faz uma pausa, lança um longo olhar para o amigo. E confessa:

 - Morro de vontade de ir a um lugar assim.

- Fica na cobertura de um dos prédios da Rua Tamoios com Afonso Pena. A vista é linda. Muito legal para contemplar o horizonte sem fim da cidade.

- Uau!

- Chama o Zé. Certamente será uma noite inesquecível, tanto para você como para ele. Sonhar é bom.

- Math!

- São meus convidados. Vão amar.

Suzana perturba-se. O rapaz percebe e logo pergunta:

- Por que a carinha triste?

- Ô, senhor Jesus, dai-me paciência! Queria que estivesse como, rindo de satisfação?

- Por que não?

Ela dá de ombros com ar afetado.

- José Renato! Pelo jeito você não entendeu nada de nada. Estou pouco me lixando..., ele que se lasque, que se dane. Esse ‘mocorongo’ não é mais objeto de minha preocupação, quero distância dele. Pare de forçar a barra, dá um tempo, vai.

Mathieu detém-se, coça o rosto com ar embaraçado.

- Não tive a menor intenção de perturbar.

- Ai, às vezes, você me confunde a cabeça, pega pesado. Ridículo tudo isso, me poupe dessa ‘mala’ sem alça - enfatiza, enojada a mulher.

- Desculpe-me.

A mulher, em voz queixosa:

- Seu amigo tanto fez que não quero mais saber dele, cansou minha beleza. Zerou.

- Putz!

- Entenda como quiser. Se insistir, ó, fico de mal. Aquilo ali não vale o chão que pisa. Agora, se me dá licença, melhor girar a conversa para outro lado.

- Tudo bem - acolhe o rapaz numa tentativa de manter a conversa em tom cordial e bem humorado.

Suzana aprecia mais um gole de cerveja e recosta o corpo na poltrona.

- Tem mais? – pergunta.

- Mais o quê?

- Outros lugares onde a ‘macacada’ reúne para a caça noturna.

- Contei tudo.

- Aposto que não.

- Pelo menos falei dos pontos mais procurados da cidade.

- Nada mais?

- Bem. Bem. Para os estudantes que buscam moçoilas sem ter que pagar nem uma dose de Martini o negócio é ir ao footing no largo da Igreja São José. Acontece aos domingos à noite, depois da missa das sete. Ali o affaire é com as moças que trabalham em casas de família. Lá que as ‘empreguetes’ vão bombar. O maior barato!

- É mesmo?

- Não sabia?

- Para variar, não.

- Nada do que pensou, viu?

- Marmota! Farrista! – achincalha a mulher em tom de brincadeira.

- Bem...

- Não me venha com desculpas, porque tolo é assim mesmo: tudo que vê, ele pega. Coisa mais cafona, cara!

- Ora...

- Que gracinha! Nem elas escapam?

Mathieu retrai-se, sem saber o que dizer. Ela:

 - Baixaria elevada ao quadrado!

- Ora, Suzana. Só ouço falar. Meu rolê é outro, já disse.

- Háháhá... Para de tirar onda, cara.

- Sério.

- Conheço a peça. Para quem vive de momentos ali é um prato cheio.

- Você também, hein!

- Vai negar, vai?

- Uai!

- Saliente como é, se tiver chance, aposto que vai dormir até com a empregada lá de casa.

- Ficou biruta?

- Galinha como é, não ponho a mão no fogo. Você ‘mora’ nessa filosofia: vestiu saia, não é padre, está no papo – assegura Suzana com um olhar meio desalentado.

- Putz!

- Até porque, Math, o cérebro humano advoga a favor de si próprio. A primeira reação dele, ao fazermos algo maléfico, é tentar nos convencer de que não fizemos nada tão grave assim. Já percebeu isso?

Pausa. Com um risinho sorrateiro no rosto, o rapaz pergunta:

- Que juízo ruim faz a meu respeito, hein?

- Hora dessas pode entrar numa fria, numa baita confusão.

- Êta!

- Toma cuidado para não se estrepar – ressalta a mulher.

Mathieu fecha o sorriso.

- Muito feia essa parte. Melhor pular.

- Então faz o seguinte: de vez em quando é bom acender uma vela para seu anjo da guarda, porque, a qualquer momento o perigo pode lhe mostrar a cara, viu?

- Viu – responde o rapaz sorridente, com um cigarro aceso entre os dedos, olhando para o teto.

 

 

 



  


* FBN© - 2012 – Passeio Noturno por uma Cidade Psicodélica..., Numa Noite em 68 - Categoria: Romance de Geração - Autor: Welington Almeida Pinto. Iustr.:  óleo de Amilcar de Castro, Belo Horizonte à Noite  e o desenho 'Tabac Opposite Palais de Justice', de Sylvia Plath.  - Link: http://numanoiteem68.blogspot.com.br/2011/01/19xxv-nos-embalos-noturnos-de-uma.html?zx=77cf1aa34dd941b5

 

 
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