Sábado,
14 de dezembro, 1968. No dia da partida para Fortaleza, Mathieu acompanha José
Renato até o Aeroporto da Pampulha. Na volta, passa rápido pelo pensionato onde
vivia num quartinho, pega uma muda de roupa e segue direto para o apartamento
do amigo. Pouco depois das nove horas da noite, desce do elevador do Edifício
Solar, que o levou ao 10º andar. Depressa, ele vira à direita e caminha até a
porta do apartamento anunciado. Toca a campainha e logo Suzana aparece,
rindo.
-
Heloooou! Olha ele aí!
- Boa
noite, Suzana.
Trocam
beijos nas faces, festivamente.
-
Atrasado, ‘né?
- Não se
preocupe, Math. Chegou na hora certa.
- Nada
britânico, reconheço. Em mim, a pontualidade nunca foi um vício.
- Que
importância tem isso?
- É.
- Agora,
entre que a casa é sua. Entre e fique à vontade.
- Com sua
licença.
-
Sinta-se em casa – repete lentamente a mulher.
-
Obrigado.
- Quer
saber, nem vi o tempo passar, estava lendo.
- Ótimo.
Ótimo. E aí, beleza? Tudo nos ‘trinques’?
- More or less.
- Mais
para mais?
- Hummmm!
Tentando, tentando.
- Muito
bem.
Suzana
enlaça o rapaz pela cintura, dizendo:
- Sem
cerimônia, vamos.
A sala de
visitas estava vazia. Ao entrar, a mulher acende as luzes do recinto, dá volta
à chave na fechadura e tranca a porta do apartamento. Mathieu, com os braços ao
longo da cintura, e uma das mãos brincando com um chaveiro, atravessa o hall e
se acomoda no vasto sofá, bem em frente a duas poltronas e uma mesinha de
centro - sobre ela, com ar solene, descansava uma estátua de Safo de Lesbos e
alguns livros de arte empilhados. No teto, doze lâmpadas elétricas. Mas só duas
estavam acesas, uma iluminando o jogo de sofás, outra a mesa de jantar, criando aconchego
ao ambiente. Das janelas pendiam cortinas de voal
bege, bastante sóbrias e, nos parapeitos descansavam jardineiras com flores
naturais, para enfeitar e garantir atmosfera agradável aos ambientes da casa.
- Lindo
seu apartamento! – avalia o amigo, com o rosto virado para Suzana.
- Acha?
- Sua
cara.
- Não,
não é. Mais, muito mais a do José Renato.
- É?
- Isso
mesmo. Para não deixar dúvidas sobre quem manda no pedaço – ressalva Suzana.
O rapaz
desconcerta-se. Faz um gesto amplo e sacode a cabeça. Em seguida olha para a
amiga, mas logo desvia o olhar para a escultura na sua frente.
-
Belíssima peça! – analisa.
E
acrescenta:
- Como é
distinta! Que ar inteligente! Parece viva, não é mesmo?
Suzana,
já enrodilhada na poltrona, puxa algumas almofadas para junto de si.
- Também
gosto. Do escultor Claude Ramsey. Clone, claro. O original dessa obra de arte
genial está no Musée de Louvre.
Houve um
momento de silêncio e êxtase. Depois, o rapaz toca a escultura com uma das
mãos.
- Mostra
a força erótica no mármore, parece até que vai se mexer! Seios incríveis...,
tudo perfeito.
-
Ã-Hã.
- Safo
viveu na cidade de Lesbos, Grécia Antiga, entre os séculos VII e VI antes de
Cristo. Além de bela era poeta e ativista. Seus poemas sobre o amor sexual, o
amor emocional e o platônico entre ela e outras mulheres cunharam o termo
lesbianismo, como sinônimo de homossexualismo feminino.
- Eu sei.
- Safo de
Lesbos é considerada a primeira mulher que lutou por direitos iguais entre os
humanos – alude o rapaz.
- Sério?
- Sim.
- José
Renato admira estatuetas. Vestígios do passado. O pai era colecionador
apaixonado e, nessa convivência tomou gosto pela arte, memória do afeto –
explica a mulher com as faces entre as mãos.
- Também
admiro.
Suzana
aponta outra peça no canto da sala, fazendo companhia à estante de livros:
- Anjo
justiceiro Michael. Conhece?
- Sim.
- O olhar
dele contempla o horizonte. Nos pés, segura o mal. Nas mãos sustenta a balança
da Justiça. Sobra intensidade magnética, não?
- Magnifica!
Percepção vigorosa, que só a arte pode revelar.
- Muito
legal. Adoro.
Mathieu
respira fundo. E ressalta:
-
Vejo nas estátuas inquestionáveis e primorosas testemunhas de um tempo de
glória, repletos de recordações.
-
Sem dúvida.
O rapaz,
descansando o rosto numa das mãos, começa a observar o outro ambiente do salão.
Nele, havia uma imensa mesa retangular, forrada por uma toalha azul claro de
linho. Sobre ela uma cesta de frutas, uma garrafa térmica de café e um aparelho
de telefone escuro. Nas paredes, cobertas por quadros com molduras variadas,
destacava a pintura de uma mulher com uma pomba na mão.
- Você,
não é?
- Sim.
Óleo sobre tela, pintado pelo Chanina.
-
Fascinante!
- O
quadro ou a modelo? – brinca Suzana, rindo.
- Ambos.
Ambos. Você, como sempre, divina. Do pintor, gosto muito.
- De
inegável originalidade pictórica, concorda?
-
Indiscutível. Chanina, com estilo sóbrio e atento à luminosa plasticidade da
figura humana, captou de forma admirável a expressão inteligente e bela do seu
rosto, angelical. Um gênio!
-
Angelical?
- Sim.
Com esse jogo de verdes, ocres e azuis, revela os traços delicados de sua
beleza externa e interna. Mais do que despir o corpo de seus personagens com
traços virtuosos, sua obra oferece traduções importantes da vida interior da
pessoa retratada, como se tivesse também emoldurando o seu pensamento. Chanina
é mesmo um grande retratista!
- Hummm!
- O
impressionismo, com suas pinceladas da liberdade, influenciou Chanina a
guiar-se pela imaginação, inventando sinais enigmáticos e formas fantásticas
que encantam pela alegria e exuberância. Veja lá o destaque da pomba na
composição, pintada com suaves manchas, faz do pássaro incontestável símbolo do
afeto, fala por si. Dá leveza.
- Olha!
- Posso
dizer que o artista conseguiu fundir nesse quadro o amor pela forma, o uso
generoso da cor e o sentimento típico dos românticos ao retratar a paisagem da
memória afetiva. Parabéns!
A mulher
balança a cabeça, concordando. Mathieu:
-
Querida, sabia que desde os tempos remotos é moda enfeitar a parede da sala
principal de casa com o próprio retrato?
- Que nos
diga José Renato – abona a mulher, apontando a mão para outra parede.
Mathieu
vira o rosto e observa três telas que reproduziam o retrato de José Renato. Uma
delas assinada pelo pintor Inimá, com seu apetite para alternar cores quentes e
vivas, seguindo a gama de tonalidades complementares. Outra de Chanina. A terceira de Herculano, mostrada em
contornos mais definidos, divididos em prismas que assumem um aspecto mais
Cubista. Três espelhos de leituras particulares.
A mulher
acompanha o interesse do amigo pelas obras de arte de sua casa. Em silêncio, e
bem à vontade na poltrona, ela acende um cigarro e oferece outro ao amigo:
- Sou
fumante de cigarros com sabor. Incomoda?
- Nem um
pouco – afirma o rapaz ainda com os olhos fixos na parede coberta de quadros
dependurados.
- Está a
fim de um cigarrinho incrementado?
- Bem...
- Já que
não se aborrece o ‘fumacê’ odorífero, experimente um.
- Hummm!
- Os
mentolados ou de cravo, são meus preferidos. Deliciosos. Além de fracos, a
carteira é bonita.
- É fumo.
Tem nicotina do mesmo jeito.
Suzana
tenta justificar:
- Nem
tragar direito eu trago.
- Mesmo
numa relação eventual com o cigarro, você pode ser tragada pelo vício. A
ciência está ai, cada dia mais, condenando o tabagismo. Tenta provar que é
suicídio a longo prazo. Acompanho as pesquisas.
- Mesmo
assim, o meu amigo fuma – adverte a mulher.
- Droga
do diabo! Dá muito prazer, não dá?
Pausa.
Suzana assegura:
- Por
isso mesmo é raro ouvir alguém falando em abandonar o tabaco.
- Pior
que é.
- Ai
existe um pouco de glamorização, copiada do cinema.
- Talvez.
- Conheço
pessoas que pararam de fumar substituindo o hábito por mascar chicletes, ou
chupando balas de hortelã. Mas, com muita força de vontade, claro.
- É mais
fácil substituir uma compulsão por outra. Ou uma dependência por outra –
pondera o rapaz.
- Aceita
ou não um cigarro com sabor?
- Aceito.
Suzana
estende a mão e passa-lhe o maço.
- Se
gostar pode ficar com a carteira. Tenho outra.
-
Presente?
- Não é
bem um presente, uma cortesia.
-
Obrigado.
O rapaz
cheira o fumo, antes de acender o cigarro. Depois de uma tragada, lenta e
meticulosa, recosta-se na poltrona, justificando:
- Não tem
jeito, numa boa conversa ele é sempre bem-vindo.
- E como
é!
- Sem
falar que é um ótimo tema para puxar assunto, principalmente, com uma senhora
que tem traquejo social e que deve adorar uma boa prosa.
Depois de
um gesto vago, Suzana aquiesce com a cabeça, ressaltando:
- Então
vamos ter um papo muito animado. Falo muito, como todas as mulheres.
- Não
fico atrás, também curto um bate papo. Ah, ia me esquecendo, trouxe uma
lembrança para você.
- Para
mim! O quê?
- Um
livro.
- Oh,
quanta gentileza! É o que mais gosto de ganhar.
-
Imaginei.
-
Obrigada.
- Penso
que você é como eu, vacinada pelos livros.
- Desde menina.
Mathieu
tira da bolsa a obra embrulhada para presente e oferece a ela:
- A Bela
do Senhor, de Albert Cohen.
- Olha!
- Fiquei
na dúvida entre dois lançamentos. Esse aqui, ou Orgia, de Túlio Carella.
- Acertou
com Cohen. Numa outra oportunidade, eu leio os diários eróticos do escritor
argentino, mestre do auto ficção.
- Ainda
bem. Não sou de ir nessa mania do mundo literário de comprar livros porque
todos estão comprando. Nada disso.
- Ã-Hã.
- Cohen
emociona pelo lirismo e por sua apurada linguagem. O livro documenta a
felicidade do encontro de Solal e Ariane que vivem uma aventura de fusão
absoluta.
-
Interessante!
Suzana
abre o livro e lê a dedicatória com um trecho de Drummond: há um prazer sutil em confiar a mãos e olhos femininos um livro que nos
comoveu ou fez pensar. Em seguida, ela agradece sorrindo:
- Rapaz
cortês, gratíssima!
Mathieu
acaricia-lhe a mão, dizendo:
- Há livros
que parecem bons, mas não têm alma. Esse de Albert é bom e apresenta alma, elementos
que dão a chave do livro. Pode crer. Narra uma comovente história de amor.
- Legal.
Depois de
uma sorvida no cigarro mentolado, rapaz exclama:
-
Calorão, hein?
-
Escaldante! O ar de verão me faz bem,
mas, santo Deus, como está quente!
Sinto-me afogueada, um sacrifício e tanto, não?
-
Insuportável.
- Calor
do qual todo mundo está reclamando. Nenhum sinal de chuva no céu. Quase dez
horas da noite e o ar ainda está bastante quente, nem vento soprando. Pelo que
escutei na rádio os termômetros registraram 31 graus durante o dia. Sentiu?
- Andando
pelas calçadas parecia maior, mesmo à sombra. Esse clima, às vezes, é muito
ingrato – reclama o rapaz.
- Que tal
um um copo de água fresca?
- Boa
pedida. Depois um café, se tiver na garrafa térmica, para fazer boca de pito.
- Tudo
bem. Vou pegar.
Suzana
deixa a poltrona, caminha até a mesa de jantar, enche um copo de água e uma
xícara de café e oferece ao amigo.
- Ainda
está fria, toma.
O moço
agradece e bebe a água num só gole. Depois, o café.
- Bom seu
café. Muito bom.
A amiga
sorri agradecida. E ressalta:
- Pelo
que vejo gostou muito da pinacoteca do Zé.
- Muito.
De peso, só de craques.
- Temos
ainda uma cabeça de Cristo com sua assinatura. Recorda do quadro?
-
Presente que fiz ao José Renato.
- Está
numa das paredes do quarto de hóspede, mostrando que é um rapaz extremamente
talentoso.
- Chique.
- E, em
um porta-retratos, eu guardo meu perfil desenhado por você num guardanapo de
papel, feito à beira da piscina do Minas Tênis, lembra?
- Como se fosse hoje.
- Onde,
aliás, você fazia a maior ‘média’ com as garotas, retratando todas que caiam
nas suas artimanhas. Continua assim?
- Desenho
para me divertir. Mas não posso negar que é uma boa maneira de comunicar com
elas e estreitar relações.
-
Suponho.
- Pode
crer.
- Suponho
que não é apenas como quem viaja em devaneios, mas como quem vai para uma boa
colheita.
Risos.
Mathieu:
- Acha
que faço como Picasso quando viu na rua, pela primeira vez, a jovem
Marie-Thérèse?
- Como
assim?
-
Encantado com a garota, abordou-a e disse: você
tem um rosto interessante. Gostaria de fazer seu retrato.
-
Exatamente.
- A arte é um dos meios que une as pessoas,
já dizia Platão. É como o vinho, traz em si um bom motivo para fazer amigos.
Cultura 360°, querida, cuja função é tocar as pessoas.
- Hummmmmm!
- Assim é
a filosofia, a ciência e a religião. Veja na arte uma tentativa de dar maior
sentido à existência, porque uma vida sem arte é uma vida menos interessante.
Sabe disso, ´ne? Eu não quero, alguma
vez na vida, ter que lamentar oportunidades perdidas de ter feito arte.
-
Espertinho.
Risos.
Mathieu:
- Gosto
do poder que a imagem exerce sobre as mulheres, mesmo sendo um desenho
rabiscado sem maiores intenções.
-
Duvideodó! Começa com a arte, e logo a mocinha acaba em seus braços – agulha
Suzana.
- Putz!
- Faz
parte do show, não é assim?
- Talvez.
Pela lei da física, toda ação gera uma reação.
- Ã-Hã.
- Desde
que se tenha liberdade para criação, nós podemos fazer de um simples desenho o
silêncio que revela todas as palavras que se quer dizer.
- Nossa!
- Na
verdade, diante de uma bela fêmea, eu quero mesmo é expressar meu desejo de
felicidade. Sou um humanista secular. E, para o humanismo funcionar, você
precisa oferecer alguma coisa em troca. Eu ofereço arte.
- Ã-Hã!
Pausa. O
rapaz sorrindo:
- Cadê o
guardanapo com o desenho?
- Está
sobre um móvel lá no meu quarto, guardo com o maior carinho.
- Bom
saber.
A mulher,
depois de um olhar comprido para ele:
- Ô,
cara, você tem a ‘manha’ para desenhar. Desenha legal.
- Ainda
sou um estagiário com escasso domínio da técnica pictórica, pinto por recreação
mesmo. Um dia viro pintor e retrato você de verdade.
- Jura?
-
Prometo.
-
Promessa é dívida, viu?
- Vou
pagar.
- Êba!
Fica me devendo essa.
- Claro.
- Pinta
sempre, Math? – interessa Suzana.
- Às
vezes fico um tempo distante do cavalete. Como a arte figurativa está dentro da
gente, alguma coisa que fala mais alto, acabo voltando a pintar. Sinto que
preciso pintar como alguém precisa comer ou beber. Juntar para dividir.
- Talento
é coisa nata, nasce com a gente. Sei como é.
- Talvez.
Arte é outra linguagem, ajuda a gente a ampliar a visão do mundo. Einstein
acertou em cheio quando disse que um dos motivos mais poderosos que conduzem o
homem em direção à arte e à ciência é o de escapar do cotidiano.
-
Maravilha!
- Assim
foi comigo desde a adolescência, quando vivia rabiscando personagens em meus
cadernos de escola para fugir um pouco dos deveres escolares, crente de que a
vida deveria ter a cor que a gente pinta.
- Quem
sabe?
- Sempre fui
inclinado a retratar o corpo feminino. Enche-me de alegria.
-
Háháhá... Não poderia ser diferente.
- Na
verdade, para todos que alimentamos alguma veleidade artística, o tema favorito
sempre consagrou a figura feminina. Nua ou não a mulher inspira a alma de
qualquer artista. Basta ver que, desde a aurora da arte, a beleza da fêmea tem
sido assunto instigante para as palavras, os entalhes e os pinceis. E, a partir
do século XIX, para as lentes de uma câmara fotográfica.
- Claro.
Claro.
- Nós
amamos as mulheres. Basta observar que, dos motes preferidos pelos grandes
pintores, uma mulher expressiva é, de longe, o mais caracterizado.
- Sem
dúvida.
- De
qualquer forma, a ideia é mostrar o corpo feminino de diversos pontos de vista,
mesmo quando o nu é retratado apenas como dicção figurada, sem dimensão
erótica.
Suzana,
depois de mudar de posição na poltrona:
- Ah,
sim. Durante uma viagem a Paris tive oportunidade de admirar no Louvre, sem o
menor desconforto, dezenas de mulheres nuas expostas. Inclusive o quadro A
Origem do Mundo, de Gustave Coubert, que retratou o órgão genital feminino em close. A imagem é fantástica, mostrando
a realidade de forma simples e poderosa.
-
Incontestavelmente. O artista francês mostra que atacava suas telas com duas
armas preciosas: excelência técnica e vigor emocional. A obra é muito objetiva,
não qualifica, nem adjetiva coisa alguma. Arte de gente grande. Impactante,
linda de ver.
- Alguns
visitantes, em viagens surpreendentes pelas cores e imagens do museu, passam
rápido tentando disfarçar o inesperado constrangimento. Outros ficam estáticos
por alguns minutos frente ao quadro, emocionalmente admirados. Com certeza a
obra leva todos a refletir.
- Claro –
anui o rapaz.
- O belo, como a verdade, está ligado ao tempo
em que se vive e ao indivíduo que está pronto para compreendê-lo. É o que
está escrito, pelo próprio autor, no folheto que fala sobre a obra – lembra a
mulher.
-
Correto.
- O
interessante é que a obra também despertava muitos olhinhos curiosos de meninas
e meninos ao meu lado, que olhavam aquilo com grande admiração, sem risinhos.
Tudo como numa sala de aula, assistindo aula de biologia, longe de inspirar
desejos carnais.
- A
cultura europeia é outra. Uma coisa é você ver uma tela no catálogo ou num
impresso qualquer, outra coisa é ver o original numa exposição pública. A
emoção é diferente, até para a criançada.
-
Certamente.
- Na
Europa, desde cedo as pessoas são educadas para ver e sentir as grandes obras
nos museus, sejam elas qual for. A arte não pode ter barreiras.
- Claro
que não...
Pausa.
Mathieu, depois de uma tragada no cigarro:
-
Querida, no universo das artes, existem admiráveis obras feitas com cena de
nudez, criadas para dizer que a origem do mundo não está em Adão e Eva, mas
numa vagina nua e crua. O quadro de Coubert, ilustra essa verdade e ganha
significado porque fala com força ao nosso mundo interior. Com todas as gamas
de matizes, a arte leva o ser humano a entender melhor a vida.
Suzana
tranca o sorriso, discordando:
- Não é
bem assim. Deus...
- A
partir do cristianismo que o sexo passou a ser visto como sujo e pecaminoso. A
mulher, coitada, taxada como um ser maligno passou a carregar a culpa de tudo.
Tanto que, na vida real, era comum ter o ventre envolvido por um acessório para
tapar sua genitália, trancado ao redor da cintura de modo a frustrar qualquer
atividade sexual.
- Cinto
da castidade?
- Coisa
de louco! Imperdoável mal entendido criado pelos deuses, que perseguiam o órgão
feminino como um mito da perdição masculina.
Pausa.
Suzana abismada:
- Nossa!
Deveria ser bem desconfortável viver com essa tranca de cadeia no meio das
pernas, não?
- Assim
era a lei ditada aos religiosos mais radicais. Totalmente desumana.
- Difícil
até de imaginar.
- Por
outro lado, tinham aquelas que usavam os cintos de forma espontânea para se
protegerem. Evitar estrupo e, consequentemente, doenças venéreas.
-
Caramba!
Depois
beber mais um pouco de cerveja, Mathieu:
-
Realizo-me nas duas vertentes. Mas, sinto mais à vontade na literatura que me
dá a expressão maior - só sei viver escrevendo.
- Ã-Hã.
- Na
verdade, em qualquer suporte, exteriorizamos o que existe por dentro. Arte é movimento. É como se fosse um voo da
imaginação que aterrissa na alma, portanto, nosso
verdadeiro dever é salvar nossos sonhos, já dizia Modigliani que ensinou-me
o amor às formas e volumes, fez-me concentrar no desenho que surge de seus
pinceis. Adoro a obra de Modigliani.
- Eu
também.
- Enfim,
ao recriar a realidade por meio de sua visão particular num cavalete ou numa
máquina de escrever, o artista consegue vencer o tempo. É só alegria.
- Eu não
tenho esse dom, mas admiro muito quem tem.
- Admirar
a arte é outro dom. Um dom especial, pode crer.
Depois de
uma longa golfada de fumaça, Suzana:
- Quer
saber, Math, fiquei mais sossegada quando o Zé disse que vinha passar esse fim
de semana aqui em casa.
- Jamais
recusaria, somos amigos.
- Rapazes
têm coisas melhores para curtir num sábado à noite, não?
-
Bobinha! Estou aqui para fazer e ter a sua companhia. Existe programa melhor?
- Espero
que não.
Mathieu
abre um leve sorriso de intimidade, lança os braços em volta do próprio corpo,
acariciando-se. E pede:
- Quero
outro copo d’água, pode ser?